Todas as pessoas nascidas nos Estados Unidos, têm cidadania inata, diz a Constituição dos EUA. No afã de ganhar votos dos eleitores xenófobos, Trump promete retirar com uma canetada esse direito dos filhos de imigrantes.
A ACLU – a principal entidade em defesa das liberdades civis dos EUA – classificou de “descaradamente inconstitucional” a ameaça do presidente Trump de, com uma canetada, cassar a cidadania inata a todos os bebês nascidos nos EUA, assegurada pela 14ª Emenda.
“O presidente obviamente não pode derrubar a Constituição por ordem executiva”, afirmou Omar Jadwat, chefe do Projeto de Direitos dos Imigrantes da entidade.
O jurista acrescentou que até mesmo “a noção de que ele tentaria é absurda”. A 14ª Emenda, aprovada em 1868 para dar a cidadania aos escravos e seus filhos – após a vitória na Guerra Civil -, e reafirmada na Suprema Corte em uma decisão de 1898 sobre o filho de pais chineses nascido em San Francisco, para ser modificada exigiria maioria de dois terços na Câmara e no Senado e a ratificação por três quartos dos estados.
A primeira sentença da Décima Quarta Emenda define o que é chamado de cidadania de direito de nascimento: “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à jurisdição delas, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem”, sendo que a exceção apontada se refere aos filhos de diplomatas não sujeitos às leis americanas. Nos debates no Congresso na época, os senadores deixaram claro que os filhos de trabalhadores chineses na Califórnia estariam cobertos.
A ratificação da 14ª Emenda, três anos após a 13ª Emenda – a que aboliu a escravidão -, tornou-se necessária diante dos esforços dos antigos Estados Confederados de negar a cidadania e os outros direitos políticos e legais aos ex-escravos e para revogar a decisão de 1857 da Suprema Corte (Dred Scott v. Stanford), que deliberou que os negros não tinham direitos legais, independentemente de serem escravos ou livres.
A chicana está sendo inflada como chamariz para os eleitores xenófobos acorrerem às urnas em novembro, através do programa Axios na HBO, que irá ao ar no domingo, e cujo teor foi antecipado na terça-feira. Trump vinha tratando as eleições intermediárias como um “referendo” sobre seu governo, em função do qual, manterá, ou não, o controle do Congresso. Nos últimos dias, crimes de ódio repercutiram intensamente no país.
Na entrevista, Trump encena estar surpreso de que o jornalista chapa-branca Jonathan Swan esteja “sabendo” da “proposição”, enquanto este ajeita a bola para o presidente chutar a gol: “alguns estudiosos acreditam que você pode se livrar da cidadania sem mudar a constituição”.
Ao que trump prontamente retruca assinalando que “Sempre me disseram que você precisava de uma emenda constitucional. Mas sabe o quê? Você não precisa”. “Agora eles [??] estão dizendo que eu posso fazer isso apenas com uma ordem executiva”, acrescentou cinicamente.
Ao mesmo tempo em que prometeu com um canetaço deixar sem cidadania os bebês nascidos nos EUA por serem filhos de “ilegais” ou “não-cidadãos”, Trump anunciou que está despachando mais de 5 mil soldados para a fronteira, para conter a “invasão” de miseráveis hondurenhos e começou a se referir ao pleito do dia 6 como as “eleições da caravana”.
No sábado, um neonazista, que captara a mensagem subliminar de que os “ilegais” passaram agora a ser “invasores”, matou 11 judeus idosos em uma sinagoga, após postagens nas redes deter a ajuda da Sociedade Hebraica de Ajuda aos Imigrantes, ao assentamento de refugiados sírios e da América Central em Pittsburgh.
Embora não se deva duvidar da capacidade dos conselheiros jurídicos da Casa Branca em fazer letra morta de qualquer lei, como visto na ‘legalização’ da tortura sob W. Bush, não vai ser um passeio se quiserem tentar cassar a cidadania por nascimento. Na entrevista, Trump não deu detalhes sobre como procederia, caso resolvesse ir em frente com o despautério.
Em compensação, se fartou de mentir sobre a questão. Asseverou que os EUA são “o único país do mundo onde uma pessoa entra e tem um bebê, e o bebê é essencialmente um cidadão dos Estados Unidos há 85 anos com todos esses benefícios”. “É ridículo. É ridículo. E isso tem que acabar”.
Na realidade, praticamente todo o hemisfério ocidental adota o princípio do juz solis, em que é considerado cidadão todo aquele que nasce no território do país. Do extremo norte do Canadá, ao extremo sul da Argentina, passando pelos Estados Unidos, México e Brasil, é o princípio em vigor, provavelmente porque são países em que a colonização se deu pela vinda maciça de imigrantes europeus e dos africanos escravizados – além do genocídio dos habitantes originários – e tornou necessário o princípio. Na maioria dos países da União Europeia, o princípio é o da cidadania pela descendência e não há cidadania inata automática.
Mesmo nas hostes republicanas, não há certeza de que a patranha irá emplacar. O próprio presidente da Câmara de Deputados, o republicano Paul Ryan, afirmou em entrevista à ABC News que “como um conservador, acredito em seguir o texto claro da Constituição, e acho que nesse caso a 14ª Emenda é bastante clara, e isso envolveria um processo constitucional muito, muito longo”.
Se tal “ordem executiva” entrasse em vigor, imediatamente atingiria as quase 300 mil crianças nascidas de imigrantes sem documentos nos EUA a cada ano. Se fosse aplicada retroativamente, simplesmente dobraria a população de “imigrantes ilegais” ameaçados de deportação e perseguição, para 24 milhões de pessoas.
À parte o uso eleitoreiro, a manobra revela o ânimo de tiranete: se Trump acha mesmo que pode por ordem executiva, alegando algum pretexto, revogar a 14ª Emenda sem ratificação do Congresso e dos estados, por que não outras cláusulas da Constituição, quem sabe, por razões de “segurança nacional”? Nos próximos dias, devem se multiplicar nos EUA os repúdios ao acintoso balão de ensaio de Trump.
ANTONIO PIMENTA