
O governo de fato do Nepal anunciou neste sábado a dissolução do parlamento e a nomeação de premiê interina, a ex-presidente da Suprema Corte, Sushila Karki
Sushila Karki teve seunome referendado por uma assembleia virtual, na polêmica plataforma Discord, e acatado pelo exército e pelo presidente ornamental Ram Chandra Paudel, enquanto os partidos que depuseram a monarquia em 2008 e vinham em várias composições governando o país desde então – comunistas, social-democratas e outros patriotas -, praticamente jogados na clandestinidade.
Há a promessa de eleições gerais parlamentares em março do próximo ano, o que implica na violação da constituição e cassação de todos os parlamentares no meio do mandato.
O corte de recolher começa a ser aliviado, mas o saldo da revolução colorida é devastador: o parlamento, o palácio de governo, tribunais, sedes de partidos, o principal jornal de Katmandu e até o Hotel Hilton devastados pelas chamas.
A contagem de mortos subiu para 50, entre manifestantes e policiais, e mais de 1000 feridos. A turba também assaltou as prisões, e quase 13.000 presos se escafederam.
A derrubada do governo incluiu ainda, cenas como um ministro espancado e arrastado pelas ruas, só de cueca, e o ateamento de fogo à casa de um ex-primeiro-ministro, com a mulher dele trancada dentro. As sedes do Partido Comunista do Nepal (U-ML), do partido Congresso Nepalês e do Partido Comunista (Centro Maoísta) foram incineradas.
Na vizinha Índia, começa a se espalhar nas redes sociais a percepção das semelhanças entre o atual processo no Nepal e a revolução colorida em Bangladesh, o que causa apreensão já que ali foi instaurado um governo bastante distante de Nova Délhi. E as forças políticas que haviam, nos anos 1970, liderado a independência de Bangladesh, após os confrontos de rua e as acusações de corrupção se viram substituídas pelos mesmos extremistas islâmicos que na época se opuseram ao rompimento com o Paquistão, agora repaginados como forças anticorrupção. Um economista agraciado pelo Nobel por suas elucubrações sobre o microcrédito e o empreendedorismo, Muhammad Yunus, foi alçado a premiê provisório.
Em pouco mais de 24 horas, o primeiro-ministro Khadga Prasad Sharma Oli, do PCN-UML, renunciava e na prática o governo deixava de existir.
SINDICALISTAS DENUNCIAM CONSPIRAÇÃO
“É uma conspiração muito mais profunda do que imaginamos”, denunciaram sindicalistas nepaleses. “Fomos orientados a não sair de casa. Está se tornando cada vez mais claro que há uma grande conspiração por trás dessa ‘manifestação da Geração Z’.”
“Depoimentos de testemunhas revelam que os jovens foram provocados a ir com uniformes universitários e empurrados para a linha de frente. No Parlamento, aqueles que incitaram a incursão começaram a vandalizar, e balas foram disparadas contra os jovens — até mesmo de ambulâncias —, o que indica claramente que não se tratava da polícia, mas de um ataque deliberado”, acrescenta a denúncia.
“Isso demonstra uma tentativa sistemática de atacar e desestabilizar todas as três esferas de governo, do nível central ao local”, afirmam. “Após a renúncia do primeiro ministro, incendiaram-se edifícios, aumentaram o vandalismo e os saques em todo o país.”
“Surpreendentemente, o exército só entrou em ação e mostrou presença quase 8–9 horas depois”, fato que levou os sindicalistas nepaleses a apontarem que isso “não é apenas um protesto, mas uma conspiração geopolítica contra o Nepal.”
“Grandes empresas privadas por todo o país foram completamente incendiadas, o que comprova ainda mais a natureza organizada deste complô. Em nome de uma suposta insurreição da Geração Z, os jovens foram manipulados e usados para atacar o Judiciário, o Executivo e o Legislativo — do nível central ao local — enquanto, ao mesmo tempo, tentavam sufocar financeiramente a nação ao atingir empresas-chave.”
“Ainda mais perigosamente, essa conspiração incluiu incendiar instituições estatais vitais, atacar os níveis de governo local, municipal, provincial e central, buscar anular a Constituição que o povo construiu ao longo de anos de luta e dissolver o Parlamento — a instituição representativa eleita — para criar um vácuo e impor ilegitimidade. Esta é uma conspiração séria, cuidadosamente premeditada e executada para desestabilizar o Nepal”, concluem os líderes sindicais, advertindo sobre uma crise crônica de longo prazo no país, mas que os responsáveis “não escaparão da prestação de contas”.
USAID IMPULSIONA A HAMI NEPAL
Um canal indiano do youtube, o Republic World, entrevistou um participante das manifestações, Ashutosh Basnet, que inclusive foi baleado no rosto e no tórax com balas de borracha, e apareceu em vídeos nas redes discursando aos participantes.
