IRAPUAN SANTOS*
O samba, expressão maior da música brasileira, é um fenômeno cultural coletivo desenvolvido nos últimos séculos em nosso país, de difícil delimitação de origem no tempo e no espaço. Desta maneira é fundamental que seja tratado como tradição presente nas mais diferentes regiões brasileiras.
Suas origens rurais são inegáveis, assim como seu crescimento e influência social nas camadas urbanas da sociedade, através do tempo, acompanhando o próprio desenvolvimento do País.
Neste dia 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba, prestamos esta homenagem a Geraldo Filme, um dos grandes sambistas brasileiros, nascido em São Paulo, que este ano completaria 99 anos de vida.
É muito importante, através de sua trajetória, refletir sobre o que ela tem de original e ao mesmo tempo comum ao desenvolvimento do samba e da cultura popular. A obra de Geraldo Filme reúne as vertentes rurais e urbanas do nosso samba e reflete e se confunde, como poucas, com a trajetória e evolução desse gênero tão caro aos brasileiros.
O EVENTO
Relatos de tradição oral contam que José de Almeida Neves, morador do Bairro de Pirapora, em Santana do Parnaíba/SP, por volta de 1725, encontrou, no Rio Anhembi, encostada na altura do Salto do Pirapora, numa pedra, uma imagem do Bom Jesus. Seria esta a origem do Santuário do Bom Jesus, depois construído às margens do Rio Tietê (peixe-que-pula, em Tupi-Guarani) há 50 quilômetros de São Paulo, no atual Município de Pirapora do Bom Jesus.
A comemoração religiosa oficial de Pirapora transformou-se em grande evento, motivo da afluência de grande massa de romeiros de todo o Estado, especialmente do interior. Tem-se notícia de ter reunido até 600 mil pessoas há décadas atrás. Uma festa de brancos onde os negros ficavam à margem. Assim, enquanto a elite se acomodava em hospedagens e assistia aos dobrados nos salões, os negros iam para o barracão e faziam batuque durante a noite.
Grande parte da população negra de São Paulo é egressa da falência da cultura do algodão nordestina. Por volta de 1850, grande contingente foi trazido para Campinas e outros municípios do interior paulista para o trabalho na promissora lavoura do café.
Em Campinas, o samba dos negros era chamado de cayumba, dançado com umbigada, na Coroação dos Reis do Congo, acompanhado por instrumentos de percussão como o tambu, o quinjengue e o urucango. Segundo o artigo “Samba Paulista e suas Estórias”, publicado na revista Sarao – Centro de Memória – Unicamp, o maestro campineiro Carlos Gomes, ao compor a obra “Quilombo – Quadrilha Brasileira Sobre os Motivos dos Negros”, subdividida em Cayumba, Bananeira, Quingobô, Bamboula e Final, teria se inspirado na cultura negra de Campinas.
Desta maneira, o chamado samba de Pirapora, na verdade, vinha também de Campinas, Capivari, Piracicaba, Tietê, onde era praticado nas fazendas. Era chamado de samba de bumbo, um misto de samba com ritmos nordestinos como reisado, jongo e maracatu, cujo instrumental básico era bumbo, caixa e chocalho. Eram organizadas rodas de batuque e desafios em todas as noites dos festejos, como protesto da população negra e pobre marginalizada pela religião. Nelas, com o passar dos anos, também se integravam os bambas da Pauliceia.
DIFUSÃO
Fernando Faro, Oswaldinho da Cuíca e o escritor e mestre sala Wilson F. Moraes, em depoimentos para o documentário “Geraldo Filme – quando crioulo cantando samba era coisa feia”, dirigido por Carlos Cortez, em 1988, mostram a importância do Largo da Banana, na Barra Funda, na Capital Paulista, para o desenvolvimento do samba.
