Guatemala, ensaio geral para a violência política na América Latina, escreveu Galeano

Eduardo Galeano e seu livro

“Foi na Guatemala o primeiro laboratório latino-americano para a aplicação da guerra suja em grande escala”, diz Eduardo Galeano, denunciando como os EUA interviram para derrotar em 1954 a revolução nacionalista comandada por Jacobo Árbenz, que começava uma reforma agrária

Eduardo Galeano lançou em 1967, quatro anos antes do seu clássico “As veias abertas da América Latina”, o livro “Guatemala – Ensaio geral da violência política na América”, em que se debruça sobre o significado da “ativa, massiva e maciça presença militar estadunidense neste país” para defender a ferro e fogo os interesses da United Fruit Company (UFC) – a multinacional bananeira que escravizava os trabalhadores rurais guatemaltecos.

Na obra, o então jovem escritor uruguaio descreve como “este pequeno país de índios analfabetos e mortos de fome se erguia sobre seus pés” e dos riscos que isso representava para o imperialismo estadunidense, uma vez que “a colônia queria se tornar pátria”.

“Até 1944, o país havia sido testemunha e vítima, porém não protagonista de sua história. Há longo tempo o destino da Guatemala vinha sendo jogado à própria sorte de moedas estrangeiras, em Wall Street ou em Washington ou nos quartéis generais do Pentágono”, sintetizou.

“Todos reconhecemos que esse fenômeno de repressão e dor orginalmente circunscrito à Guatemala era, além disso, o laboratório onde se experimentava o que seria o bárbaro modelo político imperante em quase toda a região durante os anos seguintes. Foi na Guatemala o primeiro laboratório latino-americano para a aplicação da guerra suja em grande escala”, apontou. Diante da política do torniquete dos EUA, este país iniciava a personificar, “com trágica clareza”, a situação de todo um continente.

Desde a Revolução de Outubro de 1944, que depôs a ditadura de Jorge Ubico e levou ao poder – por ampla maioria nas urnas – dois presidentes populares: Juan José Arévalo (1945-1951) e Jacobo Árbenz (1951-1954), foram se consolidando políticas nacionalistas e desenvolvimentistas, que faziam emergir a participação indígena, maioria antes excluída pelas elites servis ao estrangeiro.

Árbenz aprofundou as reformas, principalmente com a Lei da Reforma Agrária, que possibilitou a expropriação das terras não cultivadas, afetando em cheio os interesses gananciosos da UFC, que até então fazia do país uma república bananeira, e de uma meia dúzia de proprietários (2% da população) que controlavam mais de 70% da área rural.  “Apenas 8% de suas terras, que se estendiam entre os dois oceanos, eram cultivadas: seus imensos terrenos baldios começaram a ser distribuídos entre camponeses pobres que se dispuseram a trabalhá-los”, recordou.

“UNITED FRUIT: UM ESTADO DENTRO DO ESTADO”

“A United Fruit Co, um Estado dentro do Estado, dono da terra, da ferrovia e do porto, exonerada de impostos e livre de controles, deixou de ser onipotente em suas vastas propriedades. As novas leis trabalhistas e de seguridade sociais tornaram possível o desenvolvimento do mercado interno, o aumento do poder aquisitivo e o nível de vida dos trabalhadores. Diante da construção de rodovias e a criação do porto de São José, no Pacífico, se rompeu o monopólio que a United Fruit exercia sobre o transporte e o comércio. Foram realizados ambiciosos projetos de desenvolvimento econômico, como as obras de eletrificação do país, impulsionados com capital nacional. Com esta diretriz, já nos primeiros meses de 1954, haviam sido beneficiadas mais de 100 mil famílias – em um país de três milhões de habitantes.

Com riqueza de detalhes, Galeano expõe a “intervenção de monopólios amparados e sustentados desde Washington”, “o papel protagônico que os EUA desempenharam neste conflito”, assim como a sua “ocultação após o golpe contra Árbenz em 18 de junho de 1954”.

