Hoje, existe quem queira eternizar o Prouni como uma forma de sustentar universidades privadas estrangeiras – além de fornecer a elas outras verbas públicas. O que equivaleria a transformar o “Bolsa-família” no eterno sopão compensatório dos neoliberais
CARLOS LOPES
Em nossa última edição, publicamos o artigo do grande educador Anísio Teixeira sobre a primeira Lei de Diretrizes e Bases. A necessidade jurídica desta lei – algo ironizada por Anísio – fora estabelecida pela Constituição de 1946 (artigo 5º, inciso XV, item d). No entanto, 12 anos depois, ela não fora aprovada, existindo um projeto, relatado pelo deputado mineiro Gustavo Capanema, ministro da Educação no primeiro governo Getúlio. O lado mais progressista da Câmara – que incluía, sobretudo nessa questão, o próprio Capanema – evitara, até então, colocá-lo em votação, por falta de uma maioria clara que garantisse sua aprovação.
Foi então que Carlos Lacerda viu a sua chance de aparecer – e congregar o que havia de mais reacionário no país contra o projeto Capanema, vale dizer, contra o ensino público, a educação pública e a escola pública. Poucos anos depois, como governador do novo Estado da Guanabara (o antigo Distrito Federal, isto é, a cidade do Rio de Janeiro), Lacerda iria colocar na Secretaria de Educação um conhecido “tubarão do ensino”, Carlos Flexa Ribeiro, dono do Colégio Andrews, na zona sul do Rio de Janeiro.
[UMA NOTA: Ironicamente, Lacerda, em campanha para a Presidência – pretensão que o próprio golpe que fomentou em 1964 iria acabar para sempre – foi obrigado, como governador, a ampliar as vagas na escola primária pública. Mas isso não fez seu secretário de Educação, candidato à sucessão do chefe, escapar de uma derrota eleitoral humilhante, já debaixo da ditadura, contra Negrão de Lima – um político de origem getulista, que Lacerda detestava especialmente, talvez mais até que aos candidatos anteriores da oposição, que a ditadura impedira de concorrer com o candidato lacerdista: o marechal Henrique Lott e o engenheiro Hélio de Almeida, ministro da Viação e Obras Públicas no governo João Goulart e presidente do Clube de Engenharia.]
O motivo de publicarmos o artigo de Anísio Teixeira nos ocorreu quando lemos determinadas argumentações, que correm no atual governo e no Congresso, sobre ensino público e ensino privado. São argumentações que reeditam o esbravejamento de Carlos Lacerda – contra quem Anísio escreveu o artigo – no final da década de 50 do século XX. O fato do tom parecer algo mais civilizado ou menos histérico – ou mais medroso – não apaga a coincidência de conteúdo.
Diz, por exemplo, o senador Pimentel (PT-CE), em seu relatório na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, sobre o Plano Nacional de Educação, defendendo a concessão de dinheiro público para instituições privadas, inclusive, como já notamos aqui, estrangeiras (aliás, queira ou não o senador, sobretudo estrangeiras – v. HP, 07/06/2013):
“… uma atuação que deveria ser supletiva à do Estado, acaba por se firmar como indispensável, em especial na educação superior” (grifos nossos).
O senador está relatando um PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO com a vigência de 10 anos. Ou seja, um plano decenal. O mínimo que se espera de um plano é que defina aonde se quer chegar ao final do seu prazo – nesse caso, ao final de uma década.
No entanto, diz o senador que a atuação das instituições privadas de ensino deveria ser apenas “supletiva à do Estado“. No entanto, “acaba por se firmar indispensável“. Logo, com essa base argumentativa esquisita, ele propõe que continue a ser assim para sempre – e que daqui a 10 anos a situação seja pior, pois é, inevitavelmente, o que aconteceria se abríssemos os cofres públicos perpetuamente – e mais ainda – para instituições, que, a rigor, são parasitas da sociedade e do Estado, e só assim podem sobreviver, pois são heranças caquéticas do feudalismo.
Sobre a última parte, vale lembrar que o combate iniciado pela Revolução Francesa contra o feudalismo tomou a forma, após 1792 e por todo o século XIX, da luta entre o mestre-escola e o cura da aldeia – o primeiro, naturalmente, o representante da escola pública, laica e nacional.
O ensino privado – e aqui se está falando, antes de tudo, do ensino superior – espalhou-se pelo Brasil não porque fosse indispensável, mas porque essa foi a política regressiva do governo Fernando Henrique durante oito anos, contra a sociedade e contra o país, como tudo nesse famigerado governo.
Quando o presidente Lula estabeleceu o Prouni, foi claramente como uma medida de emergência, diante da situação herdada do governo anterior. O plano sempre foi, nessa época, o de expandir o ensino público. No que concordamos inteiramente.
Nisso, essa medida do governo Lula não era diferente de outras: por exemplo, o “Fome-zero”/”Bolsa-família” era também uma medida de emergência, até que a criação de empregos e o aumento dos salários o tornassem dispensável.
Infelizmente, hoje existe quem queira eternizar o Prouni como uma forma de sustentar universidades privadas estrangeiras – além de fornecer a elas outras verbas públicas. O que equivaleria a transformar o “Bolsa-família” no eterno sopão compensatório dos neoliberais.
Mais lacerdista do que isso, impossível. Como há – ou deve haver – quem duvide, voltemos ao fim dos anos 50 do século passado.
ATUAÇÃO
Segundo Lacerda, o ensino deveria ser privado – e o Estado, seja na instância federal, assim como estadual ou municipal – deveria ser proibido de construir ou estabelecer escolas públicas, fossem primárias, secundárias ou superiores. O Estado, dizia o golpista da UDN, só poderia “fundar e manter em caráter supletivo escolas oficiais quando e onde o ensino particular não puder atender plenamente à população escolar” (sic).
Não é um acaso que hoje se recorra à mesma linguagem usada por Lacerda (apenas substituindo-se “caráter” por “atuação”: o “caráter supletivo” de Lacerda transforma-se na “atuação supletiva” do senador).
Mas, se o ensino particular não é supletivo ao ensino público (nas palavras do senador: “… uma atuação que deveria ser supletiva à do Estado, acaba por se firmar como indispensável“), conclui-se que a atuação supletiva é a do Estado. Exatamente o que disse Lacerda sobre o “caráter supletivo” das “escolas oficiais” – isto é, das escolas públicas.
Lacerda é muito mais claro que o senador Pimentel. Mas este último está dizendo a mesma coisa que o outro – somente que com atraso de 50 anos. Aliás, bem mais, porque, como demonstra Anísio Teixeira em seu artigo, o que Lacerda propõe já era atrasado em 1960 – e, de resto, já o era desde a Proclamação da República, ou, talvez, desde a Independência, a julgar por alguns textos de José Bonifácio.
Não se pode jogar com as palavras – ou até se pode, mas não impunemente.
No entanto, o senador Pimentel não parece ser o principal responsável por esse relatório pré-histórico. Até porque sua conclusão na questão do financiamento do ensino é contraditória com os dados que ele próprio expôs. Por exemplo:
“… o gasto total por estudante na educação pública no Brasil era de US$ 2.545 ao ano, em 2009. Comparando-se esse valor com o de outros países reconhecidos pelo avanço educacional, o Brasil fica bem atrás em matéria de gasto per capita. Na Finlândia, investe-se US$ 9.113; na Coreia [do Sul], US$ 7.629; no Chile, US$ 3.381; e, em Portugal, US$ 7.504“.
Se temos esse problema na educação pública, qual a lógica de desperdiçar recursos com instituições privadas e/ou estrangeiras?
Mas aí aparece, no relatório do senador, uma espécie de “puxadinho” redacional:
“… se coloca a urgência de ampliação do investimento em educação, embora em bases um pouco diferenciadas das que estão postas [pelo projeto aprovado na Câmara]. Tal qual se encontra, (…) computando apenas o investimento direto nos sistemas de ensino público, cria-se uma dificuldade de cumprimento“.
Que “dificuldade de cumprimento” há em investir recursos públicos no sistema público de ensino? Exceto se o objetivo for eludir o cumprimento do que determina a lei, nenhum. E por que fornecer dinheiro público a monopólios privados de ensino facilitaria o cumprimento da meta?
Infelizmente, temos de concluir que o senador apenas tentou defender a posição dominante no MEC – mas não foi feliz ao transformar o que é mera ideologia privatizante, anacrônica e lacerdista, em “facilitação do cumprimento” do PNE.
GRANDEZA
Quando Anísio Teixeira – então reitor da UnB, presidente da Capes desde sua fundação no segundo governo Getúlio e diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) – foi demitido do serviço público e cassado pela ditadura, logo após o golpe de 1964, houve um escândalo nacional e internacional – inclusive nos EUA, onde várias universidades convidaram o intelectual brasileiro a lecionar (e ele o fez, até 1966, nas Universidades de Columbia, New York e California).