A Barra Funda é uma das grandes estações ferroviárias de São Paulo. Os ferroviários que traziam muitas mercadorias, especialmente a banana, que deram nome ao Largo, se reuniam e como fossem em grande parte frequentadores do batuque de Pirapora, lá organizavam suas rodas. Toniquinho Batuqueiro, no mesmo documentário, registra também a existência das rodas de tiriricas, ao som das do batuque das caixas de engraxates. Oswaldinho da Cuíca explica que diferentemente da capoeira jogada na Bahia ou no Rio de Janeiro, a tiririca era um desafio, à base de visagem e pernada, ao som do samba rural paulista. Seu Nenê de Vila Matilde, em seu livro de memórias, organizado pela jornalista Ana Braia, confirma: “Não éramos só nós, no Largo do Peixe. O Germano Mathias e o Caco Velho também davam pernada na Praça da Sé. No Largo da Banana tinha o Inocêncio Tobias com o pessoal da Barra Funda”. (p. 42).
Quando Geraldo Filme nasceu, em 1927, o carnaval oficial em São Paulo era uma festa animada por marchas e às vezes valsas. Lembrava uma festa europeia nos trópicos, onde pontificavam grandes sociedades, muitas vezes com alegorias e fantasias que remetiam à ópera italiana.
No entanto, o povo, que nunca pediu licença para desenvolver suas próprias músicas e ritmos, se organizava em cordões e com seus estandartes faziam a festa à sua maneira. No início, a base instrumental dos cordões paulistas era exatamente a do chamado “samba rural”: bumbo, caixa e chocalho. Somente mais tarde, com o crescimento do choro, receberia a adesão de cordas e sopros.
GERALDO FILME
Geraldo Filme de Souza nasceu em 18 de outubro de 1927, em São João da Boa Vista/SP, filho de Sebastião e Augusta Geralda, ele exímio violonista.
A mãe, ativista em defesa das mulheres, viria a ser fundadora do Paulistano da Glória, antigo cordão carnavalesco, escola de samba da cidade de São Paulo e mais tarde animada gafieira frequentada por toda a esquerda paulistana, no bairro do Cambuci.
Aos cinco anos de idade, veio com a família para a Barra Funda, onde na infância se ocupava de entregar as marmitas que sua mãe fornecia.
Geraldo, aos 10 anos de idade, incomodado com o prestígio excessivo que considerava ser dado ao carnaval carioca, na época, apresentou seu cartão de visitas ao mundo do samba compondo “Eu vou mostrar”, música em que, demonstrando sua verve, finalizou com os seguintes versos:
“Somos paulistas/ E Sambamos prá cachorro
Prá ser sambista / Não precisa ser do morro/”
As idas com a família aos festejos de Pirapora definiram sua obra não só na temática, mas também no estilo irônico e característico de compor, transformando-o na grande personalidade do samba de São Paulo.
Sua composição “Batuque de Pirapora”, composta em redondilhas maiores e menores é uma narrativa quase autobiográfica do evento e das contradições sociais que marcavam o festejo:
“Eu era menino
Mamãe disse: vamos embora
Você vai ser batizado
No Samba de Pirapora
Mamãe fez uma promessa
Para me vestir de anjo
Me vestiu de azul-celeste
Na cabeça um arranjo
Ouviu-se a voz do festeiro
No meio da multidão
Menino preto não sai
Aqui nessa procissão
Mamãe, mulher decidida
Ao santo pediu perdão
Jogou minha asa fora
Me levou pro barracão
Lá no barracão
Tudo era alegria
Nego batia na zabumba
E o boi gemia
…………………………….…”
É importante destacarmos alguns aspectos deste trecho de composição. Em primeiro lugar, o conflito étnico social agudo que a sociedade vivia naqueles tempos. Há uma evidente ironia no verso inicial, quando a mãe leva a criança para ser batizada no “Samba de Pirapora”, e não na igreja. Nos versos seguintes a denúncia crua do racismo na voz do festeiro: “Menino preto não sai/ aqui nessa procissão”. O terceiro momento revela a consciência da mãe sobre a absoluta impossibilidade de assimilação dos negros pelos donos da festa: “Jogou minha asa fora / Me levou pro barracão”. E, finalmente, a imagem do barracão como metáfora da resistência do povo. Uma espécie de quilombo, onde “Tudo era alegria”. As imagens finais são profundamente reveladoras da essência do surgimento do samba paulista: feito por negros, tocando zabumba, o que remete aos ritmos nordestinos e à imagem do boi como evocação das fazendas e da vida rural.
