
Além de ação na ANPD, PT e PSOL preparam Adin contra a venda; governo Ratinho Júnior insiste no leilão para novembro, mesmo com processo suspenso pelo TCE
O Ministério Público do Paraná (MP-PR) acionou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) para que apure as violações à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no processo de privatização da Companhia de Tecnologia da Informação e Comunicação do Paraná (Celepar). A estatal, responsável pelo tratamento de dados públicos e serviços digitais do governo, é alvo de um projeto de venda defendido pelo governador Ratinho Júnior (PSD), que pretende concluir a privatização ainda este ano.
A representação, encaminhada ao diretor-presidente da ANPD, Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior, foi assinada pela promotora de Justiça Cláudia Rodrigues Martins Maddalozzo, da 5ª Promotoria de Proteção ao Patrimônio Público. No documento, a promotora solicita que a autoridade fiscalize o processo e avalie se a privatização não fere a LGPD, especialmente no que se refere ao tratamento de dados sensíveis e estratégicos do Estado.
VIOLAÇÃO DA LGPD
A promotora destacou que a lei estadual que autorizou a privatização da Celepar prevê a criação do Conselho Estadual de Governança Digital e Segurança da Informação (CGD-SI), mas não confere ao colegiado a gestão dos dados sensíveis — em especial os protegidos pelo artigo 4º da LGPD, que devem permanecer sob controle exclusivo do poder público. O projeto foi encaminhado pelo governo logo após as eleições de 2022 e aprovado pela Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) em novembro.
Ela lembrou ainda que a Casa Civil do governo orientou secretarias e órgãos estaduais a renovarem seus contratos com a Celepar por até cinco anos e a compartilharem softwares e códigos-fonte. O objetivo seria garantir ao futuro comprador o controle de contratos e sistemas públicos desenvolvidos com dinheiro estatal, sem necessidade de licitação.
A promotora questiona a ausência de regras claras sobre o destino desses contratos. Segundo ela, eles “envolvem sistemas críticos cuja continuidade, segurança e confidencialidade devem ser resguardadas com rigor, sob controle público, a fim de proteger o interesse coletivo e garantir o cumprimento dos princípios constitucionais da legalidade, moralidade, eficiência e segurança da informação”.
Levantamento indica que a Celepar mantém contratos que somam pelo menos R$ 2,2 bilhões com secretarias e órgãos estaduais — acordos que, se não forem preservados sob tutela pública, podem ser transferidos à iniciativa privada.
SEGURANÇA PÚBLICA EM RISCO
A representação lembra que o artigo 4º da LGPD veda o tratamento de dados pessoais relacionados à segurança pública, defesa nacional e repressão penal por empresas privadas. A tentativa do governo de segregar internamente essas informações não foi suficiente para garantir a segurança jurídica e técnica, segundo o MP.
“Por meio de tal dispositivo veda-se, de maneira categórica, o tratamento integral de dados pessoais relacionados à segurança pública, defesa nacional e atividades de investigação e repressão de infrações penais por entidades privadas — o que inevitavelmente ocorreria com a eventual transferência da Celepar à iniciativa privada”, afirmou Cláudia Rodrigues Martins Maddalozzo.
A promotora também fez referência à Nota Técnica do Ministério Público Federal (MPF) elaborada quando o governo Jair Bolsonaro incluiu o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) no programa de privatizações.
“Assim como o Serpro no plano federal, a Celepar atua no plano estadual como prestadora de serviços essenciais à estrutura governamental, centralizando o tratamento de dados e desenvolvendo soluções indispensáveis à segurança institucional e à formulação de políticas públicas”, disse.
Ela destacou ainda que o artigo 7º da Lei Estadual 17.480/2013 determina que o processamento de dados públicos é competência exclusiva da Celepar. Em parecer emitido em maio, o procurador Vinícius Klein, da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), sugeriu revogar o artigo, reconhecendo-o como entrave jurídico à privatização.
“Nada obstante, com a eventual desestatização da Companhia, a manutenção dessa competência por uma empresa privada revelaria clara inconstitucionalidade, conforme alertado pela própria Procuradoria-Geral do Estado, que reconheceu o artigo como um entrave jurídico à privatização, diante da sua incompatibilidade com a natureza jurídica da nova entidade”, apontou.
Para a promotora, a lei aprovada “omite-se quanto a aspectos essenciais relacionados à proteção de dados” e ignora “a eventual necessidade de novo consentimento por parte dos titulares, diante da mudança do operador de tratamento — que deixaria de ser o Estado do Paraná, ente público, e passaria a ser uma entidade privada, com interesses e responsabilidades distintas”.
Por isso, ela pediu que a ANPD instaure procedimento administrativo sancionador para apurar “a conformidade da desestatização da Celepar à legislação vigente, com especial atenção à proteção de dados pessoais e à segurança das informações públicas”.
AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
Além da atuação do MP, as direções nacionais de PT e PSOL anunciaram que ingressarão com Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra a lei que autoriza a venda da Celepar. A decisão foi tomada durante audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, convocada pelo deputado federal Tadeu Veneri (PT), com participação de representantes dos servidores da estatal, parlamentares e especialistas.
A audiência também contou com reuniões no Palácio do Planalto, onde a comitiva foi recebida pela ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, e pela secretária de Direitos Digitais, Lilian Cintra de Melo.
