“O Brasil precisa de mais ação do setor público e não de sua redução. As medidas de inovação e aperfeiçoamento da atividade estatal devem fazer parte de seu cotidiano. Não cabe se utilizar do subterfúgio de um necessário e permanente aumento da eficiência da ação do Estado para, na verdade, reduzir a presença do mesmo e abrir espaço para o capital privado”
PAULO KLIASS*
Há 37 anos o Brasil assistia à promulgação da nova Constituição, que viria a enterrar o entulho do período da ditadura, o regime que havia se instalado graças ao golpe militar de 1964. Em 5 de outubro de 1988, o deputado federal Ulysses Guimarães – presidente da Constituinte – anunciava ao País a entrada em vigor da chamada Constituição Cidadã. Tratava-se de uma peça jurídica que procurava expressar o amplo movimento que se formou em torno da defesa da democracia, da denúncia da ditadura e da luta por um País mais justo e menos desigual.
Além do desenho político-institucional de uma Nação efetivamente democrática, os parlamentares estavam preocupados com a instituição de uma nova ordem econômica e social que priorizasse a busca do desenvolvimento nacional e a garantia de espaços e recursos para a construção de um Estado de Bem-Estar Social. Ocorre que esse modelo consolidado na Nova Carta estava na contramão das reformas neoliberais e privatizantes que estavam sendo implementadas pelo mundo afora. Poucos anos depois viria a queda do Muro de Berlim, o fim da União Soviética e as mudanças verificadas nos países do chamado “socialismo real”, com a reafirmação da força do esmagamento ideológico promovido pelo Consenso de Washington. Alguns autores mais afoitos, como Francis Fukuyama, arriscaram até mesmo a festejar aquilo que qualificavam como sendo o fim da História.
Assim, a versão primeira da Constituição Federal (CF) reafirmava os direitos sociais básicos como sendo públicos e universais, tais como assistência social, educação, saúde e previdência social. O texto incorpora o conceito de seguridade social, criando um orçamento específico para dar conta das despesas e dos programas de assistência social, saúde e previdência social. O texto se preocupa com a questão da existência de uma força de trabalho no Estado com características republicanas e estabilidade no emprego. Assim, é constituído o Regime Jurídico Único (RJU) para absorver os servidores públicos em todos os níveis da administração – União, Estados e Municípios. Além disso, os dispositivos mantêm o subsolo e suas riquezas como sendo monopólio e propriedade da União. Finalmente, o texto estabelece a necessidade de um modelo de planejamento governamental, por meio de planos de desenvolvimento nos níveis nacional e regional.
HISTÓRICO DE RETROCESSOS: DESDE A PROMULGAÇÃO EM 1988
No entanto, apesar de todos os elementos de progresso social presentes no documento, o fato é que desde a sua aprovação teve início um processo de descaracterização da Constituição. Em 1992 foi apresentada e votada a primeira emenda, tratando de remuneração de deputados estaduais e vereadores. Em seguida vieram mais 135 emendas. Ou seja, uma média superior a 4 emendas constitucionais por ano até 2025. Na verdade, a senha para tal desmonte do espírito inicial da Constituição já havia sido dada por José Sarney em meio aos trabalhos dos constituintes. Ele havia assumido a Presidência da República em razão da morte de Tancredo Neves e em 1987 declarou que o Brasil se tornaria um País ingovernável caso aquele projeto de texto preparado pela Comissão de Sistematização fosse aprovado pelo plenário. Ele usou um horário na televisão para um pronunciamento com tom de chantagem e ameaça.
O fato é que Sarney representava muito bem os interesses de parcelas expressivas da elite brasileira, sempre bastante atrasada e oligárquica. Assim, os grandes meios de comunicação reproduziam o discurso liberal e anti Estado, buscando a todo instante desconstruir a presença do setor público na economia e mesmo na prestação dos serviços públicos fundamentais. Porém, a onda da renovação e da esperança que atravessava o conjunto da sociedade na expectativa da superação do período ditatorial atropelou as tentativas de obstrução articulada pelos conservadores.
O campo das elites aguardou um tempo para se recompor politicamente retomar a inciativa. Assim, tem início o processo de desmonte logo a partir de 1992. Do ponto de vista político-eleitoral encontraram campo aberto já nos governos de Fernando Collor e depois de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Mas as mudanças no texto constitucional ocorreram também sob os governos do Partido dos Trabalhadores de 2003 a 2016, sob os mandatos presidenciais de Lula e Dilma. Tratava-se de alterações visando a introduzir no texto da Constituição dispositivos que estivessem em sintonia com os pressupostos da privatização e da liberalização, além de medidas visando a redução da dimensão e das atribuições do Estado.
MUDANÇAS CONSERVADORAS EM SEQUÊNCIA
As principais mudanças ocorreram no domínio da tributação, dos regimes previdenciários e dos direitos dos servidores públicos. Além disso, uma das primeiras Emendas Constitucionais (EC) foi promulgada ainda em 1995: a EC nº 6 estabelece a revogação do art. 171 da CF, eliminando o tratamento diferenciado que havia para empresas nacionais em comparação às empresas estrangeiras. Esse foi o instrumento fundamental para a abertura generalizada que se desenvolveu, a partir de então, às multinacionais e ao capital internacional de forma ampla.