Geraldo Filme transportaria toda sua experiência de vida para uma obra musical de forte conteúdo cronístico e social; para sua intensa atividade de organizador de blocos e escolas de samba; para suas ações como ativista, engajado na luta social ao lado do povo, sempre resgatando o papel do negro na sociedade.
Não é por outra razão que o seu samba “Reencarnação”, onde dialoga hipoteticamente com o criador, faz reivindicações para uma possível volta:
“…………………..…
Quero ser sambista
Ao renascer de novo
Pra cantar a alegria
E desventura de meu povo
Quero ter muitos amigos
Como tenho atualmente
Cantar samba na avenida
E nascer negro novamente”.
Em 1972, compôs para a Unidos do Peruche o samba “Chamamos aos Heróis da Independência”, que é finalizado com os versos:
“Senhores deixando palácios
Negros partindo as correntes
Índios saindo das matas
Unidos por um Brasil independente
Mil vidas tivessem dariam as mil
Pela independência do Brasil
Não foi em vão teu povo não esquece
A chama da liberdade nosso peito ainda aquece
Segue teu caminho meu Brasil
Alerta mocidade para manter acesa
A chama da nossa liberdade”
Segundo Carlão, presidente da Escola de Samba à época, “quando chegou lá, a escola estava metralhada, as fantasias e os instrumentos estavam quebrados. Segundo o fundador da Unidos do Peruche, os policiais agrediram seus filhos, sua companheira e outros integrantes da escola.” Geraldo Filme desapareceu por 30 dias e depois comunicou a amigos que tinha sido recolhido ao DOPS, que estava interessado em saber de suas relações com Solano Trindade, de quem era companheiro desde a época do Teatro Popular Brasileiro, criado por Solano e Edson Carneiro.
Geraldo Filme compôs sambas para diferentes escolas de samba de São Paulo, como a Paulistano da Glória, e foi integrante e compositor da Colorado do Brás, da Unidos do Peruche, Camisa Verde e Branco e Vai-Vai. Era admirado por todos os sambistas. Segundo o Dicionário Cravo Albim, o carioca Mano Décio da Viola, autor dentre outros de “Heróis da Liberdade”, com Silas de Oliveira, não teve dúvidas em afirmar em certo momento: “Geraldão no momento é quem melhor arma samba enredo no Brasil”.
Além disso, Geraldo Filme deixou sambas de quadra memoráveis como “Tradição” e “Silêncio no Bixiga”, em sua passagem pela Vai-vai.
Em 1975 Clementina de Jesus ganhou o prêmio de “Melhor Intérprete” no “Festival Abertura”, da TV Globo, com a composição “A morte de Chico Preto”, de autoria de Geraldo Filme. Um samba com viola, refrão de capoeira e motivação rural.
Geraldo Filme gravou em 1980, aos 52 anos, pela Eldorado, o primeiro LP, “Geraldo Filme”, que contou com textos do teatrólogo e escritor Plínio Marcos, e gravou várias de suas composições, tais como “São Paulo, Menino Grande”, “Silêncio no Bexiga”, “Vai no Bexiga pra Ver”, “A Morte de Chico Preto”, “Vai cuidar da tua vida”, “Reencarnação”, “Vamos balançar” e “Garoto de pobre”.
O CANTO DOS ESCRAVOS
Em 11 de fevereiro de 1982 é lançado LP “O Canto dos Escravos”, que reuniu Geraldo Filme, Doca, pastora e baluarte da Portela, e Clementina de Jesus, que neste álbum faz suas últimas gravações. Um projeto de Aluízio Falcão, gravado no Estúdio Eldorado, que teve como produtor e diretor musical o Maestro Marcus Vinícius Andrade.
