CAIO REARTE*
Há cerca de um século, os Estados Unidos da América consideram a América Central e a América do Sul como sua área de influência. As razões variaram ao longo dos anos. No início do século XX, era a ideologia do “Grande Porrete”, cujo nome vem de um provérbio africano que o então presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, gostava de repetir: “fale suavemente e carregue um grande porrete; você irá longe”. No berço da Guerra Fria, os anos 40 e 50, havia diversos ditadores simpáticos aos EUA, ou seja, anticomunistas. Os Somoza na Nicarágua, Fulgêncio Batista em Cuba, Trujillo na República Dominicana, Stroessner no Paraguai, Marcos Pérez Jiménez na Venezuela e por aí vai.
Em 1959 veio a Revolução Cubana, a menos de 300 quilômetros da costa dos EUA. Um grupo de guerrilheiros liderados por Fidel Castro, Raul Castro e Che Guevara derrubou o governo de Batista e se alinhou com a União Soviética. Isso fez com que a Central Intelligence Agency, a CIA, fizesse um forte investimento para derrubar Castro, culminando na tentativa fracassada de invasão na Baía dos Porcos, em 1961. Em 1963 o então presidente John F. Kennedy declarou que era necessário “usar todos os recursos para prevenir o estabelecimento de outra Cuba neste hemisfério”. Se sucederam ditaduras no Brasil, na Argentina, no Uruguai, em Honduras e na Nicarágua, entre outros.
Em 2002, após Hugo Chávez nacionalizar a exploração do petróleo na Venezuela sob o controle da Petróleos de Venezuela S. A. (PDVSA), o país sofreu um golpe de estado. Um novo presidente, Pedro Carmona, foi instalado e rapidamente reconhecido como legítimo pelos EUA. No entanto, uma movimentação rápida do exército e da população resultou na destituição de Carmona e na volta de Chávez ao poder. Este golpe é o foco do incrível documentário “A Revolução Não Será Televisionada”. Chávez ganhou sucessivas eleições até sua morte em 2013, quando seu vice, Nicolás Maduro, assumiu e se mantém na presidência até hoje. O país, apesar de ter as maiores reservas de petróleo do mundo, vive uma gravíssima crise hiperinflacionária e de abastecimento.
O giro do Brasil
Nos anos dos governos Lula e Dilma, o Brasil foi aliado da Venezuela. Por causa da crise no nosso vizinho, esse apoio foi assunto durante a campanha para a Presidência do Brasil. Outro assunto recorrente entre os eleitores foi o nosso regime militar. Por um lado, o temor de um governo de esquerda causar aqui a mesma catástrofe que Maduro causou por lá. Ao mesmo tempo, a certeza de que o regime militar combateu duramente os comunistas, e, portanto, para prevenir que o Brasil “virasse uma Venezuela”, era necessário eleger alguém da linhagem do regime militar e não da esquerda. Esse alguém foi Jair Bolsonaro, capitão reformado do Exército, do Partido Social Liberal (PSL).
Inspirado em Donald Trump – um apresentador de TV de língua solta com uma forte presença nas redes sociais que se elegeu presidente dos EUA contra todas as probabilidades – o capitão conquistou o eleitorado com o discurso anticomunista e anticorrupção – uma corrupção ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT), a principal força de esquerda no Brasil e o partido do seu oponente Fernando Haddad. Ganhou o segundo turno com 57 milhões de votos, a segunda maior votação da história do Brasil, atrás apenas daquela recebida por Lula, o líder encarcerado do PT, no segundo turno de 2006.
