Enquanto vítimas seguem sem reparação integral, empresas foram inocentadas pela Justiça e parte dos crimes já prescreveu, consolidando um legado de descaso
No dia em que o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), completa dez anos, manifestações lembram a tragédia-crime e denunciam a impunidade das empresas responsáveis — Samarco, Vale e BHP Billiton. Os atos ocorreram nesta quarta-feira (5) em Belo Horizonte, Mariana e também em Belém (PA), na sede da Vale, às vésperas da Cúpula do Clima (COP30).
Organizados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), os protestos reforçam que a reparação prometida às comunidades ao longo da bacia do Rio Doce continua incompleta. Em Belo Horizonte, o ato começou às 7h, na Praça da Assembleia Legislativa, e seguiu até o Tribunal Regional Federal da 6ª Região e o Tribunal de Justiça de Minas. Estiveram presentes o ministro Guilherme Boulos, da Secretaria-Geral da Presidência, e a ministra Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos e da Cidadania.
“Nós podemos dizer, sem dúvida, que esse caso não encontrou justiça. As empresas seguem impunes e a reparação integral não chegou. Então por isso nós insistimos tanto no direito dos atingidos de irem a outros países, nos países-sede das empresas – buscar justiça, questionar essas empresas nos seus países de origem. É, inclusive, um ato de soberania”, disse ao HP Thiago Alves, da coordenação nacional do MAB.
Entre as principais reivindicações estão a conclusão dos reassentamentos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira; a recuperação da água de toda a bacia; a inclusão plena dos povos e comunidades tradicionais na repactuação do Rio Doce; e um programa de erradicação do déficit habitacional urbano e rural nas áreas atingidas.
Em Mariana, a programação incluiu uma solenidade no local do rompimento e um ato público à tarde, em uma das praças da cidade. Já em Belém, o protesto em frente à sede da Vale buscou expor a contradição entre o discurso “verde” da mineradora e o rastro de destruição deixado na região.
Ao participar dos protestos em Belo Horizonte, ao lado da ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Guilherme Boulos, reforçou que o ocorrido em 2015 “não foi um desastre, foi um crime cometido pela Samarco” e defendeu punição exemplar aos responsáveis. “Desastre é algo inevitável, por causas naturais. O que houve em Mariana foi crime, e crime exige reparação ambiental, social e humana”, afirmou o ministro.
Segundo Boulos, a repactuação do acordo judicial de reparação elevou o valor total para R$ 170 bilhões, sendo R$ 100 bilhões sob gestão pública e R$ 70 bilhões destinados a indenizações diretas. Ainda assim, ele cobrou o fim da impunidade e a responsabilização criminal dos dirigentes das mineradoras.
“Demorar dez anos e ainda o resultado ser uma absolvição completa de todas essas pessoas não é razoável. O governo Lula entende que combater o crime também passa por responsabilizar os grandes beneficiários, não só quem está na ponta”, afirmou o ministro.

Já Macaé, ressaltou a importância de manter viva a memória do crime e de políticas públicas que evitem novas tragédias. “A gente está falando de milhares de pessoas que vivem e lutam para que a gente nunca esqueça desse crime e adote políticas públicas para evitar que isso se repita. Elas são a esperança de reconstrução, mostrando que é possível recomeçar”, defendeu.
Em novembro de 2024, a Justiça Federal absolveu a Samarco e os demais réus pelo rompimento da barragem de Fundão. Na decisão, a juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho afirmou que não foi possível identificar responsabilidades individuais e que a dúvida deveria beneficiar os acusados. Um mês depois, o Ministério Público Federal recorreu, argumentando que o desastre resultou de falhas coletivas dentro da estrutura organizacional das empresas, e não de atos isolados.
Quase um ano após a apresentação do recurso, o caso ainda aguarda análise judicial. A lentidão no andamento do processo fez com que parte dos crimes atribuídos aos réus prescrevessem, o que reforça o sentimento de impunidade, abrindo brechas para outras ações criminosas de menor impacto.
“Injustiça, impunidade e não reparação. São essas as palavras que definem esses dez anos. Pequenos crimes continuam acontecendo todos os dias na bacia do Rio Doce e no litoral capixaba”, denuncia Letícia Oliveira, da coordenação do Movimento dos Atingidos. “Milhares de famílias seguem sem reconhecimento, sem indenização justa e sem nenhuma ação efetiva de reparação coletiva”, completa.

A tragédia-crime de Mariana, em 5 de novembro de 2015, despejou 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos no Rio Doce, matou 19 pessoas, destruiu comunidades inteiras e contaminou a água que abastece centenas de municípios em Minas e no Espírito Santo, alterando drasticamente o modo de vida das pessoas. Problemas que vão além das questões socioambientais e econômicas, com impactos na saúde física e mental das famílias. Uma década depois, os atingidos seguem cobrando justiça, reparação integral e o fim da impunidade das mineradoras.
“Uma das questões que geram esses adoecimentos de vários tipos, assim vamos chamar, é a alteração do modo de vida. Além de você alterar a questão socioeconômica das famílias, piorando a vulnerabilidade social dos atingidos nesses municípios, você também altera o modo de vida no sentido amplo – desde as práticas religiosas tradicionais e ancestrais, passando pelo lazer e pelas atividades socioculturais que estão relacionadas ao Rio Doce e seus afluentes”, explica o representante do MAB.
“Isso tudo foi alterado de maneira drástica, o que diminui os laços comunitários, desorganiza diversos associativismos e isola os indivíduos, gerando, inclusive, sedentarismo nas pessoas. Ouvi muito de atingidos e atingidas sobre isso: antes eles andavam quilômetros à beira do rio, faziam atividades diversas, e agora isso os levou a um tipo de sedentarismo”, continua Thiago.
O governador de MG, Romeu Zema (NOVO), facilitador da mineração predatória no Estado, não participou dos atos. O pretexto foi de que não realiza eventos públicos nas datas das tragédias de Mariana e Brumadinho pois “esses dias devem ser reservados ao luto e à reflexão das famílias atingidas”, alegou em nota.

Ação na Justiça inglesa cobra mais de R$ 260 bilhões da BHP pelo crime
Em busca de justiça internacional, mais de 600 mil pessoas afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), moveram uma ação coletiva contra a mineradora BHP na Justiça do Reino Unido, onde a empresa tem ações listadas na Bolsa de Londres. O grupo exige indenizações que somam cerca de R$ 260 bilhões por danos humanos, sociais, ambientais e econômicos.
A primeira fase do julgamento, que tratou da responsabilidade da BHP na tragédia-crime, foi concluída em março deste ano, mas a sentença da juíza Finola O’Farrell ainda não foi publicada. Enquanto isso, prosseguem as audiências que preparam a segunda etapa do processo, quando serão avaliados os impactos sofridos por cada vítima e definidos os valores de compensação, caso a empresa seja condenada.
Segundo Caroline Narvaez Leite, advogada do escritório Pogust Goodhead, responsável pela defesa dos atingidos, a decisão sobre a culpa da mineradora deve ser divulgada ainda este ano. Ela explica que, por ter caráter de precedente legal, o julgamento exige uma análise detalhada por parte da Justiça inglesa.
Caso a condenação seja confirmada, metade do valor das indenizações deverá ser paga pela Vale, sócia da Samarco e corresponsável pelo rompimento da barragem que, em 2015, devastou comunidades inteiras e contaminou a bacia do Rio Doce.
JOSI SOUSA
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