
Vídeo exibido por Trump, sobre supostas ocorrências na África do Sul, era filmagem da Reuters feita após confronto de rebeldes no Congo. Ramaphosa ainda humilhou Trump no Salão Oval: “Não tenho um avião para lhe dar”
O presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, colaborador do grande Nelson Mandela e um dos negociadores do fim do apartheid, não se impressionou com o reality show do Salão Oval encenado pelo presidente Trump na quarta-feira (21) e, em sua visita à Casa Branca, além de deixar três brancos da comitiva – dois deles exímios jogadores de golfe – desmentirem o samba do africâner doido entoado pelo presidente megaempreendedor imobiliário, ainda na maior sutileza e com um sorriso, se desculpou por “não ter um avião para dar”.
“Desculpe que eu não tenho um avião para te dar”, rebateu Ramaphosa, com um sorriso. Até Trump teve de rir, ao ser lembrado de como foi agraciado com um Boeing-747 transformado em tapete voador de um marajá, gentileza do Qatar, cujos dirigentes leram com atenção a “Arte de Negociar”.
Como pano de fundo, a máfia do PayPal, que, como se diz no jargão do mundo financeiro, “fez uma matança” com o capital na nuvem, com figuras como Elon Musk e Peter Thiel, e outras menos notadas, como Roelof Botha, neto do último ministro das Relações Exteriores do regime do apartheid, Pik Botha, e ex-CFO do PayPal.
A juventude dourada do final do regime do apartheid, batido pela luta de libertação africana e pela solidariedade do mundo inteiro, não esconde que é saudosista do chicote e da suástica, está aí o Musk para ninguém desmentir, inclusive flagrado fazendo a saudação nazista ‘Sieg Heil” no comício de início de governo de Trump.
O desempenho de Ramaphosa surpreendeu a BBC, que registrou sua “frieza” diante da situação. Trata-se de que Trump tem, atendendo a Musk e à “máfia do PayPal”, buscado reescrever a história da África do Sul, com os racistas africâners posando de vítimas e não, como o mundo inteiro sabe desde a década de 1980, carrascos da maioria negra durante o brutal apartheid, e autores dos massacres de Sharpville e Soweto.
Inclusive na semana passada Trump deu asilo a um grupo de brancos sul-africanos supostas vítimas de “discriminação”, “violência” e “roubo de terras” e seu secretário de Estado, o arquirreacionário Marco Rubio, anunciou que Washington não irá ao G-20 na África do Sul.
Uma tacada que serve para vários objetivos, como difamar a África do Sul, que levou o regime de apartheid e genocídio de Israel às barras da Corte Internacional de Justiça. Relegitimar o rascismo, colocado na defensiva pelo ocaso imperial e pela luta de milhões no mundo inteiro.
E atender aos doadores para a campanha de Trump, vários deles com dupla nacionalidade israelense-norte-americana ou sul-africana-norte-americana. E, claro, fazer o fascismo grande de novo.
Também, espicaçar os BRICS, de que a África do Sul é o primeiro integrante africano, organização que propugna por uma nova ordem mundial multipolar e com mais equidade e soberania.
FAKE TRUMP EXIBE VÍVEO DO CONGO PARA ASSACAR CONTRA ÁFRICA DO SUL
Assim, foi uma coisa de reality show, com Trump desligando as luzes do Salão Oval e, em vexaminosa exibição de ignorância, exibindo vídeo feito pela agência Reuters, no dia 3 de fevereiro, uma gravação, que, na verdade, registrou mortos em confrontos rebeldes no Congo, enquanto Musk observava em silêncio atrás de um sofá.
Um jornalista amigo da “casa” levantou a bola para Trump, perguntando o que seria necessário para convencê-lo de que as alegações de “genocídio branco” na África do Sul são falsas.
A declaração de Ramaphosa, chamando a Trump a “ouvir as vozes dos sul-africanos”, foi usada como mote para a encenação, que incluiu vídeos de oposicionistas sul-africanos, que consideram que a luta contra o apartheid estagnou, e que querem mudanças na economia e medidas mais efetivas contra a desigualdade.
A tradicional canção antiapartheid “atire no Bôer” foi exibida fora do contexto histórico e da luta política real no país. A consigna de “atire no bôer” surgiu no final do século XIX/ínicio do século XX, durante a disputa entre colonizadores de origem holandesa (hoje tidos como africâners) e os colonizadores ingleses, sobre que oprimia a maioria negra.