Em seguida houve um conjunto de ECs que reduziam direitos dos trabalhadores do setor público e promoviam novas regras no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), bem como nos regimes próprios de previdência (RPPs) dos servidores públicos. O discurso a respeito da suposta ineficiência estrutural do Estado em suas atividades se instala em setores da sociedade e do Parlamento, facilitando o caminho para a destruição do aparelho estatal e o desmonte das políticas públicas.
A conjuntura atual apresenta mais um conjunto de propostas apontando para uma, assim chamada, “Reforma Administrativa”. Coloco o termo entre aspas, pois na verdade trata-se de uma retomada da intenção de promover uma verdadeira “deforma” na legislação e na institucionalidade da administração pública em nosso País. O que se verifica na tramitação de matéria no interior da Câmara dos Deputados (CD) é uma tentativa de ressuscitar a PEC 32 de triste memória. Aquela proposição havia sido encaminhada pelo governo Bolsonaro em 2020, mas graças à oposição das entidades de servidores públicos e a rejeição generalizada apresentada por especialistas e entidades da sociedade civil, o texto não avançou em sua tramitação.
No entanto, o atual Presidente da CD, Hugo Motta (Republicanos/PB) optou por recuperar algum tipo de protagonismo no legislativo conjugado com distribuição de afagos e agrados aos representantes de nossas elites. Dentre as medidas de sua estratégia estava a retomada do debate a respeito da Reforma Administrativa. Para tanto, constituiu um Grupo de Trabalho (GT) no interior da Câmara e nomeou como relator do mesmo o seu colega Pedro Paulo (PSD/RJ). O parlamentar carioca é conhecido por suas posições bastante antenadas ao conservadorismo e ligadas com os atores vinculados ao sistema financeiro.
O resultado foi a apresentação de um conjunto de medidas em uma versão preliminar tratando do tema. O pacote envolve um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), um Projeto de Lei Complementar (PLP) e um Projeto de Lei (PL). As intenções iniciais ali presentes são ousadas e apontam para uma recuperação das tentativas anteriores fracassadas de redução da dimensão e das atribuições do Estado. As proposições avançam para reduzir direitos dos servidores e eliminar garantias republicanas, ao criar uma estrutura da administração pública paralela às determinações do Regime Jurídico Único. Isso significa abrir espaço para ingresso de empregados no serviço público sem a estabilidade e com salários mais reduzidos.
RETROCESSO DO MOMENTO: REFORMA ADMINISTRATIVA
Por outro lado, as medidas definem a necessidade de adaptação de Estados e Municípios a um novo ordenamento de austeridade fiscal, com foco nas despesas primárias e com pessoal. Para facilitar a aceitação das mudanças, os documentos buscam se apresentar sob uma roupagem pretensamente moderna e sofisticada. O GT focou a reforma em 4 eixos:
- “Estratégia, governança e gestão”, com foco no planejamento estratégico, no acordo de resultados e na criação de um bônus por desempenho opcional, mantida a diligência com as contas públicas por meio de revisão de gastos;
- “Transformação digital”, para modernização da máquina pública e digitalização plena de processos e serviços;
- “Profissionalização do serviço público”, com foco no planejamento da força de trabalho, na ampliação dos níveis de progressão da carreira, no remodelamento do estágio probatório, na adesão de municípios e estados ao Concurso Nacional Unificado (CNU) e na implantação de uma tabela remuneratória única; e
- “Extinção dos privilégios”, para enfrentamento das desigualdades e excessos no serviço público.
No entanto, os aspectos mais essenciais das mudanças podem ser identificados nas próprias palavras do coordenador do colegiado:
(…) “Não é uma reforma para quatro anos, é uma reforma de Estado pensada para o presente e para as futuras gerações, independentemente de quem esteja à frente do governo” (…) [GN]
Como de pode depreender, o objetivo é estabelecer um novo retrocesso no desenho político-institucional do Estado brasileiro, buscando recuperar as propostas que estiveram em pauta em todas as mudanças levadas a cabo desde a aprovação da Constituição em 1988. Cabe às forças progressistas – alinhadas com uma visão apoiada no desenvolvimento econômico, social e ambiental – articular, mais uma vez, um amplo movimento para evitar mais esta tentativa de ataque originada no campo conservador e neoliberal.
O Brasil precisa de mais ação do setor público e não de sua redução. As medidas de inovação e aperfeiçoamento da atividade estatal devem fazer parte de seu cotidiano. Não cabe se utilizar do subterfúgio de um necessário e permanente aumento da eficiência da ação do Estado para, na verdade, reduzir a presença do mesmo e abrir espaço para o capital privado. É fundamental que o governo Lula se posicione oficialmente contra tais intentos reducionistas de direitos e que visam impedir o setor público de cumprir com suas funções no futuro.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal