Poder do tráfico e legalização das drogas, por Paulo Kliass

Paulo Kliass, especialista em Políticas Públicas. Foto: Vitor Solemar

PAULO KLIASS *

Em sua estratégia de atirar para todas as direções e criar um conjunto de pontos de conflito na seara internacional, Donald Trump avançou recentemente algumas peças em seu tabuleiro relativo às sucessivas provocações contra a Venezuela e demais países da América do Sul. O chefe da Casa Branca determinou que seu governo considere o Presidente venezuelano como “terrorista”. Na verdade, trata-se de uma continuação do enredo que buscava responsabilizar Nicolas Maduro como líder “narcoterrorista”, com a intenção de acusá-lo de abastecer os Estados Unidos com drogas ilegais.

A chamada “Guerra às Drogas” (do War on Drugs na língua original) é um movimento antigo que vários governos estadunidenses têm levado à frente ao longo das últimas décadas. Na verdade, tal diretriz conta com mais de meio século de presença à frente da política daquele país, quando em 1971 o então Presidente Richard Nixon adotou a expressão para sua linha de governo. Os Estados Unidos são o principal mercado consumidor de drogas ilegais do globo e a similaridade com a estratégia belicista não é mera coincidência. A mesma nação que levou sua aventura militar para um sem número de conflitos espalhados pelo mundo afora, busca uma analogia com suas intervenções no Vietnã, Iraque, Afeganistão, Balcãs, Síria, Líbia e tantas outras para lidar com as drogas.

Ao reforçar sua auto proclamada condição de polícia do mundo, os EUA não vacilam em passar por cima das regras e dos pressupostos do direito internacional para fazer valer seus interesses. No caso mais recente transferiram o maior porta-aviões de suas Forças Armadas para as costas do Caribe e da América do Sul, em uma clara tentativa de ameaça aos governos legitimamente eleitos na região. O foco continua sendo o Presidente Maduro e a Venezuela, mas o poder bélico da armada ianque é absolutamente desproporcional. O USS Gerald Ford tem capacidade para transportar 75 aviões de caça e bombardeio. Além disso, as forças norte-americanas destroem barcos e assassinam suspeitos em águas internacionais da região, com a desculpa de que se trata de traficantes. Assim, segue valendo a conduta conhecida de prepotência absoluta e da falta de provas que estariam a embasar as acusações.

GUERRA ÀS DROGAS: NO BRASIL E NO MUNDO

No plano interno do Brasil, a emergência do tráfico e da milícia segue a trajetória de crescimento das atividades ilegais, seja em termos do volume de negócios, seja em termos da impressionante expansão territorial. A força das diversas formas de manifestação do crime organizado tem aumentado em ritmo assustador e passado a influenciar de forma direta e indireta as instituições políticas, além das polícias e do poder judiciário. Uma das principais fontes da possibilidade da expansão desse modelo é a proibição das drogas. Ainda que o crime organizado esteja em claro processo de diversificação de suas fontes de lucro, o fato inegável é que a droga proibida é o início de tudo e a atividade mais relevante das organizações.

O volume de dinheiro que transita pelas contas do tráfico, da milícia e assemelhados envolve modelos de negócios cada vez mais sofisticados, permitindo que as bases territoriais sejam consolidadas e disputadas de forma também violenta. Drogas, armas, serviços “públicos” ilegais, meios de transporte marginais e tantas outras atividades são controladas a ferro e fogo pelos “chefes” na comunidade no poder local e nos espaços regionais, nacional e até mesmo internacional.

Ora, para grande maioria dos estudiosos e analistas do fenômeno o ponto fulcral de tudo isso é a criminalização das drogas. A analogia sempre utilizada é com a situação dos Estados Unidos durante o período da chamada Lei Seca. Durante 13 anos na primeira metade do século XX, o álcool era proibido naquele país. No entanto, a demanda por bebidas seguia existindo e o fornecimento deveria ser realizado de forma ilegal e clandestina. Assim, o que se viu foi o fortalecimento dos grupos organizados em torno das máfias. E a derrota efetiva de seu poderio só foi possível a partir de 1933, quando foram eliminados o proibicionismo e a criminalização.

CRIMINALIZAÇÃO É A BASE DO TRÁFICO, DAS MILÍCIAS E DA CORRUPÇÃO

No caso atual o caminho deveria ser o mesmo. Tanto para a esfera internacional quanto para as questões domésticas, a opção pela legalização das drogas é a melhor estratégia para lidar com o crescimento do poderio do tráfico e das milícias. Isso permitiria tratar as drogas como política de saúde pública e não como ramo especializado das polícias. A proibição gera um conjunto de graves distorções, a exemplo da baixa qualidade dos produtos ofertados, o aumento dos riscos inerentes às atividades, as altas taxas de mortalidade no sistema e em seu entorno, o oligopólio na produção e na comercialização, dentre tantas outras. A descriminalização gera um efeito imediato de desconcentração do modelo de negócios, com consequências positivas para o conjunto da sociedade.

As operações recentes na Faria Lima têm buscado encontrar os pontos de ligação do crime organizado com as empresas do sistema financeiro. Afinal, trata-se de um volume mastodôntico de dinheiro de origem ilegal e criminosa que precisa ser legalizado da noite para o dia. Sua passagem ou mesmo seu ingresso no interior do financismo oferece o caminho da solução “siga o dinheiro” (do inglês follow the money) para compreender os fluxos dos recursos e chegar aos principais atores responsáveis na complexa teia de relações existentes. Assim, além de buscar estrangular o crime organizado pelas vias da institucionalidade do próprio aparelho de Estado, cabe eliminar a origem proporcionada pela criminalização.

DROGAS: TEMA DE SAÚDE PÚBLICA E NÃO ASSSUNTO DE POLÍCIA

Enquanto as drogas seguirem sendo objeto de tratamento das polícias, o crime organizado estará com suas fontes de alta rentabilidade assegurada. Enquanto as drogas forem ilegais, as cruzadas do tipo “guerra às drogas” seguirão na ordem do dia. Enquanto as drogas permanecerem como bens proibidos e seu uso considerado como atividade criminosa, o tráfico e a milícia só farão aumentar seu faturamento e seus lucros. As demandas pelo uso medicinal cada vez mais comprovado ou pelo uso recreativo não foram reduzidas pelo proibicionismo. A descriminalização é o caminho mais adequado e menos prejudicial para o conjunto da sociedade.

Legalizar as drogas significa eliminar a retórica de polícia do mundo de Trump e demais dirigentes estadunidenses. Legalizar as drogas ajuda a desmontar o poder e as estruturas do crime organizado no interior do Estado e da sociedade. Legalizar as drogas significa oferecer luz e oxigênio a um conjunto de atividades atualmente consideradas criminosas e que se mantêm vivas graças à corrupção.

* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

Compartilhe

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *