Relatório do bolsonarista Guilherme Derrite é aprovado na Câmara dos Deputados, mas com uma importante derrota ao não conseguirem qualificar as facções criminosas como terroristas, o que abriria espaço para o intervencionismo externo. Proposta final, entretanto, mantém tentativa de esvaziamento da Polícia Federal
O substitutivo do deputado Guilherme Derrite (PP-SP) apresentado ao projeto de lei encaminhado pelo governo federal foi aprovado na noite desta terça-feira (18) pela maioria dos integrantes da Câmara dos Deputados. O parecer do parlamentar teve o apoio de 370 parlamentares, contra 110 votos.
O projeto original, de autoria do governo Lula, pretende modernizar o marco legal brasileiro de enfrentamento às organizações criminosas, aí incluídas as chamadas milícias, promovendo alterações em seis normas em vigor, quais sejam: a Lei das Organizações Criminosas (L. 12.850/2013), o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei dos Crimes Hediondos (L. 8.072/1990), a Lei de Prisão Temporária (L. 7960/1898) e a Lei de Execução Penal (L. 7210/1984).
Derrite, liberado por Tarcísio de Freitas da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para assumir o mandato e proteger os cabeças e financiadores do crime organizado e enfraquecer o papel da Polícia Federal (PF), apoiado pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), como relator, chegou a apresentar seis versões de seu substitutivo, recuando em vários aspectos, pelos retrocessos que representavam.
Sob o falacioso e eleitoreiro pretexto de dar um tratamento penal mais rigoroso para a modalidade qualificada como crime organizado, o texto aprovado permite definições genéricas e ambíguas, abrindo espaço excessivo para interpretações ou distorções, o que pode provocar uma verdadeira balbúrdia jurídica, em razão da criação de um novo marco legal, que pode representar um presente às facções criminosas e seus defensores nos tribunais.
A deputada Jandira Feghali, diante desse cenário, reagiu em suas redes sociais e escreveu:
“Fui chamada a Brasília para discutir o PL Antifacção me causou estranhamento ver a relatoria entregue ao secretário de Segurança de São Paulo, que em apenas uma hora apresentou um texto que deturpa o projeto sólido enviado pelo governo Lula. Não aceitarei misturas perigosas entre crime organizado e terrorismo, nem a criação de tipos penais absurdos que fragilizam a lei e ameaçam direitos. Estou aqui para defender um projeto sério, eficaz e alinhado ao Estado Democrático de Direito”.
BALBÚRDIA JURÍDICA: PRESENTE AOS CRIMINOSOS
A última versão de Derrite, a aprovada pela Câmara, modifica substancialmente a proposta originalmente encaminhada pelo governo, embora com uma derrota para os bolsonsaristas: Hugo Motta, liminarmente, em parecer lido no plenário, recusou qualquer destaque ao texto que recuperasse a equiparação dos crimes praticados das facções criminosas às práticas de terrorismo, por não ser o objeto do projeto original, algo muito acalentado pelos que, como o foragido Eduardo Bolsonaro, são obcecados para facilitar uma “intervenção estrangeira” no Brasil, no caso, dos EUA de Trump.
O projeto original do governo pretendia instituir um tratamento penal mais rigoroso para a modalidade qualificada de organização criminosa. No entanto, diferentemente dessa proposta, que traz uma definição clara e objetiva do que seriam as organizações criminosas qualificadas, Derrite resolveu estabelecer uma tipificação anômala para esse crime.
O substitutivo aprovado também prevê uma lista de dezenas de condutas que, isolada ou conjuntamente, pode caracterizar o crime das organizações criminosas, utilizando, no art. 2º, uma fórmula totalmente estranha à técnica legislativa do Direito Penal brasileiro, segundo especialistas.
Diz o relatório:
“Constitui crime, independentemente de suas razões ou motivações, a prática, por membros de organização criminosa, paramilitar ou milícia privada, de condutas tendentes a: I – utilizar violência ou grave ameaça para intimidar, coagir ou constranger a população ou agentes públicos, com o propósito de impor ou exercer o controle, domínio ou influência, total ou parcial, sobre áreas geográficas, comunidades ou territórios; II – empregar ou ameaçar por meio da utilização de armas de fogo, explosivos, gases tóxicos, venenos, agentes biológicos, químicos ou nucleares, expondo a perigo a paz e a incolumidade pública; III – restringir, limitar, obstaculizar ou dificultar, ainda que de modo temporário, a livre circulação de pessoas, bens e serviços, públicos ou privados, sem motivação legítima reconhecida pelo ordenamento jurídico; IV – impedir, dificultar, obstruir ou criar embaraços à atuação das forças de segurança pública, à perseguição policial ou às operações de manutenção da ordem, mediante a colocação de barricadas, bloqueios, obstáculos físicos, incêndios, destruição de vias, uso de artefatos ou qualquer outro meio destinado a restringir o deslocamento, a visibilidade ou a ação policial; V – impor, mediante violência ou grave ameaça, qualquer tipo de controle social para o exercício de atividade econômica, comercial, de serviços públicos ou comunitários; VI – usar explosivos, armas de fogo ou equipamentos para prática de crimes contra instituições financeiras de qualquer natureza, base de valores ou carros fortes, ou para interromper, total ou parcialmente, fluxo terrestre, aéreo ou aquaviário, com o objetivo de obstruir, dificultar ou postergar a atuação preventiva ou repressiva do Estado; VII – promover ataques, com violência ou grave ameaça, contra instituições prisionais; VIII – apoderar-se ilicitamente, danificar, depredar, incendiar, destruir, saquear explodir ou inutilizar, total ou parcialmente, meios de transporte; IX – apoderar-se ilicitamente ou sabotar aeronaves, expondo a perigo a vida ou a integridade física de uma ou mais pessoas, ou comprometendo a segurança da aviação civil; X – apoderar-se, sabotar ou inutilizar, total ou parcialmente, o funcionamento, ainda que de modo temporário, portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração, transmissão ou distribuição de energia, unidades militares ou instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás; XI – interromper, danificar, perturbar ou dificultar o restabelecimento dos bancos de dados públicos, bem como dos serviços informático, telegráfico, radiotelegráfico, telefônico ou telemático governamentais ou de interesse coletivo, com o fim de desorientar o funcionamento, subtrair informações sigilosas ou obter vantagem de qualquer natureza.”
No entanto, muitas dessas condutas claramente ilícitas já são tipificadas em outras leis e, até mesmo, no Código Penal, com penas consideradas adequadas para a gravidade relativa de cada uma delas. O que o substitutivo de Derrite propõe é que qualquer uma dessas condutas deverá ser punida da mesma forma, isto é, com penas que variam de 20 a 40 anos, desde que praticadas por membros de organizações criminosas.
O governo vê a possibilidade de se provocar, no país, um verdadeiro “caos jurídico” com essas mudanças. O Ministério da Justiça já alertou sobre os riscos de descapitalização da Polícia Federal, sobreposição de condutas, resultando em um ambiente jurídico mais complexo e desafiador.
PENAS DESPROPORCIONAIS E PENAS A QUEM NÃO COMETEU CRIME ALGUM
Derrite foi além e também propôs a punição com penas de 15 a 30 anos a quem praticar as condutas enumeradas, mesmo que não integrem organização criminosa, paramilitar ou milícias (art. 2º, § 3º). Ou seja, se, durante uma ação social de protesto em que haja dano ao patrimônio público ou privado, alguém atira uma pedra e danifica um ônibus (meio de transporte), o crime de dano será punido não mais com a pena do art. 163 do Código Penal, que pode chegar a 6 anos, mas com de 15 a 30 anos. Uma pena, como se vê, totalmente desproporcional à lesão provocada, e que incidirá, supostamente, sobre a raia miúda do crime organizado, protegendo os seus ordenadores e financiadores.
Outra alteração proposta por Derrite que causou ainda mais perplexidade foi a punição a quem não cometeu crime algum, mas é dependente legal do criminoso preso cautelarmente ou em cumprimento de pena. É o que consta do art. 2º, § 6º do substitutivo:
“§6º Aos dependentes do segurado que estiver preso cautelarmente ou cumprindo pena privativa de liberdade em regime fechado ou semiaberto, em razão do cometimento dos crimes previstos neste artigo, fica vedada a concessão do benefício de auxílio-reclusão, previsto no art. 80 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991”.
