Projeto reduz penas de crimes contra o Estado Democrático e reabre a ferida do 8 de janeiro, afrontando o Judiciário e degradando o pacto civilizatório.
MARCOS VERLAINE (*)
Projeto que nasce torto. E pretende endireitar criminosos, não a lei. Trata-se do chamado PL da Dosimetria — PL 2.162/23 — de autoria de vários deputados bolsonaristas, é vendido por seus defensores como “correção técnica”, suposta modernização dos critérios de cálculo e progressão de penas. Mas não é.
Trata-se de anistia envergonhada, remodelada para parecer neutra, quando seu objetivo é evidente: aliviar a situação penal dos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023. Inclusive possíveis beneficiários diretos no alto escalão político e militar, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o líder da organização criminosa, que liderou a trama golpista.
O projeto altera a forma como se somam crimes, reduz o rigor nas penas e flexibiliza a progressão de regime. Engenharia jurídica precisa, mas politicamente dirigida. Não por acaso, a proposta original era a anistia explícita, posteriormente reembalada como “dosimetria”.
Ao tentar mudar as regras após o jogo ter terminado, o Legislativo toca em uma das fibras mais sensíveis do Estado Democrático de Direito: a independência das decisões judiciais e o respeito às sentenças consolidadas, transitadas em julgado, como se diz no linguajar jurídico.
QUANDO O LEGISLATIVO RASURA O QUE O JUDICIÁRIO ESCREVEU
Chamar o que está em curso de “democracia conspurcada” não é exagero retórico. É descrição precisa.
Conspurcar significa sujar, manchar, degradar. Exatamente o que ocorre quando um poder da República busca intervir, por via legislativa, para mitigar penas de quem atentou contra a democracia e o Estado de Direito.
Se o STF julgou e condenou com base nas leis vigentes à época, mudar agora essas regras não é ato de justiça: é revisão casuística, com endereço certo e destinatários conhecidos.
É também ruptura simbólica grave: o Parlamento aparece como defensor de infratores que atacaram o próprio Parlamento, paradoxo que deveria constranger, mas que muitos celebram como vitória política.
Ao fazer isso, a maioria do Congresso envia ao País mensagem perigosa: a lealdade política vale mais do que a lealdade institucional.
O 8 DE JANEIRO NÃO PODE VIRAR “DIA DO DESCONTO PENAL”
Os atos golpistas que tentaram interromper a ordem constitucional em 2023 não foram “exagero de militantes”, tampouco “protesto que saiu do controle”. Foram ataques frontais às instituições, à Constituição e à soberania eleitoral.
Cada norma atenuante que o PL introduz, cada redução de punição escondida sob a capa técnica, produz efeito devastador: relativiza a tentativa de golpe de Estado.
Transforma o dia da destruição da Praça dos Três Poderes em algo passível de “correção legislativa”, como se fosse apenas controvérsia sobre cálculo penal. E não atentado à democracia.
O Brasil não pode naturalizar a ideia de que golpistas merecem desconto.
DISPUTA ENTRE PODERES E O VALE-TUDO JURÍDICO
O debate em torno do PL da Dosimetria é também, e sobretudo, embate entre Poderes. No caso, entre o Legislativo e o Judiciário.
É legítimo que o Congresso legisle sobre matéria penal. Mas é ilegítimo — e corrosivo — fazê-lo de maneira retroativa e direcionada, com o claro intuito de interferir na eficácia de decisões judiciais já transitadas em julgado. É o Legislativo revisando decisão do Supremo?
Se esse precedente prosperar:
• amanhã, outros grupos políticos poderão exigir “ajustes” penais quando seus aliados forem condenados;
• o Legislativo poderá se tornar balcão permanente de revisão de sentenças; e
• o Judiciário passará a ser visto como mero administrador provisório de punições negociáveis.
Nenhuma democracia sobrevive a esse tipo de erosão institucional.
SENADO TEM O DEVER DE IMPEDIR O RETROCESSO
Agora, o destino dessa anistia envergonhada está nas mãos do Senado Federal. Os senadores precisarão decidir se querem entrar para a história como fiadores de golpe brando contra o Judiciário ou como defensores da Constituição.
O País não precisa de PL que suavize crimes contra a democracia. Precisa, sim, de mensagem inequívoca: atacar o Estado Democrático de Direito nunca será bom negócio.
E, enquanto isso não estiver consolidado, a democracia brasileira continuará, sim, conspurcada — não pelos que a defendem —, mas pelos que a instrumentalizam para salvar aqueles que tentaram destruí-la.
(*) Jornalista, analista político, assessor parlamentar do Diap e redator do HP











