Nos 80 anos do fim da Era Vargas, Getúlio deve ser engrandecido


CAROLINA MARIA RUY

Sob o pretexto de marcar os 80 anos do fim da Era Vargas, a Folha, ao entrevistar o biógrafo de Getúlio, Lyra Neto, em vez de avançar na elucidação da história e desfazer as lendas que forjam uma mentalidade antigetulista, acaba por aprofundar narrativas distorcidas e reforçar mitos em torno do ex-presidente.

De forma equivocada, o texto compara o Estado Novo ao golpe militar de 1964 e, pasmem, ao golpismo bolsonarista de 2023. Trata-se de uma análise simplista, que aproxima eventos contraditórios.

Diz o texto:

⁠”O sr. vê paralelos entre o Estado Novo, a ditadura militar e a tentativa de golpe sob Bolsonaro?

É sempre perigoso comparar realidades históricas distintas usando a mesma régua, ignorando particularidades e o contexto de cada época específica, sob o risco de cairmos no anacronismo. Descontada a ressalva, há nos três períodos a interferência das Forças Armadas na vida política nacional.

Os militares, antes menos profissionalizados, passaram a se arvorar como árbitros supremos da nação desde a Guerra do Paraguai, acusando os civis de incompetentes e definindo a política como algo necessariamente sujo e corrupto. Com base nisso, em diversos momentos da história republicana, impuseram ou buscaram impor o uso da força como mecanismo de “salvação da pátria”.

O Estado Novo deve ser compreendido em seu contexto: a iminência de uma guerra mundial, no plano internacional, e a intensa disputa política no plano nacional, com pressões das forças reacionárias, de cunho liberal e entreguista, que Getúlio havia deposto em 1930. Embora tenha perseguido e reprimido comunistas, Vargas também se opôs aos integralistas e aos liberais da República Velha. É importante ressaltar que, naquele mesmo contexto, houve uma eloquente reaproximação com os comunistas liderados por Luís Carlos Prestes — força fundamental para a eleição de Getúlio em 1950.

Também é fundamental destacar que foi justamente nesse período que o governo promulgou uma ampla legislação trabalhista, fruto do diálogo com os trabalhadores e seus sindicatos. Em 1º de Maio de 1943 — no período que o jornal ousa comparar à ditadura e ao bolsonarismo — Getúlio Vargas sancionou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), uma das medidas mais radicais em favor dos trabalhadores de que se tem notícia.

A comparação se torna ainda mais absurda diante do fato de que o golpe de 1964 foi tramado e executado por militares e udenistas que vinham perseguindo Getúlio havia uma década — um golpe, portanto, contra ele e contra seu projeto de desenvolvimento nacional. Foi uma traição ao país que se perpetuou mesmo após a redemocratização e que se intensificou com o bolsonarismo.

Ao contrário da Era Vargas, que terminou há 80 anos, a ditadura de 1964 e o bolsonarismo atuaram para oprimir os trabalhadores e seus sindicatos e para desmontar a CLT.

É medíocre — para não dizer mesquinha — qualquer avaliação da Era Vargas que relativize as conquistas daquele período e reduza Getúlio a um líder meramente autoritário. Uma análise maior, tanto do ponto de vista histórico — pela longevidade e pelos desdobramentos benéficos de suas políticas — quanto do ponto de vista geopolítico — que reposicionou o Brasil como um país industrializado, urbano e com identidade própria — coloca essa história em seu devido patamar: o de ruptura com o atraso e de impulso ao desenvolvimento nacional.

Carolina Maria Ruy é jornalista e pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical, editora do Rádio Peão Brasil e membro do Conselho Consultivo da Fundação Maurício Grabois.

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