Do Substitutivo de Derrite ao Terrorismo Fake


DAVI MOLINARI

Final da tarde no Fale Mais Sobre Isso é aquela hora em que até a luz parece suspensa, indecisa entre ser amarela de boteco ou cinza de CPI. Sentei com o Doutor na nossa mesa de costume, e ele já com o bloquinho pousado como quem coloca um estetoscópio na mesa de cirurgia. Nem quente, nem frio: clima ideal para perder a esperança com dignidade.

Eu encarava meu copo vazio como quem olha o fundo de um abismo que devolve espuma. Juvenal vinha vindo lá de dentro com a nova rodada, equilibrando dois chopes e uma porção de manjubinhas crocantes, típico de quem equilibra a saúde mental da República.

— O senhor hoje tá calado — me disse Juvenal, pousando a bandeja. — Calado com cara de angústia. Aquele silêncio que só quem já viu coisa demais no noticiário carrega.

O Doutor me fuzilou como quem vê o demônio acampado dentro do paciente. Sobrancelhas erguidas, sorriso ambíguo e aquele movimento que diz: “Começou.”

Respirei fundo e soltei: — Tô angustiado, Doutor. É como se eu tivesse… sei lá… uma laranja no peito. Uma laranja radioativa, uma bomba — daquelas que estouram um quarteirão inteiro pra só depois serem reveladas.

O Doutor levantou apenas uma sobrancelha, aquele gesto típico de quem diagnostica um terremoto emocional antes do chão tremer.

Juvenal puxou uma cadeira, mas não sentou; ficou no perímetro clínico e disse: — Angústia é normal. A semana girou inteira em torno de “sufocar o crime organizado”, mas a resposta veio como uma bola quadrada da zaga: o substitutivo do Derrite… olha, aquilo ali é igual a panela velha: o cheiro de queimado entrega de longe.

— Aliás, Juvenal… — perguntei. — O que pretende esse substitutivo do Derrite?

Juvenal não hesitou: — Pretende o contrário do que diz pretender. O texto é como o Cavalo de Troia. Carrega dentro um embrião de corrupto mais focado em blindar criminosos de colarinho branco do que em combater facção. É o famoso drible da vaca na sociedade.

Eu respirei fundo. — É isso, Doutor. Essa é a origem da minha angústia. Não quero ser imbecil a ponto de acreditar que vacina dá infarto, nem virar estatística do Instituto “Meu Primo Disse”. Mas também não quero ser ingênuo a ponto de acreditar na boa vontade de um texto que parece ter sido escrito por Hugo Motta, Arthur Lira e Eduardo Cunha, apresentado pelo Derrite, usado como mensageiro numa trama que envolve sabe Deus quem mais.

O Doutor fez um trejeito com a boca. Juvenal cruzou os braços.

Juvenal concordou com um estalo de língua. — É sempre o mesmo grupo… aquele que se apropria há décadas das tetas da República em qualquer governo: faça sol ou faça chuva.

Massageei a têmpora e soltei: — E como se não bastasse, Doutor… justo na semana da lei contra o crime organizado, um espantoso caminhoneiro fecha o Rodoanel por cinco horas com uma bomba de mentira. Bomba falsa, Doutor! Eles conseguiram inventar até o terrorismo fake.

Levei as mãos à cabeça. — É coincidência ou eu tenho o que o Doutor chama de apofenia e coleciono padrões imaginários? Será que virei conspiracionista, gado paranoico? Sei lá, Doutor, só não quero ser o idiota que acredita em tudo, nem o trouxa que não acredita em nada.

O Doutor ajeitou os óculos, passou o dedo no queixo, abriu o bloquinho e respirou como quem vai pronunciar o destino. A frase veio curta, afiada e certeira: — Você não é paranoico. Você só parou de ser inocente.

Juvenal, recolhendo o prato de manjubinhas, arrematou com a ironia de quem já viu o mundo mudar várias vezes: — Doutor, com todo respeito, o paciente não sofre de paranoia. Ele tem Transtorno de Déficit de Vergonha na Cara Institucional. É um observador atento. E, como diria Lacan: o real é o impossível… de acontecer e não virar escândalo. Mais um chope?


Publicado originalmente em Divã no Boteco LVII. Enviado pelo autor.

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