
A ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves é alvo de uma ação civil pública do Ministério Público Federal que a acusa de ter disseminado informações falsas sobre casos de abuso sexual contra crianças no arquipélago do Marajó, no Pará, enquanto ocupava cargo no governo de Jair Bolsonaro. A investigação revela que, ao propagar narrativas sensacionalistas e sem base factual — como a de que meninas da região não usavam calcinha e tinham os dentes arrancados para facilitar sexo oral —, Damares promoveu um programa federal, o “Abrace o Marajó”, que serviu principalmente para fins políticos, religiosos e de regularização fundiária irregular.
Lançado em 2020, o programa prometia enfrentar uma suposta “epidemia de exploração sexual infantil” no arquipélago paraense, mas acabou sendo usado como ferramenta para beneficiar aliados da ex-ministra, expandir a presença de igrejas evangélicas e acelerar a ocupação de terras públicas federais por meio de mecanismos frágeis e ilegais.
Com a justificativa de proteger crianças em situação de vulnerabilidade, o “Abrace o Marajó” prometeu investir R$ 1 bilhão. No entanto, segundo o MPF, o programa nunca teve ações efetivas de combate à violência sexual nem apresentou qualquer estudo ou dado que sustentasse a narrativa usada para promovê-lo. Em vez disso, o governo Bolsonaro, sob coordenação do ministério de Damares, passou a emitir em ritmo acelerado os chamados Termos de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), instrumentos fundiários voltados originalmente a populações tradicionais. Foram mais de 400 TAUS concedidos entre 2020 e 2022 — um recorde histórico —, que totalizam mais de 50 milhões de metros quadrados de terras públicas distribuídas, muitas vezes, sem critérios técnicos, sem consulta às comunidades locais e, em vários casos, com sobreposição a assentamentos da reforma agrária, territórios quilombolas e áreas de preservação ambiental.
O tamanho médio dos lotes mais do que dobrou em relação ao recorde anterior, com títulos individuais ultrapassando os 3 milhões de metros quadrados — algo absolutamente fora dos padrões históricos do instrumento. Para o antropólogo do Incra Marcos Trindade, que atuou por anos na região, esse tipo de prática constitui uma “violência fundiária institucionalizada”, e serve para legitimar grilagens em nome de populações vulneráveis. Em Bagre, município com um dos piores IDHs do país, TAUS foram registrados em nome de ribeirinhos como o pescador Antônio Martins e o agricultor Jocival Assunção, que não tinham plena consciência da extensão dos lotes que estavam recebendo. Em terrenos vinculados a esses títulos, surgiram templos da Assembleia de Deus e outras igrejas evangélicas, que hoje dominam o espaço físico e simbólico de comunidades tradicionais.
A presença massiva de igrejas ligadas à base de apoio de Damares e ao bolsonarismo em geral é um dos aspectos mais evidentes do uso ideológico do programa. Em diversas ocasiões, reuniões oficiais do “Abrace o Marajó” ocorreram dentro de templos religiosos, com exclusão de organizações da sociedade civil e sem qualquer transparência pública. No lugar de políticas públicas, o que se via era a distribuição informal de terrenos, a construção de igrejas e a abertura de espaço para lideranças religiosas locais — muitas das quais ligadas à ex-ministra — expandirem sua influência. Em paralelo, houve relatos de que pastores e servidores municipais utilizavam os TAUS para atrair projetos de crédito de carbono e investimentos privados, ainda que os títulos não tivessem qualquer validade legal plena para esse fim.
Em Oeiras do Pará, uma análise do Ministério da Gestão e da Secretaria de Patrimônio da União revelou a duplicação sistemática de coordenadas geográficas nos TAUS, o que sugere a emissão de títulos em série a partir de um modelo copiado e colado. Mesmo depois de alertas sobre sobreposições com áreas do Incra, as emissões continuaram. Em outro caso, uma engenheira de Brasília registrou uma área de 33 mil hectares a mando de um empresário de Goiânia, usando o nome de um morador local — uma estratégia que, segundo servidores ouvidos por auditorias internas, “recria o Brasil Colônia”.
A empresa Biotec Amazônia, que se apresentava como parceira do programa, também está sob escrutínio. Seu conselho chegou a incluir Paulo Bengtson, primo de Damares e pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular. A Biotec promovia a ideia de monetizar a floresta e as comunidades amazônicas a partir de tecnologia, mas acabou servindo como ponte para investidores privados e missões religiosas entrarem no Marajó com a bênção do governo federal.
Em 2023, o programa “Abrace o Marajó” foi oficialmente extinto por decisão do governo Lula, após relatórios técnicos apontarem inúmeras irregularidades. O MPF agora cobra de Damares R$ 5 milhões por danos morais coletivos, sustentando que a ex-ministra instrumentalizou o poder público para promover fake news e favorecer interesses políticos, econômicos e religiosos. Apesar das investigações, Damares deve retornar ao arquipélago em maio de 2025, desta vez como senadora pelo Distrito Federal. Em nota, sua assessoria afirmou que ela pretende “constatar com os próprios olhos” a situação local, enquanto o MPF reforça que continuará apurando os danos causados pelas ações da ex-ministra.