
Carta aberta do líder dos protestos na Universidade de Columbia, que está preso e Trump quer deportar, foi publicada pelo Washington Post
Pela segunda vez desde seu sequestro no mês passado por agentes de imigração do governo Trump, o líder estudantil da Universidade de Columbia, Mahmoud Khalil, publica carta aberta, agora na véspera da Páscoa, em que questiona “por que protestar contra a matança indiscriminada de milhares de palestinos inocentes por Israel resultaria na erosão de meus direitos constitucionais?”.
E alerta: “que a suspensão dos meus direitos constitucionais faça soar o alarme de que os seus já estão em perigo”.
Como registrou o portal progressista norte-americano Common Dreams, o público dos EUA tem sido confrontado nos últimos dias com uma enxurrada de notícias sobre a campanha de deportação do presidente Trump e seu desrespeito a inúmeras ordens judiciais.
Khalil, um pós-graduando de origem palestina, que possui green card – ou seja, é um imigrante legal – e é casado com uma cidadã norte-americana, foi um dos organizadores das manifestações do ano passado em Columbia, Nova Iorque, uma das principais universidades dos EUA, contra o genocídio em curso em Gaza.
Ele se encontra encarcerado em uma remota prisão para imigrantes na Louisiana. Na carta, publicada pelo jornal Washington Post na seção de opinião, Khalil adverte que sua situação, desde que os agentes do Departamento de Imigração e Alfândega (ICE) o abordaram e à sua esposa grávida e o levaram em um veículo não identificado, ilustra um fato básico sobre os Estados Unidos nos tempos atuais:
“Os direitos são concedidos àqueles que se alinham com o poder. Para os pobres, para as pessoas de cor, para aqueles que resistem à injustiça, os direitos são apenas palavras escritas na água”.
Khalil destacou ainda o pavor do governo Trump frente à ideia “de que a libertação da Palestina entre no mainstream”.
Uma mudança, como aponta o Common Dreams, já iniciada, com 53% dos adultos norte-americanos expressando uma opinião desfavorável sobre Israel em uma pesquisa da Pew Research (eram 42% em março de 2022), e um número crescente de norte-americanos dizendo que simpatizam com os palestinos.
“Por que outro motivo os funcionários de Trump não apenas tentariam me deportar, mas também enganariam intencionalmente o público sobre quem eu sou e o que defendo?”, questiona Khalil.
A carta veio a público quase uma semana depois que o juiz-chefe assistente de imigração, Jamee Comans, decidiu que Khalil pode ser deportado, apesar da admissão do governo Trump de que Khalil não está sendo acusado de qualquer crime e que suas “crenças, declarações ou associações passadas, atuais ou esperadas … são legais”.
Durante a audiência da semana passada, Khalil escreveu: “o governo afirmou em nome do secretário de Estado, Marco Rubio, que minhas crenças, declarações e associações comprometem seus interesses ‘imperiosos’ de política externa. Como os milhares de estudantes com quem defendi na Columbia – incluindo amigos muçulmanos, judeus e cristãos – acredito na igualdade inata de todos os seres humanos. Eu acredito na dignidade humana. Acredito no direito do meu povo de olhar para o céu azul e não temer um míssil iminente”.
Khalil apontou para uma decisão da Suprema Corte de 1944 que estabelece um precedente que pode ser relevante no seu caso. A Suprema Corte decidiu que o governo dos EUA não poderia continuar detendo Mitsuye Endo, uma mulher nipo-americana que foi encarcerada em um campo de internamento durante a Segunda Guerra Mundial.
“Sua vitória ajudou a garantir a libertação de milhares de outras pessoas”, escreveu Khalil. “O encarceramento de 70.000 cidadãos americanos de ascendência japonesa é um lembrete de que a retórica de justiça e liberdade obscurece a realidade de que, com muita frequência, a América tem sido uma democracia de conveniência.”
A carta de Khalil veio um dia depois que um juiz de imigração negou fiança a Rumeysa Ozturk, uma estudante da Universidade Tufts que foi alvo do governo Trump e sequestrada em uma rua em Somerville, Massachusetts, no mês passado, por coescrever um ano antes um artigo de opinião criticando o apoio dos EUA à guerra de Israel em Gaza.
Khalil e Ozturk estão entre vários estudantes que foram detidos e ameaçados de deportação por discurso político assegurado pela 1ª Emenda da Constituição. Segundo a mídia norte-americana, mais de 600 já tiveram seus vistos cassados.
“Escrevo esta carta enquanto o sol nasce, esperando que a suspensão dos meus direitos soe o alarme de que os seus já estão em perigo”, concluiu Khalil.
“Espero que inspire sua indignação de que o instinto humano mais básico, de protestar contra o massacre descarado, esteja sendo reprimido por leis obscuras, propaganda racista e um estado aterrorizado com um público desperto. Espero que este escrito o assuste e o faça entender que uma democracia para alguns – uma democracia de conveniência – não é democracia. Espero que isso o leve a agir antes que seja tarde demais.”