Autor de extensa obra teórica e administrativa, Anísio Teixeira fora duas vezes secretário de Educação em seu Estado natal, a Bahia (na primeira, quando o cargo ainda se chamava “inspetor-geral do ensino”, aos 24 anos); fora membro da comissão que, após a Revolução de 30, propôs a reorganização do ensino secundário; fora diretor-geral de Educação do Distrito Federal, onde reorganizou completamente o ensino, inclusive fundando o Instituto de Educação; fora conselheiro de educação superior da Unesco após a II Guerra Mundial; e foi, no início da década de 30, um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, redigido por Fernando Azevedo, além de contar com amizades e admiradores, desde Monteiro Lobato até Rubem Braga, Jorge Amado, Hermes Lima e Josué Montello – o que significa um espectro ideológico que só deixava de fora Lacerda & assemelhados.
Apesar disso, Anísio Teixeira foi acusado, em 1964, de corrupção, por ter dois salários (o de reitor da UnB e o de presidente da CAPES) – o que, aliás, era legal, pois ele exercia as duas funções. Porém, o professor não havia recebido seus proventos como reitor. Ou, aliás, devolvera cada um dos seus salários nessa função. Mesmo assim, foi proibido de deixar o país para lecionar nos EUA. Após outro escândalo, causado por essa proibição, acabou por receber uma licença para viajar do próprio Castello Branco.
Anísio voltou ao Brasil na segunda metade da década de 60. Em 1971, depois de candidatar-se à Academia Brasileira de Letras, com sua eleição dada como certa, o professor Anísio saiu de casa para visitar o amigo Aurélio Buarque de Holanda – e desapareceu no dia 11 de março. Foi encontrado dois dias depois, morto no fosso de um elevador, no edifício em que morava Aurélio. Oficialmente, a versão foi de que, distraído, se enganara e caíra, ao tentar entrar num elevador que não estava no andar. Mas, segundo testemunhas, seu corpo não apresentava hematomas.
Recentemente, em setembro do ano passado, na Comissão da Verdade instalada na UnB, o professor João Augusto de Lima Rocha, da UFBA, deu o seguinte depoimento:
“Em dezembro de 1988, Luiz Viana Filho [golpista em 64, governador da Bahia e biógrafo de Castello Branco] me confessou, com base em fontes militares de sua confiança, que Anísio foi preso no dia que desapareceu e levado para o quartel da Aeronáutica. A operação, segundo suspeitas do médico Afrânio Coutinho, teve como mentor o brigadeiro João Paulo Burnier, figura conhecida do regime militar e que tinha o plano de matar todos os intelectuais mais importantes do Brasil na época“.
Mas, o que motivara tanto ódio contra Anísio?
Há razões gerais, pois sua concepção de “educação para todos” e ensino público tinha um evidente conteúdo democrático (seu principal livro sobre administração escolar tem, precisamente, o título “Educação para a democracia: introdução à administração educacional“).
Reproduzindo suas palavras:
“Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no País a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública.”
Esta não era uma concepção que se adequasse à ditadura, sobretudo a dos primeiros tempos. Porém, do ponto de vista filosófico, Anísio Teixeira estava mais próximo de Dewey e outros pensadores norte-americanos que de Marx ou Lenin.
A questão é, exatamente, com que pensadores norte-americanos o professor brasileiro encontrou afinidade. Eis uma de suas citações de um pensador norte-americano:
“Nada por certo, salvo a educação universal, pode contrabalançar a tendência à dominação do capital e à servilidade do trabalho. Se uma classe possui toda a riqueza e toda educação, enquanto o restante da sociedade é ignorante e pobre, pouco importa o nome que dermos à relação entre uma e outro: em verdade e de fato, os segundos serão os dependentes servis e subjugados dos primeiros. Mas, se a educação for difundida por igual, atrairá ela, com a mais forte de todas as forças, posses e bens, pois nunca aconteceu e nunca acontecerá que um corpo de homens inteligentemente práticos venha a se conservar permanentemente pobres…” (Trecho do relatório de Horace Mann – pioneiro continental da educação popular – ao Conselho de Educação de Boston, em 1848, cit. por Anísio Teixeira na Conferência Estadual de Educação em Ribeirão Preto, em 23 de setembro de 1956. Ext. INEP, “Biobibliografia de Anísio Teixeira“, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 82, n. 200/201/202, p. 212, jan./dez. 2001).
DIRETRIZES
Mas havia uma razão especial para o ódio fascista contra Anísio Teixeira: exatamente a sua intervenção contra Lacerda na discussão da primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB).
Voltemos à discussão, no ponto em que a deixamos.
O substitutivo de Lacerda pode ser razoavelmente sintetizado por seu artigo 6º: “É vedado ao Estado exercer ou de qualquer modo favorecer o monopólio do ensino, assegurado o direito paterno de prover, com prioridade absoluta a educação dos filhos e o dos particulares comunicarem aos outros os seus conhecimentos“.
