Cartola simplesmente

Cartola, com Dona Zica (foto: Divulgação/Discos Marcus Pereira)


IRAPUAN SANTOS

Há 117 anos, exatamente em 11 de outubro de 1908, nascia, no Catete, mais precisamente, na rua Ipiranga, no Rio de Janeiro, Angenor de Oliveira, poeta, compositor, cantor, instrumentista, um dos nossos maiores sambistas, que entraria para a história da cultura nacional como Cartola.

Aos 11 anos mudou-se para o Morro da Mangueira e seu nome, com o passar do tempo, ficou indissociável da Escola de Samba Mangueira, numa trajetória que se iniciou ainda garoto, tocando cavaquinho nas festas de rua até a criação, ao lado de Carlos Cachaça e outros futuros baluartes do Bloco dos Arengueiros, em 1925, que unido a outras agremiações do Morro, daria origem à grande verde e rosa da Mangueira, fundada em 1929. Acompanhemos suas palavras:

Eu resolvi chamar de Estação Primeira, porque era a primeira estação de trem, a partir da Central do Brasil, onde havia samba… As cores verde e rosa foram homenagem ao rancho em que meu pai, Sebastião de Oliveira, saía, lá em Laranjeiras, o Arrepiados. Era um rancho formado pelos operários da Fábrica Aliança.”

Ao longo da vida Cartola teve diversas ocupações, como tipógrafo, lavador de carros, pedreiro (de onde veio seu apelido, porque usava um chapéu para proteger a cabeça do cimento e da tinta) e até contínuo de repartição pública, sempre concomitante com as madrugadas de samba e boemia. Época em que compôs “Divina Dama”, “Alegria”, “Não Quero Mais Amar a Ninguém” e até vendeu sambas a Mário Reis e Chico Alves.

No início dos anos 60, ao lado de sua mulher Dona Zica, inaugura o “Zicartola”, restaurante na rua dos Andradas, no centro do Rio, que reunia a nata dos sambistas como Zé Kéti, Nelson Cavaquinho, Geraldo das Neves, Padeirinho, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, e a juventude engajada, como Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, Carlos Lyra, todos integrantes do CPC da UNE. Tempos depois seria exatamente a união do samba de morro, representado por Zé Kéti, a música regional, representada por João do Valle e a juventude progressista, representada por Nara Leão, dirigidos por jovens e talentosos diretores, que levaria para o palco o Show Opinião, que foi o primeiro e vigoroso protesto cultural conta a ditadura.

No entanto, o conjunto de sua obra surgiria com força para o público quando, já aos 66 anos de idade, gravaria em 1974 seu primeiro disco para a Gravadora Marcus Pereira, a quem sempre devemos render homenagens, porque foi um exemplo ímpar de importância da existência de gravadoras nacionais. O primeiro disco seria sucedido por mais 3 discos, onde sua poesia e a riqueza harmônica de seus sambas, acompanhadas por um regional de primeira linha, onde despontavam Dino 7 Cordas, Meira, violão de 6 cordas, canhoto no cavaquinho, Copinha na flauta e até Radamés Gnatalli, ao piano, e uma percussão esmerada, descortinam um verdadeiro universo musical que se transformou em referência fundamental para a música brasileira.

“Festa da vinda”, “Sala de Recepção”, “As Rosas Não Falam”, “Disfarça e Chora”, “Alvorada”, “Corra e Olha o Céu”, “Inverno do Meu Tempo”, “Tempos Idos”, “Minha”, “Verde que te quero Rosa” e tantas outras, revelam um cantor de voz curta, grave, porém precisa, e um compositor refinado, o que mais tarde veríamos refletido em alguns grandes momentos de Paulinho da Viola.

Os sambas-enredos da Mangueira entre 1929 e 1948 foram em sua maioria feitos por Cartola, Carlos Cachaça e Arturzinho. Sem dúvida o samba-enredo “Ciência e Arte”, composto por Cartola e Carlos Cachaça em 1947. é precioso. Os versos finais são

E neste rude poema destes pobres vates

Há sábios como Pedro Américo e César Lattes”

Há que se destacar aqui a riqueza da rima perfeita de uma palavra do latim erudito com outra de origem hebraica (Vates/Lattes), ao mesmo tempo em que se coloca em destaque o grande pintor Pedro Américo, criador de grandes quadros realistas retratando momentos da história nacional e o grande físico brasileiro César Lattes, orgulho científico da nacionalidade.

Mas devemos registrar outros belos momentos da sua produção poética. Sem dúvida a expressão literária tem como um dos objetivos “tornar sensível a ideia mediante uma imagem” e sem dúvida Cartola foi mestre em criar imagens inusitadas.

Em “As rosas não falam”, se observarmos o núcleo principal da letra, temos os versos:

Volta ao jardim, na certeza que devo chorar,

Pois bem sei que não queres voltar para mim

Queixo-me às rosas, mas que bobagem.

As rosas não falam

Simplesmente as rosas exalam

O perfume que roubam de ti”

Temos a impressão de que os versos são livres, mas notamos a ocorrência de rimas internas, para garantir o ritmo do discurso (chorar/voltar e jardim/mim), e rimas paralelas com o mesmo objetivo (falam/exalam).

E ao trabalhar com o binômio negação/afirmação que está na raiz de várias estruturas do discurso, ele primeiro nega a animização, palavra originária do grego “ânima” que significa alma e que consiste em atribuir alma aos seres da natureza. Voltando ao raciocínio ele primeiro nega: “Que bobagem, as rosas não falam”, para em seguida afirmar a animização no verso “Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti”. Ou seja, atribui às rosas uma ação “roubar”, própria dos seres humanos e ao mesmo tempo introduz a metáfora de que a mulher amada é uma rosa.

Em “Festa da vinda”, onde encontramos outra imagem inusitada, temos:

Já perdi tantos amores

Não notei diferença

Pensei que passavam séculos

Sem a sua presença

Misturada entre as pedras preciosas do mundo

Com um simples olhar a você não confundo”

Neste caso temos a conhecida figura da metonímia, em que o poeta substitui o continente pelo conteúdo, ao criar a hipérbole “Pensei que passavam séculos”, na evidente substituição de dias ou meses ou anos, por “séculos”.

Mas, com certeza, os dois versos finais são a grande imagem do poema, quando Cartola, num movimento inverso ao da animização atribui à amada a qualidade de “pedras preciosas”, e não deixa de ser impactante pensarmos numa mulher mergulhada em pedras preciosas.

Finalmente, temos também os belos versos de “Acontece”, em que o poeta compõe em decassílabos, que são chamados de versos heroicos e foram usados por Camões, nos Lusíadas, mas que em alguns momentos entremeia versos alexandrinos.

Bem, por vezes gostamos de determinada letra ou música e não sabemos bem por que, muitas vezes o segredo está na capacidade infinita que certos seres humanos têm de gerar belas imagens para retratar o mundo ou o seu próprio estado de espírito.

Cartola foi, sem dúvida, um destes seres humanos especiais, a quem sempre devemos render nossas homenagens e procurar difundir.

Essa é nossa homenagem a Cartola simplesmente.

Niterói, 12 de outubro de 2025

Irapuan Santos é presidente do Congresso Nacional Afro-Brasileiro (CNAB), membro do Comitê Central do PC do B e licenciado em Letras pela UERJ e em Música pela UFRJ.

Referências:

– EBM Enciclopédia da Música Brasileira. Editor Marcos Antonio Marcondes. São Paulo./SP. 1977

– SILVA, Marília T.Barboza da, CACHAÇA, Carlos. OLIVEIRA FILHO, Arthur L de. 1Fala Mangueira. José Olympio. Rio de Janeiro/RJ. 1988.

SANTOS, Irapuan Ramos. Zé Kéti, O Samba Tem Opinião. Hora do Povo. São Paulo/SP, p. 8. 22/09/2021.

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