No Brasil, o presidente Getúlio Vargas se suicida em 24 de agosto do mesmo ano, gesto que leva o povo às ruas e adia o golpe por uma década.

Para evitar eventuais resistências inesperadas, uma das alternativas utilizadas pela CIA foi a dos “acidentes” aéreos. Somente em 1981 foram executados três opositores ao imperialismo no continente: o presidente equatoriano Jaime Roldós, em 24 de maio; o comandante do Exército peruano Rafael Hoyos Rubio, em 5 de junho; e o líder da revolução panamenha, Omar Torrijos, em 31 de julho.

Na Guatemala de então, descreve Galeano, “os boinas verdes, os rangers, os agentes do FBI e da CIA prestavam assistência no entretenimento para a repressão a oficiais e suboficiais do exército e da polícia, e também a grupos civis que operavam de forma complementar com as as ações repressivas (ao que com os anos se denominou ‘grupos paramilitares’”. Esses mesmos “assessores” denuncia, “colaboraram na introdução do napalm na guerra sem quartel”. No Brasil, o napalm também foi utilizado pela ditadura contra a resistência no Araguaia e no Vale do Ribeira.

“CONSPIRAÇÃO DE SILÊNCIO E DE MENTIRA”

“Guatemala é vítima, como a América Latina, de uma conspiração de silêncio e de mentira”, ecoa uma gravação de 1967. “Os donos dos meios de informação, que fabricam a opinião pública, ocultam e deformam os fatos com arbitrariedade e eficácia: as notícias encolhem até desaparecer ou incham até estourar, conforme convenha. Nosso trabalho aspira a penetrar, de alguma maneira, esta barreira de enganos e omissões, ainda que seu autor não ignore, por certo, que na nossa América Latina, neste torturado território onde os governos civis deixam de ser governos ou deixam de ser civis, se fez muito difícil, quase impossível, a circulação de livros políticos não consagrados à exaltação do Império e suas virtudes”.

Sem que a informação circule, se desconhece que “queimaram colheitas de camponeses, metralharam uma grande quantidade de gado e depois desceram dos helicópteros e comeram”. A barbárie ainda não havia chegado ao nível da psicopatia da década de 1970, quando os israelenses vieram para substituir os estadunidenses e foram além com seus manuais em hebraico. Na prática, ensinavam a abrir o ventre de mulheres grávidas, assar e comer crianças, estuprar em filas de até 20 soldados, introduzindo sífilis e gonorreia nas mulheres, “palestinizando” comunidades mantidas em campos de concentração para tentar apagar de uma vez por todas a resistência maia.

“SE SÃO CAPAZES DE VENDER A SUA PÁTRIA, COMO NÃO VENDERIAM ARMAS?”

Sobre a corrupção, tão semelhante com o que deparamos atualmente no governo de Claudio Castro, no Rio de Janeiro, Galeano é incisivo: “Tanto os soldados como os oficiais vendem armas. Se estes militares são capazes de vender a sua pátria, como não seriam capazes de vender suas armas?”

O autor defende que “nem a miséria nem a humilhação são um destino inevitável” e que é preciso resgatar nosso passado para revigorar a caminhada e projetar um futuro de esperança para um continente tão rico.

“O quetzal é o símbolo nacional da Guatemala: se diz que perdeu a voz quando os maias foram derrotados pelos espanhóis. Outros dizem que não perdeu, porém que  desde então se nega a cantar. O fato é que, quando o aprisionam, morre”, declarou Galeano, sustentando a necessidade de garantirmos juntos o voo do pássaro.

OS IRMÃOS DULLES

Galeano desvenda o papel que desempenharam no golpe, John Foster Dulles, secretário do Departamento de Estado no período 1953-1959 durante a administração Eisenhower, e seu irmão, Allen Dulles, o tristemente célebre fundador e diretor da CIA durante mais de 20 anos. Da interligação entre o capital transnacional estadunidense e as ditaduras sanguinárias do continente, das matanças protagonizadas na República Dominicana, Equador, Bolívia, Brasil, Argentina…

Este livro foi escrito entre os meses de junho e agosto de 1967, com o “trabalho de campo” sendo realizado em abril e maio. Em outubro daquele ano, data em que circulou a primeira versão no Uruguai, as chacinas estavam em pleno andamento e projetavam a gravidade da política de extermínio.

