
O Ministério Público do Paraná (MP-PR) ajuizou uma ação civil pública contra o governo estadual, a Companhia de Tecnologia da Informação e Comunicação do Paraná (Celepar) e uma empresa privada por violações à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) na implantação de sistemas de reconhecimento facial em escolas públicas. A tecnologia, usada supostamente para controle de presença de alunos, também realiza, de forma oculta, o monitoramento de emoções, expressões faciais e outros traços comportamentais — tudo sem consentimento claro e informado das famílias ou dos próprios estudantes.
A ação, movida pela 3ª Promotoria de Justiça de Campo Mourão, aponta que o sistema exige que os professores fotografem os alunos em todas as aulas por meio de um aplicativo de celular. As imagens são tratadas por uma empresa privada contratada pela Celepar e utilizadas para registrar presença via inteligência artificial. Mas o processo inclui também a captação de dados sensíveis como sorriso, olhos fechados, boca aberta, uso de óculos, chapéu ou até bigode — um tipo de vigilância que, segundo o MP, não tem base legal e infringe vários princípios da LGPD, como o da finalidade e da autodeterminação informativa.
EDUCATRON
O reconhecimento facial e o monitoramento emocional não são iniciativas isoladas. Eles integram o programa Educatron, lançado pelo governo Ratinho Jr. como parte de uma agenda de “modernização” da educação pública estadual. O Educatron já está em operação em escolas do Paraná e envolve a instalação de lousas digitais e kits de informática com câmeras acopladas — que, na prática, permitem o registro constante de professores e estudantes dentro da sala de aula.
Sob o pretexto de melhorar o desempenho escolar, a tecnologia do Educatron vem sendo usada para rastrear o comportamento dos alunos e monitorar os professores. Em documentos e apresentações internas, o governo admite a intenção de usar inteligência artificial para cruzar os dados captados por vídeo com os conteúdos exigidos pela Base Nacional Comum Curricular. O sistema também é projetado para “avaliar engajamento” dos estudantes com base em expressões faciais e tempo de atenção ao quadro ou ao docente.
VIGILÂNCIA E PUNIÇÃO
A Secretaria de Educação do Paraná afirma que a medida visa garantir que os professores cumpram a carga horária da disciplina e sigam os conteúdos previstos. A IA processará as imagens e as cruzará com os planos de aula, que também serão digitalizados. Caso haja “incompatibilidade”, os registros poderão gerar advertências, penalidades administrativas e até sanções funcionais aos docentes.
Entre os critérios sugeridos para avaliação do “engajamento dos alunos” estão o tempo que eles olham para a lousa ou para o professor, detectado por reconhecimento facial. O sistema promete identificar se o docente “entregou o conteúdo” de forma “adequada” — uma noção vaga, baseada em parâmetros não debatidos publicamente e sem qualquer respaldo pedagógico.
CLIMA DE MEDO NAS ESCOLAS
A proposta é vista por educadores como uma medida autoritária e intimidatória, que estabelece um ambiente de desconfiança e punição. “É uma aberração. Trata-se de um projeto de controle, que transforma a escola num espaço de vigilância e coerção, não de aprendizado”, afirma um professor da rede estadual, que preferiu não se identificar por medo de represálias. “Não se trata de melhorar a qualidade da educação, mas de perseguir o professor.”
A medida, na prática, cria um sistema de vigilância permanente, capaz de produzir dossiês audiovisuais de cada aula e de cada professor. Não há qualquer previsão de salvaguardas legais, limites de uso ou controle externo sobre os dados gerados, o que levanta sérias preocupações sobre privacidade, segurança da informação e abuso de poder.
AUTONOMIA DOCENTE SOB ATAQUE
Pesquisadores apontam que a proposta viola frontalmente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que assegura a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias. Também contraria o Plano Nacional de Educação (PNE), que recomenda a valorização dos professores por meio de formação continuada e melhores condições de trabalho — não por meio de vigilância.
“É um retrocesso gravíssimo. Nenhum país sério adota inteligência artificial para vigiar professores com o intuito de puni-los. É uma distorção completa do papel da tecnologia na educação”, afirma a professora e pesquisadora da UFPR, Mariana Borges. Segundo ela, o projeto representa um novo estágio de autoritarismo educacional: “É o delírio tecnocrático de um governo que quer impor controle ideológico e disciplinar, mascarado como inovação”.
Para especialistas e entidades educacionais, o Educatron transforma a escola em um ambiente de controle permanente. “Essa não é uma política pedagógica, é uma política de vigilância”, alerta um professor da rede estadual. A APP-Sindicato, que representa os trabalhadores da educação, afirma que a proposta compromete a liberdade de ensinar e aprender, e já articula ações contra o avanço do programa.
TECNOLOGIA INVASIVA E SEM TRANSPARÊNCIA
A falta de debate público, transparência e critérios pedagógicos claros é um dos aspectos mais graves do Educatron e das tecnologias associadas a ele. A proposta de reconhecimento facial para chamada escolar foi incluída no pacote sem consulta à comunidade escolar ou esclarecimento sobre os riscos envolvidos. Na prática, alunos e professores têm seus dados captados e analisados por sistemas privados de IA, sem controle social ou garantias de privacidade.
O MP denuncia ainda que as autorizações obtidas junto aos responsáveis não deixavam claro que se tratava de reconhecimento facial — tampouco que os dados coletados seriam processados para fins de vigilância emocional. Diante disso, o órgão pede à Justiça a suspensão imediata do uso do sistema, além da condenação dos envolvidos ao pagamento de R$ 15 milhões por danos morais coletivos.
PRIVATIZAÇÃO DA CELEPAR
A denúncia do Ministério Público ocorre em meio à proposta de privatização da Celepar, empresa pública responsável pelo tratamento dos dados educacionais e de outros serviços do Estado. A entrega da Celepar à iniciativa privada, atualmente em discussão na Assembleia Legislativa, acende o alerta sobre a possível mercantilização de informações sensíveis de milhões de estudantes e servidores públicos.
A combinação entre coleta massiva de dados, uso de inteligência artificial em escolas e privatização da infraestrutura digital do Estado compõe um cenário preocupante. “Estamos vendo dados sensíveis serem transformados em ativos financeiros. O que está em jogo não é só a privacidade — é o futuro da educação pública como espaço de liberdade e formação cidadã”, resume a pesquisadora Mariana Borges, da UFPR.