Três anos depois, o maior crime ambiental do Brasil, o rompimento de barragem de Fundão, em Mariana (MG) – que matou 19 pessoas e despejou 39 milhões de metros cúbicos (m³) de rejeitos de minério de ferro sobre o leito do Rio Doce, chegando até o Espírito Santo, segue impune e as vítimas abandonadas. Em entrevista a Hora do Povo, o promotor Guilherme de Sá Meneghin, condenou a atuação da Fundação Renova, uma entidade privada criada pelas empresas Samarco, Vale e BHP Billiton, para “gerir” as medidas tomadas após o desastre.
“A Fundação Renova não cumpre de forma adequada suas obrigações e nós do Ministério Público Estadual (MPE) temos que intervir com ações, medidas judiciais, extrajudiciais, para poder corrigir alguns problemas”, denunciou o promotor da 1ª Promotoria de Justiça da Comarca de Mariana .
O rompimento da barragem da mineradora Samarco devastou o distrito de Bento Rodrigues e engoliu cerca de 80% da vila de Paracatu de Baixo, ambos na cidade de Mariana e também destruiu a vegetação e poluiu a bacia do Rio Doce – um dos mais importantes rios do país, que apresentou índices de ferro, alumínio e manganês muito superiores aos que eram encontrados antes da tragédia. Aproximadamente 500 mil pessoas foram atingidas diretamente pelos danos causados ao rio nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, em um rastro de destruição ao longo de seus 600 quilômetros.
FUNDAÇÃO RENOVA
Para o promotor, a Fundação criada após a tragédia age de acordo com os interesses das empresas que cometeram o crime. “O que a gente percebe é que há uma ingerência muito forte das empresas na fundação. Ela deveria ser imparcial, tratar de uma forma mais diligente e não auferir aos interesses das empresas, essa não é a ideia”, disse.
A gente percebe que há claramente uma distorção nas prestações de serviço da Renova e daí existe a necessidade de continuar agindo para reparar as coisas erradas que ela faz”.
À época da tragédia, a então presidente Dilma Rousseff (PT) articulou um acordo, a portas fechadas, entre BHP Billiton Brasil, a Vale, a Samarco, os governos federal, os governadores do Espírito Santo, Paulo Hartung (MDB) e de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), em que as empresas criariam a chamada “Fundação Renova” que seria a responsável pela reparação de toda a destruição causada por elas mesmo.
Poucos dias após o crime da Samarco em Mariana e sem qualquer dimensionamento da tragédia, Dilma transferiu a responsabilidade da reparação ambiental, do atendimento aos atingidos e também da fiscalização das providências tomadas, para as empresas e prometeu: “Vamos fazer um Rio Doce melhor do que estava antes”.
A Fundação Renova passou a atuar sete meses após o desastre. O Estatuto Social da Renova diz que a entidade “é dotada de autonomia administrativa, patrimonial, financeira e operacional”. Em seu site, em suas redes sociais e em panfletos distribuídos aos atingidos a fundação se define como uma organização “autônoma e independente”.
Não é bem assim. Até o ano passado, os serviços administrativos da fundação eram executados pela Samarco. É o que mostra a prestação de contas de 2016 e 2017 da entidade. De acordo com o Ministério Público de Minas Gerais a Samarco era responsável pelos serviços financeiros, tecnologia da informação, compras e pelo departamento pessoal da Renova. Ou seja, a Samarco administrava o dinheiro que transferia para a fundação, além de cuidar das contratações. Atualmente, 20% do quadro de pessoal da Renova é formado por ex-servidores das empresas que a sustentam.
PROCESSOS
A Justiça Federal ainda ouve testemunhas no processo criminal envolvendo o episódio. Entre os réus estão o então presidente da mineradora Samarco, Ricardo Vescovi, e o então diretor-geral de Operações da empresa, Kleber Terra. Também respondem pelo crime 11 integrantes do conselho de administração da empresa, que são representantes da Vale e da BHP Billiton, empresas que são as acionistas da Samarco. De acordo com o promotor, há um sentimento de impunidade já que o processo criminal ainda está na primeira fase. “De qualquer maneira, fica um certo sentimento de impunidade porque são três anos e ninguém foi julgado ainda. Sequer acabou a primeira fase do processo”, disse.