O mesmo canal revelou que, em 2023, a Usaid – a agência dos EUA de “ajuda” – forneceu US$ 600 milhões, uma quantia enorme para o pequeno país asiático de 30 milhões de habitantes, distribuída sob rubricas de “treinamento em advocacia e ativismo”, “fomento à democracia inclusiva”, “fortalecimento do espaço cívico” e “suporte à sociedade civil e às vozes coletivas”.
Um dos “coletivos” agraciados pela Usaid foi a Hami, que se dedica ao “ativismo nas redes sociais”. À mídia indiana, um deles disse que há três meses vinha sendo feita nas redes a campanha contra os nepo-kids e a corrupção.
Nos protestos, também chamaram a atenção cartazes e faixas em inglês, com frases como “Wake Up” [Despertem] e “Youth Against Corruption”, parecendo recém saídos das páginas dos manuais de Soros, mas de lavra da Hami.
Fundada informalmente em 2015 e registrada em 2020, a organização é presidida pelo filantropo Sudhan Gurung. No Instagram, o grupo convocou protestos no Maitighar Mandala em 8 de setembro, publicou vídeos sobre “como protestar” e incentivou os estudantes a se juntarem com mochilas, livros e uniformes da faculdade.
De acordo com o The Commune, a Hami Nepal recebeu ainda o apoio de empresários, incluindo Deepak Bhatta – tido como ligado a um controverso acordo de aquisição de armas – e Sulav Agrawal, do Shanker Group, que foi preso durante a Covid-19 por venda de termômetros no mercado negro. A empresa também recebeu apoio do Dr. Sanduk Ruit – oftalmologista e laureado com o Prêmio Magsaysay; o prêmio é notável por seus laços da Guerra Fria com a influência dos EUA.
O DEPOIMENTO DE ASHUTOSH
Segundo o estudante de 19 anos, que se disse “um dos geeks” nepaleses, o gatilho foi o banimento das redes sociais, havia a frustração com “a corrupção e o favorecimento dos filhos dos políticos”.
Ele disse que havia há meses a “tendência” nas redes, inspirada na experiência da mobilização na Indonésia, onde também apareceram as postagens dos nepo-kids, e que ele também produziu vídeos. “Tendência” que surgiu a partir de alguns influencers.
O principal era aproveitar o que os próprios filhos dos políticos expunham em suas redes, tipo viagens ao exterior, bolsas Gucci, jantares em restaurantes, pose junto a carros de luxo. No dia 8, ele foi por conta própria para a manifestação.
Ashutosh, indagado pelo entrevistador Arnabi Goswami sobre se houve “infiltradores tirando proveito”, diante da vandalização ocorrida no que era convocado como manifestação pacífica, admitiu que “sem dúvida havia gente criminosa que queria fazer coisas violentas”.
Sobre as imagens de vídeo que mostram manifestantes com armas, Aushutosh asseverou que foram tomadas da polícia, que fugiu quando o caldo esquentou.
Quanto à escolha da premiê interina, o jovem disse “não ter a menor ideia de quem era”, exceto que tinha 73 anos e chefiara a Suprema Corte. Segundo ele, o prefeito de Katmandu, Balendra Shah, deu “apoio moral”. Este, um ex-rapper que se elegeu como “antissistema”, numa espécie de versão nepalesa de Milei ou Bukele.
A plataforma Discord, agora sugerida como um instrumento da luta anticorrupção no Nepal, é mais conhecida no mundo inteiro, e também no Brasil, por sua ligação com crimes no ambiente digital e discurso de ódio. “Com certeza, hoje é a plataforma que mais preocupa”, disse em maio à BBC Tatiana Azevedo, pesquisadora independente sobre movimentos extremistas online e responsável por relatórios usados como base pelo poder público.
A MÃO NÃO TÃO ESCONDIDA DAS BIG TECHS
Na quinta-feira (4), o governo Oli, cumprindo determinação da Suprema Corte, ordenara que as Big Techs – entre as quais as plataformas Facebook, Istagram, Whatsapp, X e Rumble – cumprissem com a exigência de se registrarem no país legalmente, o que vinham empurrando com a barriga há quase dois anos. A Tik Tok cumpriu, e continuou funcionando.
Assim como as plataformas das Big Techs fizeram no Brasil quando esteve em discussão no Congresso sua regulamentação, elas fizeram agressivamente disparos contra o cumprimento da exigência legal, alegando “ameaça” à liberdade de expressão, acendendo o estopim.
O Nepal é o terceiro país do sul da Ásia a sofrer uma revolução colorida, sendo precedido por Bangladesh e Sri Lanka. Situado entre a Índia e a China, o país ingressara na Rota da Seda. No sábado, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi enviou mensagem de parabéns à primeira-ministra interina, depois de ter, quando a situação estava fora de controle, apelado aos “irmãos e irmãs nepalesas” para que o caminho do diálogo fosse retomado. Ele reiterou que a Índia estava “firmemente comprometida com a paz, o progresso e a prosperidade do povo do Nepal”.