
Perversidade foi relatada ao canal 4 da tevê britânica pela cirurgiã plástica Nada Al Hadithy, que esteve na Faixa de Gaza em missão humanitária do Royal College of Surgeons, para atuar no hospital Nasser
Ao retornar de uma missão humanitária em Gaza, a cirurgiã plástica Nada Al Hadithy relatou ao canal 4 da tevê britânica um caso que a marcou, um ataque particularmente perverso contra um dos auxiliares de sua equipe, “meu instrumentador”, com quem trabalhava “todos os dias”.
“Ele foi seguido até em casa por um drone quadricóptero. E o drone [melhor dizendo, o militar que o operava] não o matou no caminho para casa, esperou até que ele estivesse em sua tenda, cumprimentasse seus três filhos e os matou a todos”.
Em suma, um auxiliar médico, não um alvo militar, não alguém do Hamas, não um “terrorista”, mas sim um instrumentador de um hospital sitiado pela ocupação, é seguido desde o hospital passo a passo por um drone pilotado à distância por algum israelense, que se dá ao desfrute de seguir o civil palestino. Ele poderia ter disparado o míssil para liquidá-lo, seria um crime de guerra. Mais um.
Mas não, o operador de drone israelense deixa-o ir adiante, mata a curiosidade – é com a família, com os três filhos que vai se encontrar -, aguarda o encontro e então chacina a todos na tenda.
BESTIALIDADE DO MAL
O que diria Hannah Arendt sobre isso, alguém poderia perguntar. Alguém poderia escrever algumas linhas sobre a banalidade do mal ou sobre a incapacidade à empatia e a se por nos sapatos de outrem, sobre como aquilo que se dizia “a única democracia” do Oriente Médio se revela aos olhos chocados do mundo como um Estado de Extermínio, esfomeamento em massa e limpeza étnica.
A Dra. Nada relatou, ainda, que “nada poderia tê-la preparado” para a extensão da fome que testemunhou em primeira mão nos pacientes que tratou, “mesmo sabendo antes de ir que a situação era desesperadora”. Ela foi a Gaza como parte de uma missão humanitária do Royal College of Surgeons.
“O que realmente me impressionou foi a implacável quantidade de feridos chegando. Eu estava no pronto-socorro, e os faxineiros estavam trabalhando a todo vapor, tentando limpar o sangue do chão, e não conseguiam acompanhar.”
OS FERIDOS DA FILA POR COMIDA
“Foi em um dos dias em que os centros de distribuição de alimentos israelense-americanos atiraram contra as pessoas às 3 da manhã”. Pessoas – ela acrescentou – que haviam sido “orientadas a estarem ali no meio da noite, tendo atravessado zonas de evacuação para buscar comida e ajuda.”

Sobre o que acontece nessas “armadilhas mortais” – como a ONU chamou os quatro centros de distribuição da assim chamada Fundação Humanitária de Gaza (GHF) -, a doutora Nada falou de “uma menina de 10 anos que levou um tiro na perna em um dos locais do GHF e, posteriormente, teve uma amputação. Essa menina adorava dançar antes de ter uma amputação, e esse é um ferimento que mudou sua vida”.
“Vi um estudante de enfermagem ser baleado nas costas e na parte da frente, o que levou a um aneurisma que comprimiu todos os nervos do seu braço dominante, o que significa que ele não pode mais usar esse braço. É completamente inútil. Vi outro homem ser baleado nos testículos.”
Dos colegas médicos do Hospital Nasser, ela ouviu que haviam observado um padrão nesses ferimentos, às vezes viam muitas pessoas chegando no mesmo dia, todas baleadas nos testículos ou então todas baleadas no quadrante superior do estômago. Parecia que havia um direcionamento muito específico acontecendo”.
Novamente, alguém poderia perguntar: o que Hannah Arendt diria sobre isso?
Quanto aos riscos a que as equipes médicas estavam submetidas, a Dra. Nada lembrou que, conforme a ONU, “mais de 1.500 profissionais de saúde foram mortos” em Gaza.
ABNEGAÇÃO E EMPATIA
Em contrapartida à desumanidade das forças de ocupação israelenses, a cirurgiã plástica lembrou alguns dos muitos episódios que presenciou de abnegação, empatia e solidariedade entre os palestinos, apesar da fome, limpeza étnica e genocídio em curso.
“Eu tinha outra paciente, esposa de um médico. Ela estava completamente emaciada. Ela havia perdido o braço, a perna e estava com muita dor e sofrimento. Não tínhamos analgésicos suficientes para ela, não tínhamos medicamentos suficientes, e ela tinha uma infecção muito grave que seu corpo não conseguia combater”.
Essa paciente, acrescentou a doutora Nada, “descobriu que um dos meus pacientes com queimaduras, de seis anos de idade, tinha queimaduras devastadoras de 40% da área total da superfície corporal, queimaduras em toda a superfície corporal. Precisava de vinagre para tratar sua infecção por Pseudomonas, e o hospital estava sem vinagre. E ela nos deu vinagre para ele”.
A VIDA DE HASSAN
“O povo de Gaza tem tanta decência e tanta dignidade, e eles continuam apoiando uns aos outros e suas comunidades, aconteça o que acontecer”, enfatizou a doutora Nada.
“Perguntei a um dos meus enfermeiros: ele era um enfermeiro incrível. Ele era tão trabalhador, tão comprometido. Eu disse: ‘Conte-me sobre sua vida, Hassan’. Ele respondeu: ‘Eu tinha três filhos. Meu mais novo foi morto há seis meses. Meu mais velho foi morto há pouco menos de dois anos. Só me resta um filho’”.
“Eu não conseguia imaginar um mundo onde meus colegas perdessem seus filhos nessa função, e perdessem suas vidas dessa maneira, e ainda assim viessem trabalhar para fazer o melhor por suas comunidades. Eles são os heróis deste conflito e desta guerra”, ela sublinhou.
Indagada pelo entrevistador Krishnan Guru-Murthy se conseguiria voltar, Nada respondeu resoluta: “Espero voltar”.
4 DE 18 JÁ MORTOS
Há muitos problemas, ela acrescentou. “Cinquenta por cento dos candidatos a paramédicos são rejeitados pelo governo israelense. E é obviamente um problema real, especialmente para a cirurgia plástica, porque durante o cerco, nos últimos 17 anos, não houve capacidade para as pessoas se movimentarem e receberem treinamento. Portanto, restam pouquíssimos cirurgiões plásticos em Gaza”.
“Eu fui antes, em 23 de março, com o Royal College of Surgeons, para treinar 18 delegados como parte de um programa longitudinal online. E quatro desses 18 delegados já faleceram”.
Melhor dizendo, foram assassinados pelas forças fascistas israelenses e sua guerra colonial e de supremacia racial.
“Um deles é Ahmad al-Maqadmeh, que foi encontrado do lado de fora do Hospital Al-Shifa, com as mãos amarradas nas costas, com a mãe, que era médica, e uma bala na cabeça. E ele era alguém que me enviava continuamente imagens de pacientes pelos quais fazia o melhor que podia. E ele ganhou uma bolsa de estudos do nosso Royal College of Surgeons. E, no entanto, não fazemos o suficiente. É desesperador”.