
Um plano de atentado ao show de Lady Gaga em Copacabana, que poderia ter deixado centenas de vítimas, surgiu como um “desafio coletivo” em um servidor fechado da plataforma Discord. A motivação era conquistar status dentro da comunidade virtual, composta por jovens radicalizados e incentivados a praticar atos violentos. O evento, que reuniu 2,1 milhões de pessoas na areia da praia carioca, se tornou alvo de um grupo que pretendia usar “coquetel molotov e mochilas explosivas” com a participação de “menores de idade”.
A ameaça foi interceptada graças a uma denúncia anônima feita ao disque-denúncia no dia 28 de abril. Às 9h19 da manhã, uma ligação revelou que um grupo ativo no Discord planejava “um atentado no show da Lady Gaga”, com alvos específicos: crianças e pessoas LGBTQIA+. A denúncia acionou o sistema de inteligência da central Civitas, ligada ao Centro de Operações e Resiliência (COR) da Prefeitura do Rio. Termos como “bomba” e “Lady Gaga” dispararam os alertas automáticos do sistema, permitindo a identificação das conversas no Discord. “Foi comprovado que o grupo era real e que os perfis estavam falando [sobre o atentado] no Discord”, afirmou uma fonte.
A investigação apontou que o ataque estava sendo tratado como uma espécie de “rito de passagem” dentro de uma rede de ódio online, que promovia “radicalização de adolescentes, a disseminação de crimes de ódio, automutilação, pedofilia e conteúdos violentos como forma de pertencimento e desafio entre jovens”, segundo a Polícia Civil.
“Estavam ali claramente falando que iriam fazer um atentado ao show da cantora Lady Gaga, de cunho de orientação sexual, para atingir o público LGBTQIA+”, declarou o secretário de Polícia Civil do Rio, Felipe Curi.
RESPONSABILIZAÇÃO DA PLATAFORMA
A gravidade do caso repercutiu também no cenário político. O deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) solicitou ao Ministério Público Federal a suspensão das atividades do Discord no Brasil. Ele alegou que “a inexistência da devida representação legal em território nacional, junto com a leniência e a permissividade aos discursos de ódio e à incitação para a prática de crimes contra as instituições democráticas” foram fatores determinantes para o pedido. A medida vem após a revelação de que a plataforma foi usada para arquitetar o plano terrorista que mirava o público do show de Lady Gaga.
A operação que impediu o ataque, batizada de Fake Monster — em alusão aos fãs da cantora, chamados de little monsters —, foi deflagrada no sábado, 3 de maio. Conduzida em sigilo pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, com apoio do Ministério da Justiça e de outras 13 forças de segurança, a ação cumpriu 15 mandados de busca e apreensão em quatro estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. A estratégia foi manter o sigilo absoluto para evitar pânico entre o público ou decisões precipitadas, como o cancelamento do evento. “O mérito da operação ‘Fake Monster’ foi manter o sigilo”, afirmou Victor dos Santos, secretário de Segurança Pública.
No Rio, os mandados foram cumpridos em cidades como Rio de Janeiro, Niterói, Duque de Caxias e Macaé. Em São Paulo, foram alvos os municípios de Cotia, São Vicente e Vargem Grande Paulista. Já no Sul, em São Sebastião do Caí e Novo Hamburgo, e no Centro-Oeste, em Campo Novo do Parecis. Luiz Fabiano da Silva, apontado como “líder do grupo”, foi preso em flagrante por posse ilegal de arma de fogo no Rio Grande do Sul. Ele obteve liberdade mediante fiança, mas foi novamente preso em 5 de maio. Outro envolvido, um adolescente, foi apreendido no Rio por armazenar pornografia infantil.
A Polícia Civil informou que os investigados são suspeitos de crimes como terrorismo, incitação ao crime e associação criminosa qualificada pela participação de adolescentes. “A operação foi deflagrada para neutralizar as condutas digitais que vinham sendo articuladas, com potencial risco ao público do evento, sem que houvesse qualquer impacto para os frequentadores.”
O Laboratório de Operações Cibernéticas (Ciberlab), do Ministério da Justiça, validou a ameaça e ressaltou a eficácia do sistema de denúncias. “Mesmo que uma informação parecer estranha, ela tem que ser checada quando há algo que coloca em risco a vida de pessoas, principalmente de muita gente aglomerada. Isso garante a segurança das pessoas e evita tragédias. Foi o que ocorreu no caso desse show”, disse Alessandro Barreto, coordenador do Ciberlab.
A plataforma Discord, em nota, afirmou ter políticas rigorosas contra discursos de ódio e incitação à violência, e que está colaborando com as autoridades. No entanto, casos semelhantes já haviam ocorrido na plataforma, como o planejamento de um ataque a uma escola em São Paulo e a transmissão ao vivo de agressões a uma pessoa em situação de rua.
Apesar do risco iminente, o show transcorreu sem incidentes graves. Foram registradas 240 ocorrências nas delegacias da região, sendo 95% delas por furtos de celulares. A atuação rápida e silenciosa das autoridades foi decisiva para evitar uma tragédia.