Mustafa Fetouri recorda o 1º de novembro de 1954, quando os argelinos celembram os 71 anos da revolta que deu início à guerra de libertação
“Todos os anos, a Argélia comemora diversos marcos históricos ligados ao período em que era ‘Argélia Francesa’, legalmente um departamento ultramarino da França. Dois se destacam: o Dia da Independência, em 5 de julho, que marca a soberania conquistada em 1962, e o Dia da Revolução, em 1º de novembro, que relembra a revolta de 1954 que deu início à guerra de libertação”, afirma o jornalista em artigo publicado no site Russia Today.
A recordação de Mustafa Fatouri, também acadêmico líbio, demonstra que “estas não são meras celebrações; elas lembram às pessoas que as feridas do colonialismo ainda permanecem”.
“Em novembro, o 71º aniversário chega em meio a uma das piores crises diplomáticas em décadas – a expulsão de diplomatas, a suspensão da cooperação e o apoio de Paris à reivindicação do Marrocos sobre o Saara Ocidental, vista em Argel como uma provocação”.
De acordo com Fatouri, “nenhuma das comemorações nacionais da Argélia evoca tranquilidade ou celebração, pois cada uma está impregnada de lembranças de sacrifício. Elas recordam o sangue e a resiliência que transformaram o país de um departamento ultramarino francês em um Estado soberano”.
FORJANDO UM MODELO AFRICANO DE LIBERTAÇÃO
“O dia 1º de novembro de 1954 permanece o mais marcante – o dia em que a Frente de Libertação Nacional (FLN) lançou sua revolta, que mobilizou cidadãos comuns para uma luta coletiva, não apenas para recuperar suas terras, mas também para forjar um modelo africano de libertação. A experiência da Argélia inspiraria posteriormente movimentos de independência em toda a África, com muitos adotando suas estratégias e disciplina organizacional em suas lutas contra o domínio colonial, inclusive o francês”, assinala o jornalista.
Para quem quiser se aprofundar no ocorrido, vale a pena assistir o maravilhoso documentário “A batalha de Argel”, de 1966, ou o mais recente “Crônica dos Anos de Brasa”, filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes de 1975, que expõem com riqueza de detalhes o terrorismo de Estado dos franceses.
O fato é que sete décadas após o início da revolução, as sombras do domínio colonial francês ainda pairam sobre a Argélia e a França, embora por razões diferentes. “A Argélia exige reconhecimento, responsabilização e compensação, enquanto a França prefere esquecer o seu passado, ou pelo menos confiná-lo ao passado enterrado”, disse.
FRANÇA ALINHADA COM O MARROCOS CONTRA A INDEPENDÊNCIA SAARAUÍ
Na avaliação do jornalista, para piorar ainda mais a situação, “a França optou abertamente por apoiar a reivindicação de Marrocos sobre o Saara Ocidental – uma atitude que Argel considera provocativa e que desconsidera a sua influência regional”.
“Neste contexto, os rituais de memória adquirem um significado ainda maior. A mesma luta pela independência que outrora exigiu sacrifícios agora molda a postura da Argélia em relação à França, lembrando Paris de que as questões não resolvidas de responsabilização permanecem vivas tanto na diplomacia oficial como na memória pública”, acrescentou.
“As reivindicações da Argélia por reconhecimento são específicas e antigas. Uma das questões mais pungentes é a repatriação dos crânios de combatentes argelinos levados como troféus para a França durante a guerra colonial. Esses restos mortais foram mantidos em museus franceses por mais de um século e, por vezes, exibidos publicamente de maneiras que muitos consideram uma celebração da conquista colonial, em vez de um reconhecimento da brutalidade”, avalia Fatouri. Nestes descaminhos do horror, em julho de 2020, a França devolveu 24 desses crânios à Argélia. “O presidente Abdelmadjid Tebboune comentou a ocasião, observando que os combatentes ‘foram privados de seu direito natural e humano ao sepultamento por mais de 170 anos’, ressaltando o peso moral e histórico da repatriação”.
MASSACRES, TORTURAS E TESTES NUCLEARES FRANCESES NO DESERTO ARGELINO
Outra queixa, assinalou o jornalista, “diz respeito ao acesso aos arquivos coloniais, incluindo dossiês que detalham massacres, torturas e testes nucleares franceses realizados no deserto argelino em 1960”. “Embora a França tenha aberto parcialmente alguns arquivos, muitos documentos cruciais permanecem restritos, frustrando historiadores e autoridades argelinas. Além da restituição material, a Argélia continua a buscar o reconhecimento formal de atrocidades, como os massacres em Sétif, Guelma e Kherrata em maio de 1945, e o uso sistemático de tortura durante a guerra”.
