A falsa narrativa do BBB, por Paulo Kliass

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal. Foto Jane Araújo/Agência Senado

“Os gastos financeiros têm se aproximado perigosamente da trágica marca de R$ 1 trilhão ao longo de 12 meses”

PAULO KLIASS*

Uma vez consumada a perda de validade da Medida Provisória (MP) n° 1303 durante a votação na Câmara dos Deputados em 08 de outubro, teve início uma verdadeira guerra de narrativas para tentar consolidar uma posição a respeito do conjunto do processo. O fato concreto e objetivo é que uma articulação da direita com a extrema direita naquela casa legislativa aprovou, no último dia de tramitação da dita MP, um pedido de retirada da matéria da pauta. Desta maneira, ao menos formalmente, naquele momento não foi votado o conteúdo das proposições embutidas no texto que havia sido encaminhado pelo Executivo ainda em junho deste ano.

De acordo com as regras para tramitação de medidas provisórias, o texto deve ser apreciado e aprovado pelo Congresso Nacional no prazo máximo de 120 dias. Caso contrário, as disposições ali presentes perdem validade uma vez que a proposição caduca. Como a medida provisória tem validade imediata após sua publicação pelo Poder Executivo, normalmente o que ocorre é a edição de um decreto legislativo dando conta das medidas a serem adotadas quanto aos atos jurídicos que foram realizados ao longo dos 120 dias anteriores e que perderam validade com a caducidade da MP. Este procedimento se faz necessário para superar o vazio jurídico que se cria em tais situações.

A origem de todo este imbróglio travestido de disputa política pode ser identificada no processo de derrubada pelo Congresso Nacional do veto que o Presidente Lula havia colocado em matéria envolvendo o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Naquela sequência de quedas de braço entre o Palácio do Planalto e o poder legislativo, o governo teria deixado de arrecadar algo em torno de R$ 20 bilhões, de acordo com as estimativas do Ministério da Fazenda. Com isso, a decisão do Executivo foi o de buscar novas formas de assegurar o equilíbrio nas contas primárias, tal como sugerido por Fernando Haddad e incluído na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) como meta a ser atingida pela equipe econômica.

MP 1303 CADUCA. E DAÍ?

Desta forma, o documento que passa a ganhar relevo no debate político e no trâmite legislativo é a MP 1303. Ali estão presentes algumas medidas para elevar a arrecadação e outras para reduzir despesas. Esta é a estratégia do Ministro da Fazenda para encerrar o ano de 2025 com o objetivo de “zerar o déficit primário” atingido e a missão de “responsabilidade fiscal” bem cumprida. As propostas iniciais para elevar a tributação envolviam aumentar o imposto sobre as apostas do tipo “bets”, ampliar a incidência de impostos também sobre alguns títulos do mercado financeiro (Letras de Crédito Imobiliário – LCI e Letras de Crédito Agropecuário – LCA), estabelecer uma alíquota de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para as fintechs a exemplo do que ocorre com os bancos tradicionais, dentre outras medidas pontuais de tributos diversos.

Pelo lado dos cortes de despesa, a mesma MP propõe um conjunto de medidas nas contas primárias. A primeira dela é a redução do acesso ao seguro defeso para pescadores artesanais. Trata-se de um benefício previsto para aqueles que se dedicam à pesca como meio de sobrevivência e que se veem impedidos de fazê-lo no período da piracema. Em seguida, o texto inclui uma malandragem contábil que possibilitaria a inclusão das despesas com o programa de natureza assistencial “Pé de Meia” nas regras para atingir o piso constitucional com a educação. Finalmente, o documento estabelece novos procedimentos para concessão do auxílio saúde, restringindo de forma significativa o acesso ao benefício por parte todos os usuários do sistema da seguridade social.

No entanto, uma vez que a MP caducou e o governo se viu impossibilitado de contar com as medidas de aumento de arrecadação e redução e gastos ali presentes, teve início uma campanha nas redes sociais em que se busca identificar o legislativo federal como o grande vilão da estória. Ao acusar o Congresso Nacional de “inimigo do povo”, a estratégia é focar apenas ali o suposto foco das maldades, uma vez que os parlamentares estariam impedindo a tributação dos BBBs – bancos, bilionários e bets. Porém, nada disso estava presente no texto encaminhado pelo governo e que seguiria para votação, caso não houvesse o adiamento da pauta na noite de 8 de outubro.

NEM “B” DE BANCOS, NEM “B” DE BILIONÁRIOS, NEM “B” DE BETS

No que se refere ao primeiro “b”, de bancos, é importante registrar que a FEBRABAN e demais entidades defensoras dos interesses dos bancos tradicionais estavam operando nos bastidores a favor da MP. A razão para tanto é que o setor sempre lutou para que as fintechs tivessem o mesmo tratamento tributário que os seus representados. Essa diferença de incidência de impostos, que beneficia os bancos digitais, estava representada no diferencial de incidência de CSLL. Mas não se tratava de nenhuma medida de justiça tributária afetando o sistema bancário como um todo.

Quanto ao segundo “b”, de bilionários, a MP 1303 não continha nenhum dispositivo que afetasse sua contribuição para o bolo tributário. Ainda que marginalmente o estabelecimento de alíquotas de Imposto de Renda para LCI e LCA pudesse significar algum grau de isonomia para com as demais aplicações financeiras, tais medidas estão muito longe de implicar uma tributação expressiva sobre bilionários. Estes continuam isentos na apuração de seus lucros e dividendos desde 1995, além do que nada foi feito ainda para implementar o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), tal como previsto no art. 157 da Constituição Federal desde 1988.

Finalmente, no que diz respeito ao terceiro “b”, de apostas bets, tampouco se pode afirmar que a MP abordava o tema de forma adequada. A proposta inicial aumentava a tributação sobre as receitas do setor de 12% para 18%, uma medida claramente tímida e insuficiente frente ao desastre social e econômico que as apostas vêm causando no conjunto da sociedade. No entanto, o lobby das bets foi de tal ordem que nem mesmo essa covarde e envergonhada alteração foi encaminhada. O relator havia retirado o dispositivo nas últimas rodadas de negociação e as bets continuariam a pagar aquilo que estão pagando.

MP 1303 SÓ TINHA CORTES DE DESPESAS

Ou seja, trata-se de um grande falseamento da realidade a tentativa de acusar o Congresso Nacional de impedir o governo de tributar os BBBs. Não havia na medida que caducou nada que afetasse de forma expressiva os bancos, os bilionários ou as bets. As únicas propostas que permaneceriam no texto seriam aquelas voltadas a reduzir despesas orçamentárias, sempre no intuito de Fernando Haddad de cumprir com o seu bom mocismo junto à Faria Lima. A obsessão do Ministro da Fazenda em cumprir à risca as regras draconianas do Novo Arcabouço Fiscal, concebido por ele mesmo, tem provocado o desgaste social dos cortes nas políticas sociais e a dificuldade em se aumentar o ritmo de crescimento do PIB acima de 2,5% ao ano.

Assim, a meta de resultado primário para 2025, autoimposta por ele mesmo ao conjunto do governo Lula, condena o Executivo a permanecer 12 meses por ano buscando rubricas de despesa de natureza social para serem cortadas em nome da busca do sacrossanto equilíbrio fiscal primário. Em razão de tal abordagem, o governo segue fechando os olhos à explosão dos gastos financeiros, com juros da dívida pública. Tal dispêndio tem se aproximado perigosamente da trágica marca de R$ 1 trilhão ao longo de 12 meses. Mas esses números estão longe do impacto tão alardeado de uma suposta vontade do governo em tributar os BBBs.

*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

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