Ora, punir os dependentes de um segurado da Previdência que faça jus ao recebimento de um benefício social previsto em Lei, é fazer com que a pena passe da pessoa do condenado para seus familiares, contrariando o que está expresso no art. 5º, XLV, da Constituição. Trata-se da aplicação de uma espécie de direito penal objetivo, onde se pune alguém não pela conduta praticada, mas por pertencer à mesma família de alguém que praticou determinado crime.
DERRITE DESCAPITALIZA A PF E NÃO DESCAPITALIZA AS FACÇÕES
Outro ponto que contraria a proposta do governo diz respeito à apreensão de bens e valores, bem como ao chamado perdimento desses bens apreendidos na posso de organizações criminosas. No projeto original, esse procedimento seria agilizado, pois poderia ser decretado pelo próprio juiz criminal que conduz o inquérito e a eventual ação penal.
Segundo o parecer de Derrite, esse perdimento de bens depende de uma ação civil autônoma, o que poderia levar vários anos de tramitação e sujeita a todas as intervenções processuais dos interessados em manter seu patrimônio adquirido ilicitamente.
Além disso, como denunciou o líder do PT, deputado Lindbergh Farias (PT), durante a votação, a proposta de Derrite “não enfrenta a capitalização do crime organizado e descapitaliza a Polícia Federal”, na medida em que modifica a lógica de financiamento dos fundos operados pelas polícias da União (PF e Polícia Rodoviária Federal), desidratando e dispersando esses fundos.
A aprovação do substitutivo de Derrite, que busca esvaziar as competências e os recursos destinados à Polícia Federal, aconteceu no mesmo dia em que o país amanheceu com uma ação dessa instituição que resultou na prisão do dono do Banco Master, Daniel Vorcaro, ao tentar fugir do país, depois de ter provocado uma fraude financeira que, segundo a PF, pode ter movimentado a cifra de R$ 12 bilhões.
São figuras como Vorcaro e outras instaladas na Faria Lima, muitos deles cabeças e financiadores do crime organizado, que Derrite, certamente, com o apoio de Bolsonaro e Tarcísio de Freitas, quer poupar, pois o importante é enjaular os pretos e pobres das favelas, destituídos de emprego e escola, contratados pelo crime organizado para fazer o jogo sujo
A política de segurança, ou melhor, de insegurança pública da extrema-direita bolsonarista, é clara e foi demonstrada na trágica operação de Cláudio Castro, no Rio de Janeiro, recentemente, quando morreram 121 pessoas, sendo 4 profissionais da segurança pública. Na ação, essencialmente eleitoreira, dos supostos 117 criminosos que morreram, não constavam nenhum dos 66 apontados pelo Ministério Público na peça que embasou a operação. E mais: o líder operacional da facção criminosa Comando Vermelho, “Doca” ou “Urso”, como é chamado, conseguiu escapulir.
Por isso mesmo, a tropa de choque bolsonarista no Congresso Nacional continua se esquivando de apreciar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública encaminhada pelo presidente Lula como o diabo foge da cruz. A razão é simples: trata-se de uma proposta que encara com seriedade o problema da segurança pública no país ao integrar as polícias federais às estaduais e fortalecer a Polícia Federal, notadamente os seus instrumentos e serviços de inteligência, sem o que a operação Carbono Oculto, deflagrada em agosto deste ano, que alvejou a Faria Lima, desmantelou organizações criminosas que atuam em corretoras e fundos de “investimento” e bloqueou bens que chegam a R$ 1 bilhão, seria impossível, assim como a prisão, hoje, de outro chefe de uma quadrilha do setor financeiro com vínculos poderosos com o bolsonarismo (ver matéria: Bolsonaristas envolvidos até o talo nas falcatruas e crimes do Banco Master).
A expectativa, agora, é que o Senado Federal, próximo destino da matéria, resgate os pontos principais da proposta original do governo, eliminando os retrocessos do texto de Derrite aprovado na Câmara, seja pela sua subserviência aos que verdadeiramente sustentam o crime organizado no país, seja pelo seu flagrante viés eleitoreiro.
MARCO CAMPANELLA











