
Adultização, sexualização e lucro: O mecanismo por trás da exploração infantil que é favorecido pelos algoritimos das Big Techs
O vídeo publicado pelo youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, ultrapassou 34 milhões de visualizações no YouTube e provocou uma reação em cadeia no Congresso, no governo e na sociedade civil. A denuncia da chamada “adultização” — a exposição de crianças a comportamentos, práticas e responsabilidades típicas de adultos — e revela como o funcionamento dos algoritmos e o modelo de negócios das plataformas digitais, as chamadas “Big Techs” favorecem a disseminação e monetização desse tipo de material, abrindo espaço para crimes como pedofilia e exploração sexual infantil.
A gravação, feita em tom de alerta, apresenta casos concretos de menores submetidos a situações constrangedoras ou sexualizadas e demonstra, por meio de um experimento social, como é possível condicionar o algoritmo de redes como o Instagram a recomendar apenas vídeos de crianças e adolescentes, transformando o conteúdo “inocente” em um ponto de encontro virtual para criminosos.
O impacto foi imediato: oito novos projetos de lei foram protocolados na Câmara dos Deputados, somando-se a 45 propostas já em tramitação desde 2023, e líderes políticos passaram a defender com mais força a regulação das redes sociais e a responsabilização direta das big techs.
REAÇÃO POLÍTICA
As denúncias expostas por Felca causaram grandes reações no Congresso Nacional e no governo federal.
O ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, voltou a defender a regulamentação das redes sociais e disse que o governo Lula (PT) vai enviar uma lei para tratar do assunto “nos próximos dias”. “Essas empresas hoje faturam bilhões e bilhões de dólares no mundo inteiro e elas não querem ser fiscalizadas porque, infelizmente, muitas delas ganham dinheiro —e ganham muito dinheiro— patrocinando, estimulando e viabilizando crimes”, afirmou o ministro, em entrevista à Rádio Alvorada.
No último domingo, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), também defendeu uma ação firme contra a “adultização” de crianças. “O vídeo do Felca sobre a adultização das crianças chocou e mobilizou milhões de brasileiros. Esse é um tema urgente, que toca no coração da nossa sociedade. Na Câmara, há uma série de projetos importantes sobre o assunto. Nesta semana, vamos pautar e enfrentar essa discussão”.
A ministra da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann (PT-RS), defendeu que as plataformas sejam responsabilizadas para que a internet deixe de ser “uma arma poderosa nas mãos de pedófilos, incitadores de mutilações e suicídios, golpistas e criminosos”.
Relator de um dos projetos mais importantes sobre a regulação das redes sociais no Brasil conhecido como PL das Fake News (PL 2630/2020), o deputado Orlando Silva ressaltou que a proteção das crianças nas redes “só será efetiva com a REGULAÇÃO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS!”
“O vídeo-denúncia do influenciador Felca trouxe à tona um debate inadiável: a necessidade de proteger nossas crianças contra criminosos que lucram com a exploração infantil nas redes sociais”, disse em seu perfil no X.
A deputada Érika Hilton (PSOL-SP) considerou “criminoso” que “as redes sociais e ‘big techs’ lucrem com tudo isso, recomendam esses conteúdos a novos usuários, os transformam em ‘tempo de tela’, visualizações de anúncios e, por fim, monetizam a pornografia infantil e a exploração sexual infantil”.
Em tom mais incisivo, Guilherme Boulos (PSOL-SP) ligou o problema diretamente à resistência das empresas em aceitar regulação:
“As plataformas não querem se responsabilizar pelo compartilhamento de conteúdos criminosos porque eles já fazem parte dos negócios. É muito importante que um influenciador com a popularidade do Felca ajude a jogar luz em crimes que acontecem debaixo dos olhos de todos nas redes sociais. Depois do vídeo, alguns dos perfis denunciados foram derrubados pelas plataformas. A pergunta é: por que só agora? […] Se regular, elas vão ter que moderar. Mas os bilionários por trás das plataformas não estão interessados. […] Além de lucrar com conteúdos que expõem nossos filhos a criminosos que se escondem atrás do celular, lucram com o uso das nossas informações pessoais. […] Nós vamos acompanhar os desdobramentos das investigações sobre a atuação dessas plataformas no Brasil e seguiremos lutando pela regulação delas.”
Assista o vídeo:
CASOS DENUNCIADOS NO VÍDEO
Bel para Meninas – Felca apontou que o canal “extrapolava a normalidade quando buscava o engajamento”, expondo a menor a constrangimentos como “dar uma lambida” em bebida que não gostava. Bel, hoje maior de idade, defendeu os pais e disse que sempre quis a carreira online.
Hytalo Santos – Apresentado por Felca como “uma das paradas mais cabulosas que envolve criança em conteúdo nefasto”, o influenciador ostentava luxo e convivia com adolescentes, incluindo Kamylinha, emancipada aos 16 e submetida a implante de silicone aos 17.
“Ela faz show para adultos de minissaia, com danças sensuais, e o público consumindo drogas e álcool. […] Uma menor de idade sexualizada”.
Caroliny Dreher – Começou com danças “inocentes” aos 11 anos e, aos 14, já tinha conta em site adulto, com conteúdo circulando em fóruns de pedofilia. “De cada vez mais inocente, para culminar ao ponto de se tornar absolutamente criminoso. É uma das coisas mais asquerosas e corrompidas que eu já vi na minha vida”.
O PAPEL DOS ALGORITMOS
No experimento, Felca criou um perfil novo no Instagram, sem histórico de navegação, e passou a interagir com poucos vídeos de crianças e adolescentes em situações aparentemente comuns — danças, brincadeiras, interações familiares. Bastaram algumas curtidas e visualizações para que o algoritmo começasse a recomendar, em sequência, exclusivamente conteúdos desse tipo.
