
Centenas de palestinos na Cidade de Gaza acorreram nesta segunda-feira (11) ao funeral dos seis jornalistas premeditadamente mortos por um ataque aéreo israelense na véspera, entre eles Anas al Sharif, o respeitado correspondente da Al Jazeera
Os jornalistas cumpriam seu dever de mostrar o genocídio em curso ao mundo, desde uma tenda de imprensa ao lado do portão principal do Hospital Al Shifa.
Uma multidão carregou pelas ruas os corpos dos jornalistas assassinados, e as insígnias que usavam “Press” (imprensa), do Al Shifa ao Cemitério Sheikh Radwan, no centro de Gaza.
A atrocidade desencadeou uma onda de repúdio vinda do mundo inteiro, agravada por ser, talvez, a salva inicial do ataque anunciado na sexta-feira pelo primeiro-genocida Netanyahu à Cidade de Gaza, na tentativa de emplacar sua solução final para a questão palestina.
Além de Al Sharif, foram mortos por Israel o correspondente da Al Jazeera, Mohammed Qreiqeh, os operadores de câmera Ibrahim Zaher, Moamen Aliwa e Mohammed Noufal, e um repórter freelance, Mohammad al-Khaldi.
A Al Jazeera condenou o “assassinato seletivo” de seus jornalistas, o que chamou de “tentativa desesperada de silenciar vozes que expõem a captura e ocupação em curso de Gaza”.
Sharif e seus companheiros foram homenageados pelo Sindicato dos Jornalistas da Palestina. No ataque também ficaram feridos mais três profissionais da imprensa, segundo Repórteres Sem Fronteiras.
“O assassinato de jornalistas por Israel indica que está planejando algo grande para a Cidade de Gaza”, disse o diretor do Hospital Al Shifa, Mohammed Abu Salmiya, à Al-Jazeera. “Um grande massacre, mas desta vez sem transmiti-lo em som ou imagem”, acrescentou.
Nas reações iniciais ao covarde assassinato, em Oslo uma marcha terminou com uma vigília em frente ao Parlamento norueguês, com manifestantes carregando fotos de dezenas de jornalistas palestinos mortos. Na capital da Suécia, Estocolmo, manifestantes hastearam bandeiras palestinas e carregaram cartazes denunciando o silenciamento de jornalistas. No Reino Unido, manifestantes se reuniram em frente à sede da BBC para denunciar a cumplicidade com o genocídio em Gaza e o ataque a jornalistas.
REGIME FASCISTA DE ISRAEL ASSUME O ASSASSINATO DO JORNALISTA
Emblemático da impunidade e desfaçatez com que o regime fascista age, em um comunicado divulgado logo após o ataque, o exército israelense confirmou ter alvejado al-Sharif, alegando cinicamente que ele seria um “terrorista do Hamas”.
Dez dias antes, em depoimento ao Sindicato dos Jornalistas Palestinos, Al Sharif enumerou as várias ameaças que recebera para que interrompesse a cobertura. O pai dele, de 65 anos, fora morto antes em um bombardeio israelense à sua casa.
Em repúdio à chacina dos jornalistas, a missão palestina nas Nações Unidas acusou Israel de “assassinar deliberadamente” al-Sharif e Qreiqeh, descrevendo-os como entre os “últimos jornalistas remanescentes” em Gaza. “Enquanto Israel continua a limpar etnicamente Gaza, seu inimigo continua sendo a verdade: os bravos jornalistas que expõem seus crimes hediondos.”
Em um comunicado, o Hamas descreveu o assassinato como parte de um “ataque generalizado a jornalistas sem precedentes em qualquer guerra”, e visando silenciar a cobertura da mídia em Gaza antes de “grandes crimes” planejados contra palestinos. Pediu, ainda, a condenação pela comunidade internacional e medidas imediatas para responsabilizar os líderes israelenses pelos assassinatos.
A SANGUE FRIO
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Irã, Esmail Baghaei, pediu ao mundo que responsabilize Israel. “Um crachá de imprensa não é um escudo contra criminosos de guerra genocidas que temem que o mundo testemunhe suas atrocidades”, enfatizou, acusando Israel de assassinar os jornalistas “a sangue frio”.
O primeiro-ministro do Catar, xeque Mohammed bin Abdulrahman bin Jassim Al Thani, criticou fortemente Israel pelo assassinato de jornalistas da Al Jazeera em Gaza, chamando-o de uma violação chocante da liberdade de imprensa.
ONU CONDENA “VIOLAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO”
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, condenou o assassinato de jornalistas da Al Jazeera em Gaza, disse seu porta-voz, e pediu uma investigação independente. “Pelo menos 242 jornalistas foram mortos em Gaza desde o início da guerra”, disse o porta-voz Stephane Dujarric em nome de Guterres. “Jornalistas e trabalhadores da mídia devem ser respeitados, protegidos e autorizados a realizar seu trabalho livremente, sem medo e sem assédio.”
O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos condenou o assassinato de seis jornalistas palestinos em Gaza, dizendo que as ações dos militares israelenses representaram uma “grave violação do direito internacional humanitário”.
“Israel deve respeitar e proteger todos os civis, incluindo jornalistas”, disse o escritório em um post no X. “Pedimos acesso imediato, seguro e desimpedido a Gaza para todos os jornalistas.”
A chefe de política externa da UE, Kaja Kallas, disse que o bloco “condena o assassinato de cinco jornalistas da Al Jazeera em um ataque aéreo [militar israelense] do lado de fora do Hospital al-Shifa na Cidade de Gaza, incluindo o correspondente da Al Jazeera, Anas al-Sharif”.