Como esclarece Fatouri, “em termos de acesso a arquivos históricos, historiadores e autoridades argumentam que a transparência é vital tanto para a precisão histórica quanto para a justiça; revelar abusos coloniais fortalece o argumento da Argélia em busca de reconhecimento e reparações”.
O CAMPO MINADO DA NARRATIVA E DA MEMÓRIA
“A disputa em torno da narrativa e da memória transformou-se, portanto, num campo minado diplomático que continua a moldar as relações entre a França e a Argélia, desde as restrições à migração e aos vistos até a influência decrescente da França no Magreb. Cada tentativa de reconciliação, incluindo visitas oficiais, é marcada pela desconfiança que nasce de um século e meio de dominação e de décadas de retórica francesa ambígua desde a independência”, descreve Fatouri.
Na sua opinião, o comportamento do presidente Emmanuel Macron oscila “entre um reconhecimento cauteloso e uma negação defensiva”, pois se em 2017, como candidato, classificava o colonialismo como um “crime contra a humanidade”, ao assumir foi para o terreno do “nenhum pedido de desculpas”, oferecendo, em vez disso, o que chamou de “atos de reconhecimento”. “Essa abordagem calculada reflete o profundo desconforto da França: embora pareça confrontar seu passado terrível, o país quer evitar quaisquer implicações legais”, acredita.
A situação chega ao ponto de Macron questionar em 2021 se alguma vez existiu uma “nação argelina antes da colonização francesa”. “Isso provocou indignação em Argel, levando à convocação do embaixador argelino e ao fechamento temporário do espaço aéreo francês para voos militares com destino ao Sahel [a parte sul da Argélia, Gâmbia, Senegal, a parte sul da Mauritânia, o centro do Mali. norte do Burquina Fasso, Níger, a parte norte da Nigéria e dos Camarões, a parte central do Chade, centro e sul do Sudão, o norte do Sudão do Sul e a Eritreia]. Tais deslizes revelam a fragilidade da relação, facilmente abalada por palavras que reabrem feridas coloniais”.
“Mesmo quando Macron tentou reparar os danos posteriormente, apelando à ‘verdade e reconciliação’ e visitando Argel em 2022, os gestos foram recebidos com ceticismo”.
ROMPENDO AS AMARRAS DA DEPENDÊNCIA, INVERTENDO O PODER HISTÓRICO
“Contudo, a dinâmica entre os dois países já não é de dependência”, comemora Fatouri. “A Argélia hoje dialoga com a França a partir de uma posição de relativa força. Impulsionada pelas receitas energéticas, pela influência regional e pela renovada confiança na sua identidade pós-colonial, Argel aprendeu a usar a história como instrumento de pressão. Ao evocar o passado colonial em momentos de tensão, lembra a Paris que a reconciliação não pode ser alcançada nos termos franceses. A antiga colônia define agora muitos dos parâmetros morais e diplomáticos do diálogo, obrigando a França a lidar com uma incômoda inversão do poder histórico”.
O protagonismo da Argélia também busca novos aliados. “Em 2024, o volume de comércio entre a Rússia e a Argélia dobrou, atingindo cerca de US$ 2 bilhões, e ambos os lados veem potencial para aumentá-lo para US$ 10 bilhões até 2030. O comércio com a China alcançou aproximadamente US$ 12,48 bilhões em 2024, o que reforça a estratégia da Argélia de diversificar suas parcerias”.
Como reitera o jornalista, “a disputa em curso sobre o Saara Ocidental continua a ser controversa, com a Argélia apoiando a reivindicação de independência da Frente Polisário. O reconhecimento, por Paris, da soberania marroquina sobre o Saara Ocidental é amplamente visto como uma manobra para pressionar a Argélia em outras questões bilaterais, incluindo o passado colonial. Ao mesmo tempo, a França está ansiosa para contrabalançar sua influência decrescente no Sahel, particularmente nos vizinhos do sul da Argélia, como o Níger, onde a influência francesa tem diminuído”.
Desta vez, acredita Fatouri, “a deterioração das relações entre a França e a Argélia parece mais grave do que nunca”, com os canais diplomáticos tensos e a liderança argelina desapontada. “A permanência de Macron no Palácio do Eliseu limita as expectativas de uma mudança genuína na política francesa em relação à responsabilização colonial”, concluiu.
											
								
								








