Bolsonaro, Mourão e o resto da trupe têm que decidir se os médicos cubanos são perigosos espiões ou se são profissionais terrivelmente oprimidos pelo regime cubano.
As duas coisas é que não são possíveis.
Como eles se preocupam muito pouco – ou em nada – com a verdade, com a coerência ou com o respeito pela inteligência das pessoas, o mais provável é que não “decidam” nada, e continuem a falar as duas coisas ao mesmo tempo.
Em 2013, quando o programa Mais Médicos começou, havia 18.240 postos vagos para médicos (em 4.058 municípios e 34 Distritos Indígenas).
Os médicos cubanos preencheram, então, 11.429 vagas.
Hoje, segundo relatório do Ministério da Saúde de março de 2018, há 8.500 médicos cubanos no Brasil.
Em 2.340 municípios (58% do programa), os médicos cubanos são os únicos que existem – e eles ocupam 62% dos postos de trabalhos situados em locais mais distantes e com condições mais precárias.
Essa, segundo os dados do Ministério da Saúde, é a dimensão do problema.
Entretanto, há poucos dias, ao mesmo tempo em que Bolsonaro dizia, no Twitter, que o problema é que Cuba não aceitou aumentar o salário dos médicos, um energúmeno da sua turma dizia, em vídeo, que “mais da metade dos ‘médicos’ cubanos era de agentes infiltrados, assim como uma multidão de muçulmanos estão, há anos, entrando no país. O objetivo é formar um exército paralelo de esquerda, mais os ‘movimentos sociais’, para a tomada do poder”.
Poderia ser apenas um doente mental bolsonarista, porém, mesmo que seja, é apenas uma repetição do que disse o próprio Bolsonaro em 2016, também em vídeo:
“Desafio [os] Ministérios da Saúde, Justiça e Defesa a comprovar que efetivamente esses que estão chegando aqui são médicos, e não agentes ou militares cubanos com um propósito.”
Agora, na sua mensagem no Twitter – o instrumento favorito dos semi-descerebrados – disse Bolsonaro que rompeu o acordo com Cuba porque “condicionamos à continuidade do programa Mais Médicos a aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”.
Depois disso (aliás, no mesmo dia, 14/11), Bolsonaro disse que não acabaria com o Mais Médicos e que daria asilo aos médicos cubanos que quisessem ficar – ou seja, eles podem ficar como desertores, mas não como médicos de seu país que estão em missão no exterior.
Na segunda-feira (19/11), o vice de Bolsonaro, Hamilton Mourão, disse que “posso até ser leviano aqui, mas eu acho que metade [dos médicos cubanos] não volta”.
Mourão, pelo visto, gosta de ser leviano – caso contrário, por que se arriscar tanto a ser?
Mas a questão permanece: então, os médicos cubanos são agentes infiltrados no Brasil ou são vítimas do governo cubano?
Qual dos dois?
Vejamos os pretextos de Bolsonaro para deixar 28 milhões de brasileiros sem assistência médica.
CAPACIDADE
A capacidade dos médicos cubanos é reconhecida mundialmente. Inclusive nos EUA – como disse, em uma série de TV norte-americana, o famoso Dr. House: “Se existe algo que Fidel sabe fazer é treinar médicos”.
Colocar em questão essa capacidade – aliás, já provada em dezenas de países – é algo tão ridículo que até o provecto Estadão, que não pode ser acusado de simpatias para com o socialismo (muito menos para com o socialismo cubano), publicou uma reportagem (aliás, excelente) em que destrói as papagaiadas bolsonaristas, ali tratadas como “boatos” (v. Alessandra Monnerat, “Boatos sobre o Mais Médicos atacam a formação de profissionais cubanos”, OESP 20/11/2018).
A capacidade dos médicos cubanos que vieram ao Brasil foi atestada pela Organização Pan-Americana da Saúde e pela OMS.
Mas existe uma prova – esta, brasileira – que está, para nós, acima de todas: o desempenho dos médicos cubanos há cinco anos, desde o início do Mais Médicos.
Portanto, a “aplicação de teste de capacidade”, de que falou Bolsonaro, é apenas uma tentativa de difamação de Cuba e dos médicos cubanos.
Talvez fosse justo aplicar um teste de capacidade para presidente da República, mas, quanto aos médicos cubanos, eles já se submeteram ao mais difícil dos testes de capacidade. E foram aprovados.
SALÁRIO
Porém, vamos ao principal: a história de que os médicos cubanos não receberiam salário integral, que a maior parte desse salário seria “confiscado” pelo governo cubano.
Isso é, sem mais nem menos, mentira.
Os médicos cubanos que querem trabalhar no exterior assinam contratos com uma empresa estatal cubana, a Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A. (CSMC).
Ao assinar o contrato, eles sabem quanto vão ganhar de salário.
O governo brasileiro não assinou contrato algum com Cuba ou com a empresa estatal cubana.
O governo brasileiro assinou contrato com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS), que é uma divisão da Organização Mundial de Saúde (OMS), e, portanto, da ONU.
É a Opas/OMS que assinou contrato com a empresa estatal cubana.
O Brasil paga à Opas/OMS, que paga à empresa cubana, que paga aos médicos cubanos o que contratou com eles.
A questão do salário desses médicos, portanto, é uma questão que diz respeito ao contrato que eles assinaram com a Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A. (CSMC).
A história de que o governo cubano ficaria com 70% do salário deles é uma invenção, pois o salário é acertado com o médico quando este assina o contrato com a empresa.
Tudo isso está no site do Programa Mais Médicos, do Ministério da Saúde.
Porém, entremos, mais um pouco, na questão do salário.
1) Como já mencionamos, o salário que o médico cubano vai receber está estipulado no contrato com a empresa estatal cubana.
2) Além do salário que consta no contrato, o médico cubano recebe uma ajuda de custo do município no qual está trabalhando, para suas despesas pessoais.
3) Em Cuba, o emprego do médico é mantido enquanto ele está fora, no Brasil – e ele continua recebendo, também, o salário do emprego original em seu país.
4) Uma parte do salário é depositada numa conta, em Cuba, para uso de seus familiares.
Do ponto de vista do custo de vida em Cuba, essas são condições excepcionais.
Como diz o médico João Marcelo Goulart – formado em Cuba e integrante do Mais Médicos – é, provavelmente, difícil para alguns imaginar a vida em um país socialista (v. o artigo do Dr. João Marcelo Goulart, de onde retiramos as últimas informações, “Hipocrisia de Bolsonaro põe em risco a saúde de milhões”, alerta João Marcelo).
Lembro que, em 1990, visitando a URSS, que ainda existia, comprei uma verdadeira biblioteca, tão grande que não consegui enviá-la ao Brasil por avião – tive que recorrer ao transporte marítimo.
Preço total dessa bacanal livresca: o equivalente, em rublos, a quatro dólares.
Bolsonaro, sobre essa questão do salário dos médicos cubanos, deveria – se fosse um sujeito sério – rever o que disse no passado. Em uma série de pronunciamentos na Câmara, Bolsonaro berrava que o governo cubano ficava com 90% do salário dos médicos (v. notas taquigráficas dos discursos de Bolsonaro em 2013).
Hoje, a história é que o governo cubano “confisca” 70%.
Como a lista de comunistas do falecido senador McCarthy, cujo número mudava com a plateia – e com o teor alcoólico nas veias do senador -, a percentagem de Bolsonaro é variabilíssima.
O que apenas demonstra que qualquer bobagem serve para esse tipo de elemento. A verdade é o que menos importa.
Mas nada demonstra mais tal coisa, que o último item da explicação de Bolsonaro para romper com o Mais Médicos.
FAMÍLIAS
Quanto à “liberdade para trazerem suas famílias”, levantada por Bolsonaro, não há proibição para que isso aconteça.
Exatamente por isso, houve um deputado no Congresso que abriu uma guerra para impedir as famílias dos médicos cubanos de virem ao Brasil.
Esse deputado chamava-se Jair Bolsonaro. Vejamos alguns trechos de seus pronunciamentos:
“A verdade, aos poucos, vem vindo à tona: eles querem trazer 6 mil médicos cubanos. Prestem atenção. Está na medida provisória: cada médico cubano pode trazer todos os seus dependentes. E a gente sabe um pouquinho como funciona a ditadura castrista. Então, cada médico vai trazer 10, 20, 30 agentes para cá.
“Podemos ter, a exemplo da Venezuela, 70 mil cubanos aqui dentro” (v. notas taquigráficas da Câmara).
“Esses agentes podem adquirir emprego em qualquer lugar do Brasil com carteira assinada, inclusive cargos em comissão. Olhem o perigo para a nossa democracia”.
Em 2016, o mesmo deputado Jair Bolsonaro assinou com outro deputado – de nome Eduardo Bolsonaro – um projeto para proibir familiares de médicos cubanos de trabalharem no Brasil.
Esse é o sujeito preocupado com as famílias dos médicos cubanos…
C.L.