
NÉSIO FERNANDES (*)
No coração de Vitória, o Palácio Anchieta não é apenas a sede administrativa do governo; é um termômetro da alma política do Espírito Santo. Sua história, que se iniciou como um complexo jesuíta em 1551 com a participação direta de São José de Anchieta, parece ter infundido no local uma vocação para a resiliência e a moderação.
Ao observarmos a trajetória dos governos que ocuparam seus salões desde que o prédio foi oficialmente batizado em 1945, emerge uma realidade histórica fascinante: a de um Estado que, em seus momentos de liberdade, consistentemente rejeitou os extremos da direita do espectro político local.
Essa tendência não é recente. No efervescente período democrático de 1945 a 1964, a política capixaba foi um campo de batalha entre o bloco dominante do PSD, de perfil liberal-desenvolvimentista, e a oposição ferrenha da UDN, que representava a direita mais conservadora e moralista da época.
O que os registros históricos nos mostram é que, para garantir a governabilidade e frear o avanço udenista, as forças vitoriosas precisaram de alianças amplas. A eleição de Jones dos Santos Neves em 1950, por exemplo, só foi possível com o apoio crucial do PTB de Getúlio Vargas.
Mais emblemática ainda foi a ascensão de Francisco Lacerda de Aguiar, o “Chiquinho”. Para quebrar a hegemonia do PSD, ele se elegeu governador por duas vezes (1954 e 1962) pelo PTB, liderando uma “Coligação Democrática” que serviu de guarda-chuva para diversas correntes, incluindo comunistas que atuavam na clandestinidade. Ou seja, a derrota da direita mais intransigente daquele tempo foi pavimentada por frentes que incluíam a esquerda.
O hiato autoritário da Ditadura Militar (1964-1985) impôs governadores biônicos, alinhados a um regime de força. Foi um período sombrio, marcado no estado pela atuação de figuras ligadas à repressão e ao notório “Esquadrão da Morte”. Contudo, assim que as urnas voltaram a ser soberanas, a vocação democrática do Espírito Santo ressurgiu com vigor impressionante.
A eleição de Gerson Camata (PMDB) em 1982 foi o marco zero de uma nova era. Desde então, há mais de 40 anos, o Palácio Anchieta não foi ocupado por nenhum governo de extrema-direita eleito pelo povo. Pelo contrário, o que vimos foi uma sucessão de governos de centro-esquerda — como os de Albuíno Azeredo (PDT) e Vitor Buaiz (PT) — e de centro e centro-esquerda, com a longa alternância entre Paulo Hartung e Renato Casagrande (PSB).
Mesmo em algumas versões mais liberais na economia, essas gestões mantiveram-se no campo democrático e progressistas na agenda de costumes, em contraste com ondas de radicalismo que varreram o país.
A prova de fogo mais recente veio nas eleições de 2022. Enquanto a polarização nacional atingia seu ápice, o eleitorado capixaba deu uma resposta contundente: a candidatura do bolsonarismo e da direita radical foi derrotada nos dois turnos. A vitória de Casagrande com quase 54% dos votos válidos foi um recado claro de que pautas antidemocráticas e o conservadorismo beligerante não encontram eco majoritário para governar o Estado. Nem mesmo atores que, nacionalmente, saudavam o momento eleitoral do bolsonarismo, com seu radicalismo de extrema direita, aceitaram apoiar o representante local deste campo como governador do Estado.
A proteção simbólica de Anchieta, um intelectual humanista que dedicou a vida ao diálogo e ao serviço, parece se manifestar nas escolhas de seu povo. Um povo que, repetidamente, prefere a moderação ao radicalismo, a construção de pontes à demolição de consensos. Temos um Palácio protegido por seu patrono, mas, acima de tudo, por uma povo que aprendeu a valorizar a estabilidade e a democracia.
Que essa vocação continue a ser a bússola a guiar o futuro do Espírito Santo.
(*) Nésio Fernandes é médico sanitarista e ex-secretário de Saúde do Espírito Santo.
Publicado originalmente no jornal A Gazeta, de Vitória, Espírito Santo.