DAVI MOLINARI
Estava sozinho à mesa do Fale Mais Sobre Isso. Juvenal, o monge de toalha no ombro, andava atarefado recebendo uma delegação estrangeira da COP30 — o que já era um sintoma: a gente tenta salvar o planeta dentro do boteco.
Eu balançava a perna como quem espera o futuro que não chega. O Doutor raramente se atrasava. A porção de manjubinha perdia a crocância, o chope perdia sabor, e eu perdia a graça de comer sozinho. Talvez eu tivesse inventado essa história de terapia só para ter companhia. Eu estava bem, claro. Não precisava ouvir o Doutor com suas palavras mágicas, nem o Juvenal com sua sabedoria de balcão. Eu estava bem…
Tamborilava os dedos na mesa, no ritmo de uma música pop coreana que Juvenal insistia em tocar a pedidos dos estrangeiros.
Juvenal interrompeu meu pensamento com a leveza de sempre:
— Ele chegou.
— E quem é que estava preocupado, Juvenal? — disparei, ativando minha defesa narcísica.
Juvenal entendeu, mas se calou. O Doutor se aproximou, ajeitou a calça de sarja bege e encarou a manjubinha como quem analisa o inconsciente do peixe.
— Sempre pontual, Doutor — disse Juvenal, olhando pra mim com um recado embutido.
Olhei o relógio. Eu havia chegado muito antes. Ah, aí eu entendi: eu estava negando o desejo de ser cuidado. Clássico.
O Doutor ergueu uma sobrancelha e tocou o nariz com o indicador. Traduzi: “Sua projeção tá mais rápida que spoiler de anime japonês.”
— Achei que estivesse atrasado, Doutor. Mas fui eu que me adiantei. Por um momento, neguei que precisava dessa sessão de psicanálise embalada a porções e bebidas.
— Enfim, Doutor, ele entendeu que está na fase da negação — cravou Juvenal, no papel de auxiliar clínico.
O Doutor sorriu de canto, murmurando um “Humm…” que parecia carregar o peso de Freud e Lacan. Tirou o bloquinho do bolso, pronto pra crônica.
— Juvenal, você me conhece melhor que o ChatGPT. Eu, realmente, estava negando a necessidade desse happy hour. Tipo quando a gente ignora um boleto achando que o vencimento não chega. Ou quando finge que a violência no Rio é exceção e não política pública. No Complexo do Alemão, a pulsão de morte veste farda e a gente chama de faxina social.
Juvenal abanou a cabeça e foi conter o vizinho encrenqueiro — o Laranja — dono do cachorro Messias, preso por morder a vizinhança. No meio dos gringos, o Laranja berrava que tudo era bobagem, que o clima era obra divina e que se o mundo fosse acabar, ninguém poderia impedir.
— Tá vendo, Doutor? O Laranja é o negacionismo puro. Nega a ciência, a política, a realidade. Só não nega o próprio umbigo. É a sociedade com medo de encarar a real, enfiando a cabeça no buraco como ema. O planeta pega fogo. Enquanto alguns pensam em vacinas climáticas, outros desejam o fim — da favela, do planeta, da empatia. A violência urbana é a descarga da raiva reprimida. O povo pede ordem, o superego punitivo vem com fuzil, e a gente assiste a tudo desligando o lado afetivo, como se fosse uma série ruim.
O Doutor me olhou por um instante que durou uma eternidade clínica. Bateu duas vezes na mesa, como tambor ritual. A delegação estrangeira conversava alheia ao Laranja e à nossa sessão.
Com voz baixa e precisa, ele disse:
– A negação é uma maneira de ensaiar a própria morte sem o desprazer do fim.
Juvenal voltou com o Laranja contido e mais dois chopes. Colocou os copos na mesa e, com o olhar de quem já entendeu o mundo, soltou:
— O mundo tá pegando fogo e me perguntam se quero gelo. Eu digo que quero é derreter o recalque climático. Porque negar o aquecimento global é como negar o fim do namoro: todo mundo sente, mas finge que não vê. A COP30 é tipo terapia de casal — tentando salvar a união antes que vire cinza.
O Doutor levantou o copo. Eu acompanhei. Juvenal completou:
— A gente nega o boleto, o clima e até a terapia… mas nunca o que precisa ser dito.
Brindamos. E, pela primeira vez no dia, o gelo fez sentido.
Originalmente publicado em Divã no Boteco – LVI. Enviado pelo autor.