Uma coisa ainda mais cínica, já que a entourage de Trump vive tentando retirar da lata de lixo da história os confederados, chegando ao ponto de renomear fortes que haviam tido o nome trocado, usando homônimos de generais do escravismo.
Na África do Sul, a questão de fundo é que a minoria branca ainda detém uma parcela desproporcional da terra, aliás, arrancada de sua população nativa pelos colonos vindos da Europa.
Aquela situação descrita pelo Nobel da Paz, Bispo Desmond Tutu, de que os colonizadores chegaram trazendo a Bíblia e nós tínhamos a terra. Ao final, denunciou, os colonizadores ficaram com a terra, e os negros, com a Bíblia.
E essa era a principalidade do regime de apartheid, instaurado por um partido, em 1948, que não escondia suas afinidades com Hitler, o “desenvolvimento em separado”, com a maioria negra jogada nos bantustões e guetos, enquanto a minoria branca tinha uma existência de privilégios e massacrava quem lutava pela liberdade.
Em síntese, não admitem que a maioria negra tenha de volta a terra que lhe foi arrebatada, uma reforma agrária que em algum momento terá de acontecer. Quando há desapropriação, é feita nos termos da lei e se há problema é que está muito lenta.
A ponto de, 30 anos após a derrubada do apartheid, os negros, que são 80% da população, só possuem 4% das terras.
VIÚVAS DO APARTHEID
Ainda assim, as viúvas do apartheid usaram a nova Lei de Desapropriação assinada pelo presidente Ramaphosa em 23 de janeiro, que substitui uma lei de 1975, de quando o país vivia sob o regime de segregação racial, para desencadear ataques à África do Sul.
Ela permite a desapropriação de terras privadas de qualquer proprietário, branco ou não, para fins de interesse público, tais como projetos de infraestrutura, a expansão de serviços públicos, conservação ambiental ou distribuição equitativa de recursos, sob pagamento. A lei limita a desapropriação sem pagamento a casos de terras improdutivas, abandonadas ou degradadas ou quando a propriedade acumula dívidas.
Os racistas reciclados tentam misturar essa questão com a da violência, que é um subproduto da devastação que eles promoveram por dezenas de anos no sul do continente africano, e que, além das questões próprias de política de segurança, precisa da estabilização da sociedade, atenuando a desigualdade ainda rompante e reduzindo o desemprego.
A encenação de Trump incluiu, ainda, a exibição de supostos “túmulos de brancos”, sobre os quais ele só ouvira dizer que seriam “na África do Sul”, na tentativa de clamar por um suposto “genocídio de brancos”.
De forma hábil, Ramaphosa delegou aos integrantes brancos de sua comitiva o esclarecimento das anormalidades alegadas por Trump, a quem disse que “se houvesse genocídio de fazendeiros africâneres, posso apostar que esses três cavalheiros não estariam aqui”.
No caso, três brancos: dois jogadores de golfe de renome internacional, Ernie Els e Retief Goosen, e seu ministro da Agricultura, , John Steenhuisen, da Aliança Democrata, ex-líder oposicionista e que integra, ao lado do Congresso Nacional Africano, o governo de unidade nacional.
Quanto ao problema da violência, suas raízes estão, exatamente, na herança maldita do apartheid e seu sistema de repressão das maiorias, negação dos mínimos direitos à população negra, exclusão e pauperização extrema, sob o governo fascista do Partido Nacional, de 1948 a 1994.
Aliás, na maior parte da luta de emancipação sul-africana e pelo fim do apartheid, o governo norte-americano ficou do lado do governo racista, a ponto de, anos já sendo presidente sul-africano, Mandela ainda aparecia na lista de “terroristas” norte-americana.
Os números do Instituto de Estudos de Segurança (ISS) desmentem a “tese” do “genocídio de agricultores brancos” na África do Sul. O país registrou 27.494 homicídios em 2022/2023, uma taxa de 45 mortes por 100 mil habitantes.
Mas desses quase 28.000 homicídios, apenas entre 60 e 70 envolveram agricultores brancos — cerca de 0,23% do total.
Desde 1994, a média anual de ataques a fazendas é de 214, resultando em aproximadamente 69 homicídios por ano, sendo que agricultores brancos não são mortos em taxas superiores às de outros grupos populacionais.
Coerente com sua índole racista e xenófaba, enquanto concede asilo e privilégios a 56 racistas brancos sul-africanos, Trump deporta em massa milhares de imigrantes não-brancos e já chamou os países africanos de “países buraco de merda”.