Só no Condado de Los Angeles há mais de 15.700 pessoas vivendo em 9.100 veículos todas as noites. Situação que se repete em Nova Iorque, Chicago ou outra qualquer entre as cidades mais ricas do país
Nos EUA, dezenas de milhares de pessoas, inclusive pessoas com emprego, “moram” em seus automóveis em estacionamentos nas maiores cidades do país, por não terem como arcar com a alta vertiginosa dos aluguéis, enquanto os salários mal crescem, uma “combinação tóxica” conforme apontou a Bloomberg.
De acordo com uma contagem feita em 2018, só no Condado de Los Angeles, Califórnia, há mais de 15.700 pessoas vivendo em 9.100 veículos todas as noites. Situação que se repete em Nova Iorque, Chicago ou outra qualquer entre as cidades mais ricas do país.
A razão é simples: enquanto os salários quase não se moveram ou, no caso do salário mínimo, está congelado há uma década, os alugueis, como subproduto da gigantesca quantidade de gente despejada pelos bancos após o crash e açambarcamento das casas tomadas, sofreram uma alta exorbitante.
De acordo com Freddie Mac, a gigante imobiliária semiestatal, a parcela de unidades de aluguel acessíveis para pessoas com baixa renda despencou 62% de 2010 a 2016.
Pesquisa do Zillow Group no ano passado descobriu que um aumento de 5% nos aluguéis em Los Angeles se traduz em cerca de 2.000 pessoas desabrigadas, entre as mais altas correlações nos EUA. O aluguel médio para um quarto na cidade foi de US $ 2.371 em setembro, alta de 43% desde 2010.
Da mesma forma, a consultoria McKinsey concluiu recentemente que há uma correlação de 96% entre a alta nos custos de habitação e o crescimento da população de sem-teto de Seattle. “Argumentei durante muito tempo que a questão dos sem-teto não se devia a aluguéis”, diz Joel Singer, diretor executivo da Associação de Corretores de Imóveis da Califórnia. “Eu não posso mais discutir isso.”
São casos dramáticos, como a professora de antropologia de 57 anos, que dá aulas em duas faculdades comunitárias, apenas identificada como “L.” a seu pedido, por medo de perder o emprego, e que desde julho “chama de lar” sua Nissan Leaf 2015, em que pernoita em um estacionamento nos fundos de uma igreja.
“É como dormir em um avião, mas não na primeira classe. Eu não quero ficar mais confortável. Eu quero sair daqui”, disse “L.”. Ela está tentando economizar para o depósito para alugar uma moradia de verdade. No mesmo estacionamento há outras 15 pessoas em onze carros – nove delas, mulheres, e duas crianças. A metade estava empregada.
E isso é somente uma parte do problema mais geral da população de rua, que em Los Angeles cresceu 47% em relação a 2012, para 52.765 pessoas. O total de pessoas desabrigadas pela primeira vez cresceu 16% em relação ao ano passado, para 9.322.
Na Califórnia, “lar da Apple, Facebook e Google”, como observa a Bloomberg, censo anual do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano registrou em janeiro do ano passado cerca de 134 mil pessoas na situação de sem-teto, “um salto de 14% em relação a 2016”.
No vizinho estado de Washington, em Seattle o número de desabrigados contados em uma única noite em janeiro aumentou 15% este ano a partir de 2017 – um período em que o valor na bolsa de Wall Street da Amazon, cuja sede mundial é ali, subiu 68%, para US $ 675 bilhões.
O agravamento da questão dos sem moradia levou pelo menos 10 cidades da costa oeste a declararem estado de emergência nos últimos anos. San Diego e Tacoma responderam recentemente erguendo áreas de socorro com barracas para abrigar os desabrigados. “Seattle e Sacramento podem ser os próximos”.
No início do ano, estudo da Coalizão Nacional de Moradia de Baixa Renda (NLIHC) revelou que os EUA têm uma escassez de mais de 7,5 milhões de moradias de aluguel disponíveis para famílias de locatários de renda extremamente baixa. Grupo que é definido como aqueles com renda familiar igual ou inferior ao nível de pobreza ou 30% da renda mediana da área, e que gastam metade do salário com aluguel.
NOVA IORQUE
Relatório 2018 da Coalizão pelos Sem Teto registrou que, em Nova Iorque, cidade símbolo da riqueza no mundo inteiro, no ano anterior “uma média de 63.495 homens, mulheres e crianças dormiam em abrigos sem-teto da cidade a cada noite – um recorde histórico. “Para colocar isso em contexto, apenas nove cidades em todo o estado de Nova York têm populações maiores do que a população de moradores de rua abrigada da cidade de Nova York”.
“Desde 2007, o censo dos abrigos aumentou 82%. Três quartos dos nova-iorquinos que dormem em abrigos são membros de uma família desabrigada, incluindo 23.600 crianças. No ano fiscal de 2017, um recorde absoluto de 129.803 indivíduos únicos (incluindo 45.242 crianças) passou pelo menos uma noite no sistema de abrigos – um aumento de 57% desde 2002”.
As escolas públicas também se defrontaram com um problema que não era detectado antes: alunos sem-teto. Dormir no carro é uma tentativa de escapar de perder tudo de vez e acabar nas ruas. Como faz Bonita Campbell pela terceira noite, enquanto busca emprego. Uma instituição que já opera cinco ‘estacionamentos seguros’ para desabrigados em cooperação com igrejas e agências governamentais, planeja abrir mais 14 nos próximos meses em Los Angeles.
Enquanto isso, os vouchers (vale-aluguel), proposta do governo Trump para fingir que não está completamente omisso sobre a crise, e ainda assim condicionados a que os beneficiários trabalhem, além de irrisórios, foram transformados em estigma, com três quartos dos proprietários de Los Angeles rejeitando inquilinos que recebiam esse tipo de auxílio.Trump também cortou US$ 8,8 bi das verbas para moradia acessível. Estudo revelou que 84% dos potenciais beneficiários dos vouchers-aluguel são idosos, pessoas deficientes, ou pessoas que já trabalham, mas ganham tão pouco que não conseguem arcar com um teto.
Quando há vontade política, descobre a Bloomberg, há alternativas. Houston, a quarta cidade mais populosa do país, cortou sua população de moradores de rua pela metade desde 2011, em parte criando mais habitações para eles, o que amorteceu o efeito do aumento dos aluguéis.
Em outra frente, a Corte de Apelações para o Nono Circuito declarou inconstitucionais leis iníquas que tornavam crime dormir em locais públicos, uma das mais cínicas ações ditas anti-indigência. “Enquanto não houver opção de dormir dentro de casa, o governo não pode criminalizar indigentes, pessoas sem-teto por dormirem ao ar livre, em propriedades públicas, na falsa premissa de que tinham uma escolha na matéria” o tribunal sentenciou.
Como afirmou Maria Foscarinis, fundadora e diretora executiva do Centro Legal Nacional Contra a Pobreza e Falta de um Teto, entidade que levou a questão à Justiça: “É revoltante para mim que em um país com tanta riqueza – e certamente suficiente para todos – que haja pessoas que não tenham nem mesmo o básico para a sobrevivência”.