Durante o encontro, parlamentares lembraram que o governo do Paraná suspendeu recentemente uma licitação vencida pela BK Instituição de Pagamento S.A. (BK Bank), fintech contratada para gerir o programa Cartão Comida Boa, após suspeitas de ligação com o Primeiro Comando da Capital (PCC). O contrato era de R$ 108 milhões.
Segundo Arilson Chiorato (PT), líder da oposição na Alep, “A venda da Celepar significa entregar a soberania digital do Paraná nas mãos de terceiros. Aliás, não só do Paraná, uma vez que a companhia desenvolve programas em outros estados. A audiência tanto na Câmara quanto na SRI tem por objetivo alertar diferentes autoridades sobre os riscos que essa entrega de dados ao setor privado significa”.
PRIVATIZAÇÃO SUSPENSA, MAS RATINHO INSISTE
A privatização da Celepar segue suspensa pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-PR). Em decisão cautelar do dia 11 de setembro, o conselheiro substituto Livio Fabiano Sotero Costa determinou que o governo apresente estudos técnicos sobre a desestatização. A Justiça do Trabalho também barrou o plano de desligamentos voluntários (PDV), após a juíza Sandra Mara Flugel Assad, da 12ª Vara do Trabalho de Curitiba, entender que “algumas de suas cláusulas podem causar prejuízos irreversíveis aos empregados da ré (Celepar) de forma imediata, ainda que o PDV não se concretize”.
Apesar das decisões, o governo mantém a expectativa de realizar o leilão ainda em novembro. Ratinho Júnior sustenta que a operação trará economia de R$ 19 milhões por ano com cortes de cargos comissionados. Porém, já foram empenhados cerca de R$ 1 bilhão para viabilizar a venda.
Para Tadeu Veneri, “A venda está sendo feita em um processo obscuro. Mas nós sabemos que o lucro é o alvo. E o interesse público está fora dessa operação, que se sobressai por ser a primeira empresa pública de tecnologia no país a ser vendida”.
Ele também ressaltou que a Celepar é a última estatal paranaense ainda pública e defendeu que sua privatização “afronta a Lei de Proteção de Dados. É um crime contra a população que ficará à mercê dos interesses privados sem nenhuma forma de proteção. Temos a expectativa que o Tribunal de Contas da União se manifeste porque há irregularidades gritantes no processo, como a exigência feita pelo governador do Paraná a todos os setores da administração pública de extensão de todos os contratos com a Celepar por cinco anos”.
O deputado listou uma série de irregularidades no processo:
“A Procuradoria do Estado do Paraná autorizou acesso aos dados para uma empresa terceirizada, recebendo acesso a informações privilegiadas. Uma contratação sem licitação. Além disso, há um processo de fornecimento de dados para uma empresa espanhola em um contrato de R$ 250 milhões de reais, contratações duplicadas, um contrato com a empresa Google por R$ 670 milhões sem licitação”, alertou.
Ele também criticou a tentativa de comercialização de informações pessoais: “O presidente da Celepar fez um vídeo dizendo que ia monetizar os dados do povo paranaense e, após a repercussão negativa, apagou o vídeo”.
Em gravação obtida pelo Brasil de Fato Paraná, o diretor-presidente da empresa, André Gustavo Garbosa, chegou a declarar:
“Imagina o seguinte cenário: vai ter alta temporada no litoral. Eu sou dono de uma mercearia ou lojinha e quero saber o que o pessoal anda comprando. Essas informações nós temos, e a gente pode vender. A venda de informações é um negócio em que todo mundo ganha. Isso é a monetização de dados, e nós estamos trabalhando forte na Celepar”.
A deputada federal Lenir de Assis (PT-PR) também expressou indignação com o processo:
“Mais uma vez o estado do Paraná nos envergonha. O governo Ratinho Junior (PSD) e seus aliados estão expondo dados que protegem os cidadãos. Todos nós temos dados que estão sob a guarda do estado que fornecemos em algum momento e o que se pretende é vender”, criticou.
SOBERANIA DIGITAL AMEAÇADA
Para o representante do Comitê de Trabalhadores contra a Privatização, Jonsue Trapp Martins, a venda representa um ataque direto à soberania digital:
“Quando a gente fala de venda da Celepar, estamos falando da soberania digital do Paraná e do Brasil”, alertou.
Ele lembrou que a estatal é responsável por “fazer a máquina pública ser ágil digitalmente, resultado de um trabalho de 60 anos” e criticou a ausência de diálogo: “A lei foi aprovada em apenas oito dias e sem discussão alguma. Disseram que o modelo ia ser discutido e até hoje o governo não esclarece nada em nenhuma audiência pública”.
A Márcia Honda, da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Processamento de Dados (Fenadados), destacou que “há um lobby gigantesco das big techs que está encontrando resistência dos funcionários da Celepar que defendem a existência de uma empresa pública como pilar da soberania digital brasileira”.
O advogado Paulo Jordanesson de Carvalho Marcos, funcionário da estatal, reforçou: “A empresa tem importante função de implementação de políticas públicas. A venda acaba com o interesse público e vira um comércio com dados das pessoas”.
Para o especialista Fabrício Guimarães Lopes, da Agência Nacional de Dados, “dados de segurança, saúde, educação podem ficar expostos”, e alertou que “a busca pelo lucro pode diminuir os gastos com a proteção de dados”.