“REPÓRTER CORAJOSO E EXTRAORDINÁRIO”
A Anistia Internacional condenou o ataque como um crime de guerra sob a lei internacional e lembrou Al Sharif como um repórter “corajoso e extraordinário”. Em 2024, Al Sharif recebeu o Prêmio de Defensor de Direitos Humanos da Anistia Internacional Austrália por sua resiliência e compromisso com a liberdade de imprensa.
“Nós, da Anistia Internacional, estamos devastados e com o coração partido”, disse Mohamed Duar, porta-voz da Anistia Internacional Austrália no território palestino ocupado. “Anas dedicou sua vida a ficar diante da câmera, expondo as atrocidades de Israel contra os palestinos e documentando a verdade para que o mundo pudesse testemunhar”.
O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) disse estar “chocado” com o assassinato dos jornalistas palestinos por Israel. “O padrão de Israel de rotular jornalistas como militantes sem fornecer evidências confiáveis levanta sérias questões sobre sua intenção e respeito pela liberdade de imprensa”, disse a diretora regional do CPJ, Sara Qudah.
Repórteres Sem Fronteiras (RSF) condenou o “assassinato premeditado” pelo exército israelense de Al Sharif, a quem descreveu como “um dos jornalistas mais famosos da Faixa de Gaza (e) a voz do sofrimento que Israel impôs aos palestinos em Gaza”.
O TESTAMENTO DE AL SHARIF
O portal Middle East Eye publicou na íntegra a despedida do jornalista Al Sharif, gravada em abril, quando ele já estava sob repetidas ameaças de morte pelos fascistas israelenses, e agora divulgado no X por sua equipe, como solicitara Al Sharif.
“Esta é a minha vontade e a minha mensagem final. Se estas palavras chegarem até vocês, saibam que Israel conseguiu me matar e silenciar minha voz”, alertou Al Sharif.
Primeiramente, que a paz esteja com vocês e a misericórdia e as bênçãos de Alá. Alá sabe que me esforcei ao máximo e dediquei toda a minha força para ser um apoio e uma voz para o meu povo, desde que abri meus olhos para a vida nos becos e ruas do campo de refugiados de Jabalia. Minha esperança era que Alá prolongasse minha vida para que eu pudesse retornar com minha família e entes queridos à nossa cidade original, Asqalan (Al-Majdal), ocupada desde 1948. Mas a vontade de Alá veio primeiro, e Seu decreto é final.
Vivi a dor em todos os seus detalhes, experimentei o sofrimento e a perda muitas vezes, mas nunca hesitei em transmitir a verdade como ela é, sem distorção ou falsificação – para que Alá possa testemunhar contra aqueles que permaneceram em silêncio, aqueles que aceitaram nossa matança, aqueles que sufocaram nossa respiração e cujos corações não se comoveram com os restos mortais dispersos de nossas crianças e mulheres, sem fazer nada para impedir o massacre que nosso povo enfrenta há mais de um ano e meio.
Confio a vocês a Palestina – a joia da coroa do mundo muçulmano, o coração de cada pessoa livre neste mundo.
Confio a vocês seu povo, suas crianças injustiçadas e inocentes que nunca tiveram tempo para sonhar ou viver em segurança e paz. Seus corpos puros foram esmagados por milhares de toneladas de bombas e mísseis israelenses, dilacerados e espalhados pelos muros.
Peço a vocês que não deixem que as correntes os silenciem, nem que as fronteiras os impeçam. Sejam pontes para a libertação da terra e de seu povo, até que o sol da dignidade e da liberdade nasça sobre nossa pátria roubada.
Confio a vocês o cuidado da minha família. Confio a vocês minha amada filha Sham, a luz dos meus olhos, a quem nunca tive a chance de ver crescer como sonhei. Confio a vocês meu querido filho Salah, a quem eu desejava apoiar e acompanhar pela vida até que ele se tornasse forte o suficiente para levar minha carga.
Carreguem o fardo e continuem a missão.
Confio-lhes minha amada mãe, cujas orações abençoadas me trouxeram até onde estou, cujas súplicas foram minha fortaleza e cuja luz guiou meu caminho. Rogo a Alá que lhe conceda força e a recompense em meu nome com a melhor das recompensas.
Também confio a vocês minha companheira de longa data, minha amada esposa, Umm Salah (Bayan), de quem a guerra me separou por muitos dias e meses. Mesmo assim, ela permaneceu fiel ao nosso vínculo, firme como o tronco de uma oliveira que não se curva — paciente, confiando em Alá e assumindo a responsabilidade na minha ausência com toda a sua força e fé.
Peço-lhes que estejam ao lado deles, que sejam seu apoio diante de Alá Todo-Poderoso.
Se eu morrer, morrerei firme em meus princípios. Testifico diante de Alá que estou satisfeito com Seu decreto, certo de encontrá-Lo e seguro de que o que está com Alá é melhor e eterno.
Ó Alá, aceite-me entre os mártires, perdoe meus pecados passados e futuros e faça do meu sangue uma luz que ilumine o caminho. de liberdade para o meu povo e minha família. Perdoem-me se falhei e orem por mim com misericórdia, pois cumpri minha promessa e nunca a mudei ou a traí.
Não se esqueçam de Gaza… E não se esqueçam de mim em suas sinceras orações por perdão e aceitação.
Anas Jamal Al-Sharif 06-04-2025