Leia a íntegra da carta de Khalil:
São 3 da manhã enquanto estou deitado sem dormir em um beliche em Jena, Louisiana, longe de minha esposa, Noor, que dará à luz nosso bebê em duas semanas. O som da chuva batendo no telhado de metal mascara o ronco de 70 homens se revirando em tapetes duros neste centro de detenção administrado pela Imigração e Alfândega. Quais estão sonhando em se reunir com suas famílias? Quais estão tendo pesadelos sobre se tornar o próximo “erro administrativo” do governo Trump?
Na sexta-feira passada, sentei-me em um tribunal enquanto um juiz de imigração determinava que o governo poderia me deportar apesar do meu status de residente permanente legal e apesar de as alegações do governo contra mim serem infundadas – muitas de suas “evidências” retiradas diretamente de tablóides sensacionalistas. A decisão não resultará em deportação imediata – aspectos do meu caso estão pendentes em outros tribunais.
Mais cedo naquele dia, vasculhei cartas de apoiadores. Dois selos postais exibiam a bandeira americana, um declarando “liberdade para sempre”, o outro proclamando “justiça para sempre”. A ironia é impressionante, especialmente em relação ao que aprendi sobre como o governo explora a lei de imigração para impor sua agenda repressiva. Penso na velocidade vertiginosa com que meu caso foi ouvido e decidido, atropelando o devido processo. Por outro lado, penso naqueles com quem estou preso, muitos dos quais estão definhando há meses ou anos esperando por seu “devido processo”.
Durante a audiência de sexta-feira, o governo afirmou em nome do secretário de Estado Marco Rubio que minhas crenças, declarações e associações comprometem seus interesses de política externa “imperiosos”. Como os milhares de estudantes que defendi em Columbia – incluindo amigos muçulmanos, judeus e cristãos – acredito na igualdade inata de todos os seres humanos. Eu acredito na dignidade humana. Acredito no direito do meu povo de olhar para o céu azul e não temer um míssil iminente.
Por que protestar contra a matança indiscriminada de milhares de palestinos inocentes por Israel resultaria na erosão de meus direitos constitucionais?
Meus advogados mencionaram que um caso chamado Endo pode ser relevante para mim. Dias depois, em minha pesquisa em uma biblioteca jurídica, descobri a história humana por trás da abstração legal. Mitsuye Endo, uma mulher nipo-americana encarcerada durante a Segunda Guerra Mundial, desafiou seus captores e levou seu caso à Suprema Corte. Sua vitória ajudou a garantir a libertação de milhares de outras pessoas.
O encarceramento de 70.000 cidadãos americanos de ascendência japonesa é um lembrete de que a retórica de justiça e liberdade obscurece a realidade de que, com muita frequência, a América tem sido uma democracia de conveniência. Os direitos são concedidos àqueles que se alinham com o poder. Para os pobres, para as pessoas de cor, para aqueles que resistem à injustiça, os direitos são apenas palavras escritas na água. O direito à liberdade de expressão quando se trata da Palestina sempre foi excepcionalmente fraco. Mesmo assim, a repressão às universidades e estudantes revela o quanto a Casa Branca tem medo da ideia de que a liberdade da Palestina entre no mainstream. Por que outro motivo os funcionários de Trump não apenas tentariam me deportar, mas também enganariam intencionalmente o público sobre quem eu sou e o que defendo?
Eu pego minha cópia de “Man’s Search for Meaning” [A Busca de Significado pelo Homem], em tradução livre], de Viktor Frankl. Sinto vergonha de comparar minhas condições de detenção do ICE com os campos de concentração nazistas, mas alguns aspectos da experiência de Frankl ressoam: não saber que destino me espera; ver resignação e derrota em meus companheiros de detenção. Frankl escreveu a partir das lentes de um psicólogo. Eu me pergunto se Hussam Abu Safiya, um renomado diretor de hospital que foi sequestrado em Gaza pelas forças de ocupação israelenses em 27 de dezembro e que, de acordo com seu advogado do Centro Al Mezan de Direitos Humanos, sofreu espancamentos, choques elétricos e confinamento solitário, escreverá sobre sua provação de uma perspectiva médica.
São quase 4 da manhã. O trovão cai. A algumas fileiras de distância, um homem abraça uma garrafa de água quente em uma meia para se aquecer. Seu tapete de oração serve como um cobertor e sua cabeça repousa sobre os sapatos. Um detento que estava orando a noite toda finalmente se deita. Ele foi pego cruzando a fronteira com sua esposa grávida e nunca viu seu bebê, agora com nove meses de idade. Tento me convencer de que esse não será o meu destino, embora a decisão de sexta-feira torne essa possibilidade mais real do que eu quero admitir.
Escrevo esta carta enquanto o sol nasce, esperando que a suspensão dos meus direitos faça soar o alarme de que os seus já estão em perigo. Espero que inspire sua indignação pelo fato de que o instinto humano mais básico, de protestar contra o massacre descarado, esteja sendo reprimido por leis obscuras, propaganda racista e um estado aterrorizado com um público desperto. Espero que este escrito o assuste e o faça entender que uma democracia para alguns – uma democracia de conveniência – não é democracia. Espero que isso o leve a agir antes que seja tarde demais.