Trata-se de um projeto raro e muito valorizado na discografia brasileira. Foram gravados 14 cantos, dentre os 65 cantos colhidos pelo professor e linguista mineiro Aires da Mata, durante a década de 30. São chamados de vissungos, cantos de trabalho dos negros benguelas. Conforme explica o professor no livro “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais”. Foram colhidos na cidade de São João da Chapada, Município de Diamantina, em Minas Gerais. Alguns pesquisadores dividem as 14 faixas em vissungos de protesto, louvação religiosa e visaria e diversão.
Para o jornalista Nabor Júnior,
“Ao dispensar instrumentos harmoniosos e apostar na percussão para compor o acompanhamento das músicas, Marcus Vinícius agregou ritmo e força ao trabalho. A introdução de ritmos binários generalizados de umbanda, tais como o barravento, que ouvimos em casas de umbanda, macumba e jurema por todo o país materializados na percussão de troncos, xequerês, enxadas, cabaças, atabaques, agogôs, caxixis e afoxés tocados por Djalma Corrêa, Papete e Don Bira dão fôlego e corpo ao álbum.”
A GRANDE HOMENAGEM
Em 1982, a vida e a obra de Geraldo Filme são levadas para as telas através do documentário “Geraldo Filme – Quando crioulo cantando samba era coisa feia”. O documentário, com 52 minutos de duração, dirigido por Carlos Cortez, com argumento de Sérgio Rubens de Araújo Torres, tendo como ator Léo Medeiros, realizado pelo CPC-UMES, com produção do Birô de Criação e com co-produção da TV Cultura, recebeu o prêmio de Melhor Filme Brasileiro, no 3º Festival Internacional de Documentários de São Paulo – É tudo Verdade, Prêmio Especial do Júri no 26º Festival de Gramado, Prêmio de Melhor Média Metragem no 6º Festival de Cuiabá, e Prêmio de Melhor Roteiro e Melhor Montagem no 31º Festival de Cinema de Brasília.
Tendo a participação dos Demônios da Garoa, Escola de Samba Vai-Vai, Germano Matias, Itamar Assumpção, Maria Ester de Pirapora, Nelson Creciben, Oswaldinho da Cuíca, Plinio Marcos, Raquel Trindade, Silval, Escola de Samba Império do Cambuci, Toniquinho Batuqueiro e Wilson R. de Moraes, é um mergulho no universo do samba e na cultura negra paulista através da obra do compositor Geraldo Filme.
Niterói, 2 de dezembro de 2025.
* Irapuan Santos, Presidente do CNAB – Congresso Nacional Afro-Brasileiro, Membro do Comitê Central do PC do B, licenciado em Letras pela UERJ e Música pela UFRJ.
Fontes consultadas:
CORTEZ, Carlos. Filme-documentário – GERALDO FILME, quando crioulo cantando samba era coisa feira – CPC da Umes – TV Cultura – Birô da Criação. SP. 1988
PROENÇA, M. Cavalcanti. Ritmo e Poesia – Simões Editores e Livraria. Rio de Janeiro
BRAIA, Ana. Memórias do Seu Nenê da Vila Matilde. Lemos Editorial & Gráficos. São Paulo.2000.
Cupinzeiro, Núcleo de sambista do, e Vo Simon, Olga. “O Samba Paulista e suas Estórias”. Revista Sarao nº 26 – Centro de Memória da UNICAMP.
ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Cravo Albin de Música Popular. www.palmares.gov.br. Fundação Palmares. Consulta em 01.12.2022
NABOR, Júnior. Sons de Trabalho. Música de Liberdade. Revista Omenelick2ato. https://www.omenelick2ato.com/musicalidades/o-canto-dos-escravos . Consultada em 01.12.2025.
COSTA, Daniel. Geraldo Filme, e os caminhos do samba da Paulicéia – o Paulistano da Glória. jornalggn@gmail.com. Publicado em 13.10.2022. Consultado em 01.12.2025.
SANTOS, Irapuan. GERALDO FILME E O SAMBA DE PIRAPORA – Cultura Popular em São Paulo. UFRJ. Músicas de Tradição Oral no Brasil. Julho/2018. RJ