Ao todo, 21 réus são julgados pelos crimes de inundação, desabamento, lesão corporal e homicídio com dolo eventual, que ocorre quando se assume o risco de matar sem se importar com o resultado da conduta. Um 22º réu responde por emissão de laudo enganoso. Trata-se do engenheiro da empresa VogBr, Samuel Loures, que assinou documento garantindo a estabilidade da barragem que se rompeu. A Samarco, a Vale, a BHP Billinton e a VogBR também são julgadas no processo.
A empresa firmou acordos com 16 famílias que até hoje não foram pagos. A estimativa mais otimista dos promotores de Justiça que atuam na força-tarefa do Rio Doce é de que os ressarcimentos comecem a ser pagos apenas em meados de 2020.
Publicamos abaixo a íntegra da entrevista do promotor Guilherme de Sá Meneghin, que acompanha os atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão. Ele foi o autor da ação cautelar que, cinco dias após o desastre, pediu o bloqueio de R$ 300 milhões da mineradora Samarco, e é responsável pela ação de indenização e o reassentamento das famílias atingidas da cidade.
Na entrevista, Guilherme relata a situação do processo na comarca de Mariana e os problemas enfrentados pelo MPE para garantir o direito dos atingidos.
MAÍRA CAMPOS
“Há claramente uma distorção nos serviços da Renova”
Já se passaram três anos do rompimento da barragem da Samarco em Mariana. Por que demora tanto a reparação aos atingidos? Por que as famílias ainda não foram indenizadas?
É lento… a Fundação Renova (FR) não cumpre de forma adequada suas obrigações e nós do Ministério Público Estadual (MPE) temos que intervir com ações, medidas judiciais, extrajudiciais, para poder corrigir alguns problemas. Temos que deixar muito claro que nesse emaranhado de informações que às vezes fica perdido, que nada anda, nada acontece, até na justiça, se não é com a nossa intervenção. As empresas, essa fundação, elas não fazem nada espontaneamente, só fazem na medida em que são acionadas judicialmente ou pela própria população atingida.
Nós fizemos um acordo agora, em dois de outubro, pela indenização das vítimas, onde nós estabelecemos uma série de regras, inovadoras inclusive, e isso remete a necessidade de acompanhar o cumprimento desses acordos a partir de agora. Nós pleiteamos 22 ações para o direito das vítimas.
Sobre a Fundação Renova, é um problema ela ser organizada e composta exclusivamente pelas empresas que cometeram o dano à população, além de gerir os recursos das indenizações e afins?
A fundação foi criada pela Vale e BHP para cuidar dos pedidos de reparação. Quem cometeu o dano foram as empresas. O que a gente faz é exigir das empresas o cumprimento do que é de obrigação deles e eventualmente à Fundação Renova. O que a gente percebe é que há uma ingerência muito forte das empresas na fundação. Ela deveria ser imparcial, tratar de uma forma mais diligente e não auferir aos interesses das empresas, essa não é a ideia. A gente percebe que há claramente uma distorção nas prestações de serviço da Renova e daí existe a necessidade de continuar agindo para reparar as coisas erradas que ela faz.
Houve um burburinho de que as vítimas perderiam o direito de entrar com ações indenizatórias… O senhor acha que essa dúvida – se haveria a perda do direito, ou não, foi uma coisa implantada para que as pessoas, desesperadas, procurassem acordos individuais?
Eu sempre digo que a má informação é semeada e ela é regada também, por interesses que não são os melhores. Em primeiro lugar é importante esclarecer que essa questão da prescrição não é nem uma questão que esteja consolidada, porque há muitas decisões de casos como esse que declaram imprescritível enquanto estiver correndo o processo coletivo. Então, essa prescrição para os atingidos é uma prescrição que não existe. De qualquer maneira o nosso acordo prevê claramente isso. A gente só expressou o que está na lei. Isso para evitar que as pessoas entrassem em pânico e fizessem acordos ruins. Mas eu acredito que a desinformação foi plantada e semeada. Agora por quem, eu não sei.
O acordo coletivo é sempre melhor para a vítima?
O acordo coletivo dá parâmetros econômicos e financeiros, além de trazer garantias que às vezes não existem na lei. Então por exemplo, nós estabelecemos uma garantia da isenção do ônus da prova, então o atingido que eventualmente tiver que entrar com uma ação na justiça, a palavra dele terá mais força do que das empresas, isso significa que já dá uma interpretação mais favorável para ele. Agora se ele entrasse com uma ação individual, sem esse acordo coletivo, ele não teria essa vantagem processual. Então a vantagem é que todo aquele que usar do acordo coletivo vai poder ter essa vantagem, aquele que não usar vai depender da boa vontade do juiz.
“Fica um certo sentimento de impunidade porque são três anos e ninguém foi julgado ainda”
No último dia nove de outubro, André Ferreira Cardoso, executivo da Samarco teve a denúncia feita pelo MPF revertida pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) para inundação seguida de morte. A pena original poderia chegar a 30 anos, enquanto a do crime de inundação não passa de oito. Existe um sentimento de impunidade… O que o senhor acha disso? Como se dá essa parte criminal?
O processo criminal é um caso complexo, uma série de situações que são bem incomuns na justiça. Existem processos na Justiça do Trabalho, na Justiça Estadual, na Justiça Federal… No que tange o processo penal, ele está na Vara Federal de Ponte Nova, uma cidade próxima aqui de Mariana. Os executivos, engenheiros das empresas foram denunciados pelo Ministério Público Federal e estão tramitando lá. Eu como sou promotor de justiça do MPE não sei detalhes desse processo criminal. Mas de qualquer maneira, fica um certo sentimento de impunidade porque são três anos e ninguém foi julgado ainda. Sequer acabou a primeira fase do processo. O processo jurídico tem duas fases, uma fase que é perante o juiz togado e a segunda fase que é perante os jurados. Então se já tivesse terminado a primeira fase e eles tivessem o rito pronunciado, ou seja, o juiz da aquela decisão que ele decide pelo júri e encaminha os réus para serem julgados pelo jurados, eu acho que a sensação de impunidade seria menor.
É fato também que a justiça brasileira precisa alterar seus procedimentos para que tenhamos uma justiça penal mais célere.
HISTÓRICO
– 5 de novembro de 2015: Barragem de Fundão, da mineradora Samarco, se rompe em Mariana. Cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram liberados e 19 pessoas foram mortas. Houve destruição de comunidades, devastação da vegetação local e poluição do Rio Doce.
– Março de 2016: Governo Federal, governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e mineradoras firmam termo para reparação dos danos, calculados em R$ 20 bilhões
– Maio de 2016: Moradores do distrito de Bento Rodrigues escolhem local para reconstrução da comunidade. Justiça Federal homologa acordo entre mineradoras e governos, mas Ministério Público Federal contesta.
– Junho de 2016: Fundação Renova é criada para gerir ações de reparação de danos.
– Agosto de 2016: Justiça Federal anula a homologação do acordo.
– Outubro de 2016: 22 pessoas e 4 empresas são denunciadas por crimes da tragédia.
– Novembro de 2016: Justiça aceita denúncia criminal.
– Janeiro de 2017: MPF e mineradoras fecham acordo que pode levar à extinção da ação civil pública.
– Julho de 2017: Justiça Federal suspende tramitação da ação criminal da tragédia.
– Novembro de 2017: Justiça Federal determina retomadas da tramitação da ação criminal.
– Fevereiro de 2018: Moradores de Bento Rodrigues aprovam projeto urbanístico para reconstrução da comunidade.
– Maio de 2018: Fundação Renova implanta o canteiro de obras para reconstrução de Bento Rodrigues
(Fonte: Portal da Rede Sustentabilidade)
Em abril de 2016, a Hora do Povo, em parceria com o portal América do Sol, lançou um especial sobre a tragédia de Mariana.
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