O que Galeano não antevia é que, do outro lado do Atlântico, precisamente em junho de 1967, com o ataque relâmpago durante a Guerra dos Seis Dias, Israel dava seguimento à usurpação e massacre do povo palestino, agora na Cisjordânia e Faixa de Gaza, e fortalecia seu sistema militar para poder intervir na Guatemala atendendo a demandas dos Estados Unidos com a barbárie que treinara, em seu terrorismo de Estado, contra o povo palestino.

Para termos a dimensão da barbárie, oficialmente, entre 1960 e 1996, a ditadura guatemalteca assassinou 200 mil pessoas e desapareceu outras 45 mil, cinco mil delas crianças, sempre com capital, treinamento e chancela dos governos estadunidense e israelense, que converteram os exércitos nacionais em “forças de intervenção contra seus próprios povos”.

“VÍTIMAS DO TERRORISMO DE ESTADO”

Na época, o autor falava da Guatemala como “um país atormentado, um país de pessoas doces que conheço e amo”. “Estatísticas: nos últimos quinze anos, um assassinato político ocorreu na Guatemala a cada cinco horas. Na maioria dos casos, os mortos são mortos sem corpos, ‘desaparecidos’, camponeses pobres sem rosto ou nome, vítimas do terrorismo de Estado. Cabeças em estacas frequentemente aparecem à beira das estradas. O crime se torna então um espetáculo público, como nos tempos da Inquisição, para servir de alerta aos vivos. Esse período de infâmia começou em 1954, quando o Coronel Castillo Armas – treinado, equipado, financiado e acompanhado por militares americanos – derrubou o governo constitucional a sangue e fogo e aniquilou as reformas implementadas nos dez anos anteriores. Os camponeses então perderam suas terras e sua voz”.

Servindo como “presidente”, Castillo Armas “cumpriu sua missão”. “Devolveu as terrras ociosas expropriadas à United Fruit e outros latifundiários e entregou o subsolo de 4.600.000 hectares, quase a metade do país, ao cartel internacional do petróleo. O Código do Petróleo foi redigido em inglês e chegou em inglês ao Congresso: foi traduzido para o espanhol a pedido de um deputado que ainda tinha um resto de vergonha”.

“Castillo Armas fechou os jornais de oposição que haviam funcionado livremente nos tempos de Árbenz, e enviou à prisão, à fossa ou ao exílio os militantes políticos democráticos e os dirigentes sindicais e estudantis. Finalmente, ele mesmo foi morto. Eisenhower chorou sua morte: ‘É uma grande perda para seu próprio país e para todo o mundo livre’”, disse.

Com dor, Galeano recorda de Rogelia Cruz Martínez, companheira sem a qual a obra não poderia ter sido escrita, pois foi quem permitiu a ele chegar até a resistência, no meio da selva, que se insurgia contra o horror da política de “cerco e aniquilamento”, descrevendo ao mundo a verdade do morticínio em curso.

“Rogelia Cruz Martínez, sequestrada, estuprada, ultrajada e assassinada brutalmente por um esquadrão da morte com a intenção de calar sua ideias e vingar sua militância revolucionároa, grávida de três meses. Seu corpo apareceu debaixo de uma ponte de uma rodovia entre Siquinalá a Santa Lucía Cotzumalguapa. Havia estudado arquitetura na Universidade de San Carlos. Em 1958 foi eleita Miss Guatemala e em 1959 representou o país na disputa para Miss Universo”, denunciou.

Pela contundência do que viu e relatou, a partir deste livro não haverá nenhum outro trabalho em que Galeano não faça referência à Guatemala até sua obra póstuma, “O caçador de histórias”.

LEONARDO WEXELL SEVERO

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