Carta do comandante da Marinha “desabona a trajetória e o legado histórico do marinheiro conhecido como ‘Almirante Negro’”
O Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil coletiva contra a Marinha do Brasil e a União, após o comandante da instituição, Almirante de Esquadra Marcos Sampaio Olsen, se posicionar, em carta à Câmara dos Deputados em 2024, contra o projeto de lei que coloca João Cândido, líder da Revolta da Chibata, no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.
Na ação, que já foi aceita pela Justiça, o MPF determina que o poder público se abstenha de novas manifestações ofensivas ao militar e pede a condenação da União ao pagamento de R$ 5 milhões por dano moral coletivo.
De acordo com o MPF, a carta do comandante da Marinha, “desabona a trajetória e o legado histórico do marinheiro conhecido como ‘Almirante Negro’”.
“O valor da multa deverá ser destinado exclusivamente a projetos e ações voltados à valorização da memória do líder da Revolta da Chibata, conforme regras estabelecidas em resolução conjunta do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”, afirma o MPF.
Segundo o órgão, é inaceitável a persistência de práticas institucionais de racismo e continuidade da perseguição histórica sofrida pelo marinheiro, inclusive após sua morte.
“Entre os fatos destacados, está o envio, em abril de 2024, de carta do comandante da Marinha à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, manifestando oposição ao projeto de lei que propõe a inscrição de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. No documento, além de conferir tratamento adjetivado a seus líderes, a Revolta da Chibata é classificada como ‘deplorável página da história nacional’ e ‘fato opróbio’, relegando, ainda, características negativas aos revoltosos. O mesmo entendimento foi reproduzido em documentos enviados ao MPF após recomendação do órgão”, aponta o Ministério Público.
O MPF também considera que a manifestação do comandante da Marinha afronta a Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, e a lei que concedeu anistia a João Cândido e aos demais participantes da revolta.
“A anistia tem efeitos jurídicos e simbólicos concretos e impõe ao Estado o dever de respeitar e preservar a memória coletiva associada à luta pelo fim dos castigos físicos na Marinha”, disse o procurador adjunto dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Julio Araújo, que assina a ação.
Ainda segundo o procurador, “a proteção da memória de João Cândido está diretamente ligada ao enfrentamento do racismo e à valorização das lutas da população negra por cidadania e igualdade no Brasil, temas destacados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF)”.
O direito à memória é um “direito assegurado na ordem constitucional, relacionado à dignidade da pessoa humana, ao direito à informação e à preservação do patrimônio histórico-cultural”, diz o texto.
A Revolta da Chibate, ocorrida em 1910, no Rio de Janeiro, foi um movimento liderado por João Cândido que tentou acabar com as práticas de castigos corporais contra os marinheiros, em sua maioria negros e pardos, as péssimas condições de trabalho e a falta de alimentação adequada.
A Revolta eclodiu quando, em 22 de novembro de 1910, um marinheiro desmaiou por receber 250 chibatadas. A rebelião, que durou quatro dias, levou o governo brasileiro a negociar e prometer abolir os castigos físicos na Marinha desde que a revolta acabasse.
Ao fim da revolta, no entanto, os líderes do movimento começaram a ser perseguidos, João Cândido foi preso e expulso da Marinha.