Num ato a favor de Bolsonaro, no domingo anterior à votação, o candidato fez um discurso inflamado contra a esquerda, dizendo que iria “varrer os marginais vermelhos” e que diversas figuras do PT, incluindo seu adversário no pleito, “iam apodrecer na cadeia”. Seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, no mesmo ato disse, em relação a Venezuela, que o Brasil iria “libertar nossos irmãos da fome e do socialismo”, que “a melhor solução para a crise migratória que nós vivemos é a saída de Maduro do poder” e que “a gente vai dar uma lição nesse narcoditador”. Ele também citou o então candidato a vice-presidência General Hamilton Mourão, que disse em sabatina à GloboNews que “a nossa próxima força de paz será na Venezuela”. Durante a apuração dos votos, o deputado estava reunido com um grupo de oposição à Maduro, o Rumbo Libertad.
Por sua vez, o presidente dos EUA, Donald Trump, falou em “opção militar” em agosto do ano passado, a respeito do nosso país vizinho. No início de setembro o New York Times fez uma matéria sobre as discussões entre oficiais dos EUA e comandantes militares da Venezuela sobre um golpe no país. No final do mesmo mês, em reunião com o presidente do Chile, Sebastián Piñera, Trump disse que iriam falar da Venezuela e que o país era um “desastre que precisa de uma limpeza”. Na segunda-feira, dia 29, um dia após o segundo turno, uma matéria da Folha com uma fonte anônima do alto escalão do governo colombiano afirmou que a Colômbia apoiaria uma operação militar contra a Venezuela lançada por Trump ou Bolsonaro. O governo colombiano, por meio de uma declaração em vídeo, negou qualquer sugestão de intervenção militar, porém a Folha não se retratou e manteve a matéria no ar. A Colômbia tem tratados militares com os EUA, faz manobras em conjunto com o exército estadunidense e é um forte aliado do país na região. No mesmo dia, Trump ligou para Bolsonaro e disse que teve uma boa conversa com o presidente eleito, e que os EUA irão trabalhar junto com o Brasil “no comércio, forças armadas e tudo mais”.
Também no dia 29, o ex-diretor da CIA e atual secretário de Estado Mike Pompeo ligou para Bolsonaro e conversou sobre o compromisso com a democracia e os direitos humanos e sobre a cooperação na política externa, incluindo sobre a Venezuela. Em relação aos direitos humanos, vale lembrar que a CIA e o Departamento de Estado sabiam que o alto escalão do regime militar no Brasil, na década de 70, estava diretamente envolvido na execução ilegal de pessoas consideradas “subversivas”, como revelou o pesquisador Matias Spektor em maio deste ano. Esses assassinatos, no entanto, não geraram comoção nos EUA e nem resultaram em sanções ou qualquer tipo de manifestação negativa pública, na época.
Finalmente, na sexta-feira, dia 2, o Conselheiro de Segurança Nacional de Trump, John Bolton, fez elogios à eleição de Iván Duque, na Colômbia, e Jair Bolsonaro, no Brasil, atacou os governos de Cuba, Venezuela e Nicarágua, os chamando de “troika da tirania”, e disse que os EUA vão impor sanções a eles. Apesar do nome de “conselheiro”, Bolton é um dos quatro do National Security Council (Conselho de Segurança Nacional), a mais alta entidade de comando do governo federal dos EUA, que eu já descrevi em um texto anterior.
Por mais que uma operação militar brasileira contra a Venezuela pareça algo saído de um livro de ficção, essa não é a única opção na mesa. Além da pressão diplomática, o Brasil pode aceitar servir de base para forças de “Operações Especiais” dos militares estadunidenses, ou até para mercenários e clandestinos da CIA. Na preparação da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, já citada aqui, um dos países que serviu de base foi a Nicarágua do ditador Somoza. Na Síria, rebeldes foram treinados pelos EUA na Jordânia e na Turquia para tentar derrubar Bashar al-Assad. Os EUA tem uma “oportunidade de ouro” para tais operações com um governo tão amigável no Brasil. Será que vão aproveitá-la ou vão respeitar a soberania do nosso vizinho sul-americano?
*Caio Rearte é colaborador do HP e editor do
blog caiorearte.blogspot.com – Twitter: caiorearte2