Em questão de horas, o feed se transformou em um espaço saturado de imagens de menores, muitas vezes em poses, roupas ou situações ambíguas que atraem e mantêm a atenção de um público específico: predadores sexuais.
“É assustador porque eles pegam um conteúdo inocente e transformam num ponto de troca mesmo”, disse Felca, destacando que as seções de comentários funcionam como pontos de encontro para pedófilos, que usam códigos, emojis e gifs para se comunicar.
Felca chamou essa lógica de recomendação de “algoritmo P”, uma alusão direta ao papel da tecnologia na manutenção de redes de pedofilia online. Ele mostrou que, em um perfil de uma menina de 8 anos, “absolutamente todos os comentários são com esses gifs” e que a maioria dos seguidores é composta por adultos que não têm relação aparente com a criança, mas interagem constantemente com o conteúdo.
O caso expõe uma falha central no modelo de negócios das redes sociais: os algoritmos são treinados para maximizar tempo de tela e engajamento, sem filtros eficazes para impedir que isso ocorra em conteúdos com menores. Quanto mais o usuário consome determinado tipo de vídeo, mais o sistema entrega recomendações similares, criando um ciclo vicioso que beneficia financeiramente a plataforma por meio da venda de anúncios.
Essa dinâmica, segundo especialistas, não é acidental, mas consequência direta de um design que prioriza lucro sobre segurança. A lógica algorítmica, aplicada sem transparência, transforma até vídeos familiares ou escolares em iscas de engajamento que acabam nas mãos erradas — um fenômeno que só tende a ser controlado com regulação que imponha deveres claros às big techs, como a remoção proativa e a desmonetização de conteúdos nocivos.
FALHAS ESTRUTURAIS
Especialistas afirmam que as redes sociais não foram projetadas pensando na proteção infantil e que o modelo de negócios das plataformas, voltado para o engajamento “a qualquer custo”, cria condições para que conteúdos perigosos se multipliquem.
João Francisco Coelho, advogado do Instituto Alana, ressaltou que a denúncia de Felca mostrou como o ambiente das redes é “propício” para a violência contra menores e que o PL 2628/2022 é essencial para obrigar as empresas a incorporar “os direitos das crianças em seu design” — desde algoritmos até mecanismos de denúncia e moderação transparente.
O pediatra Daniel Becker alertou para impactos emocionais duradouros: “A criança pode estar achando que está sendo filmada para um momento de família […] e, na verdade, ela está sendo usada pelos pais para ganhar […] dinheiro ou fama”.
A pesquisadora Marie Santini, do NetLab/UFRJ, criticou a monetização desses conteúdos: “Elas têm toda capacidade técnica de identificar o conteúdo automaticamente ou semi automaticamente, retirar esse conteúdo e poderiam optar por não ganhar dinheiro com isso. […] À medida que elas optam por ganhar dinheiro com isso, elas são corresponsáveis por esse fenômeno”.
Fabro Steibel, diretor do ITS, destacou que todas as soluções técnicas existentes têm custos e que a regulamentação deve equilibrar privacidade e segurança. Ele propôs um sistema de identidade digital universal via gov.br e modernização das polícias para rastrear redes criminosas, defendendo que apenas proibir o acesso infantil não resolve.
O consenso entre os especialistas é que, sem regulação clara e obrigatória, a estrutura atual das plataformas continuará incentivando conteúdos prejudiciais, pois o engajamento — e o lucro — segue sendo o principal objetivo.
Projetos de lei após o vídeo:
- PL 3856/2025, de Cleber Verde (MDB-MA) – Reconhece a adultização precoce como forma de violência psicológica no ECA e estabelece medidas preventivas.
- PL 3852/2025, de Marx Beltrão (PP-AL) – Institui a Lei Felca, com medidas de prevenção, proibição e criminalização da adultização e sexualização infantil online.
- PL 3851/2025, de Capitão Alden (PL-BA) – Define ações para prevenir, identificar e punir adultização precoce, pornografia infantil e pedofilia digital.
- PL 3848/2025, de Yandra Moura (União-SE) – Criminaliza a sexualização de menores em conteúdos audiovisuais e prevê bloqueio de algoritmos e contas.
- PL 3840/2025, de Dr. Zacharias Calil (União-GO) – Tipifica o crime de adultização digital de criança ou adolescente.
- PL 3837/2025, de Duarte Jr. (PSB-MA) – Cria a Política Nacional de Conscientização e Combate à Adultização Infantil.
- PL 3836/2025, de Silvye Alves (União-GO) – Criminaliza a “adulterização” e a exploração de imagens de menores para lucro na internet.
- Requerimentos de Maurício Carvalho (União-RO) e Túlio Gadêlha (Rede-PE) para audiências públicas, além de moção de aplauso a Felca por “relevantes serviços prestados à sociedade”.
Outras propostas já em tramitação:
Além dos novos projetos, desde 2023 tramitam no Congresso 45 PLs que tocam no tema, como:
- PL 3434/2025 (Amom Mandel) – Verificação etária, controle parental e classificação de conteúdos.
- PL 3374/2025 (Rafael Brito) – Criminaliza conteúdos que induzam menores a atos prejudiciais.
- PL 2304/2025 (Marx Beltrão) – Criminaliza desafios online perigosos.
- PL 2394/2023 – Combate à sexualização infantil e pedofilia com IA.
- PL 3666/2023 – Obriga uso de filtros contra conteúdos impróprios.
- PL 2628/2022 (Alessandro Vieira) – Proíbe publicidade direcionada e perfilamento de crianças; já aprovado no Senado.