Em um país que necessitava dar um salto rápido na área educacional para evitar um estrangulamento no desenvolvimento, mas que ainda tinha milhões de analfabetos e milhões de pais e mães que não conseguiam matricular na escola os seus filhos, Lacerda estava propondo uma lei para limitar a ação do Estado na Educação… E apresentava isso em nome do “direito paterno” e das famílias – segundo ele, impedidas pelo Estado e pelo ensino público de dar a educação que quisessem aos seus filhos!
Não havia correlação de forças para aprovar o substitutivo de Lacerda, mas ele conseguiu que a lei aprovada fosse muito mais elitista que o projeto defendido por Capanema. O fascismo sempre joga contra a correlação de forças – e quando o lado progressista se intimida, o fascismo vira a correlação de forças a seu favor. Foi mais ou menos o que aconteceu.
Acresce que Lacerda, como é sabido, era invulgarmente destituído de caráter – sua defesa do substitutivo no Congresso não era a mesma que desfiava para as eternas “malamadas” do seu cortejo (a de que na URSS o Estado interferia e oprimia as famílias através da educação pública).
Pelo contrário, no Congresso ele defendeu (supostamente) “pela esquerda” o seu projeto. P. ex., eis essa pérola contra a educação técnica do povo brasileiro: “… a escola no Brasil, desde a ditadura [o Estado Novo], procurou dividir os brasileiros entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais. E ainda mais: procurou dividir brasileiros entre os que têm a vocação da técnica e os que têm a vocação da cultura. Essa é uma concepção tipicamente aristocrática, para não dizer autocrática, para não dizer oligárquica, para não dizer reacionária, para não dizer afinal totalitária da cultura e da escola“.
Ou, senão, eis uma diatribe contra a própria existência do MEC, em nome da diversidade: “A escola no Brasil tornou-se um artifício, tornou-se uma superfetação, tornou-se uma espécie de preparação para a anulação das qualidades e das vocações, das tendências e das potencialidades da inteligência do povo brasileiro, principalmente porque é organizada, é dirigida, é teleguiada, se assim posso me exprimir, por uma burocracia federal que fixa os programas desde o território do Rio Branco até às margens do Chuí, de tal modo que a imensa diversidade brasileira ainda não foi levada na devida conta pelo aparelho burocrático desse inútil e pernicioso Ministério da Educação e Cultura“.
Em suma, um canalha.
DUAS QUESTÕES
Restam algumas questões históricas. A primeira nos parece já parcialmente respondida: diz respeito a uma certa admiração de Anísio Teixeira sobre aspectos da sociedade norte-americana.
O leitor deve levar em consideração que, mesmo antes de Franklin D. Roosevelt, a sociedade norte-americana não era tão degenerada quanto a atual, apesar da virada à direita após a Guerra Civil e o assassinato de Lincoln – isto é, o período de formação dos monopólios privados sob J. P. Morgan, Rockefeller, etc.; de regressão nos direitos democráticos, após a retirada das tropas federais dos Estados do sul, em 1877; de volta ao poder estadual dos inconformados senhores de escravos; e da decretação, pela Corte Suprema, da suposta legalidade do racismo oficial (a famosa doutrina do “iguais porém separados” – pela qual, nos Estados do sul, os negros eram “iguais” desde que aceitassem continuar na senzala).
A segunda – e, por enquanto, última questão – são as considerações de Anísio Teixeira sobre a educação no período que sucede à Revolução de 30.
Em seu primeiro governo, o presidente Getúlio, depois de fundar o Ministério da Educação e Saúde Pública (depois Educação e Cultura), promoveu duas reformas educacionais, a primeira em 1932 (a reforma Campos – do nome do então ministro, Francisco Campos) e a segunda em 1942 (a reforma Capanema).
A expansão do ensino – totalmente baseada na expansão do ensino público – foi tremenda após 1930 (cf. Otaíza Oliveira Romanelli, “História da Educação no Brasil (1930/1973)“, 8ª edição, Vozes, Petrópolis, 1986, p. 64 e segs).
Para não alongar este texto, que já vai muito além do inicialmente planejado, não entraremos em detalhes, tais como a concepção de ensino técnico e profissionalizante no primeiro governo Getúlio.
Porém, é evidente que o problema do ensino – vale dizer, sua universalização em todos os níveis, não foi resolvido naquela época, assim como não estava resolvido em 1960, nem hoje.
O que não apaga a diferença entre uma política educacional que quer resolver o problema – ou avançar na sua resolução – e outra que se propõe a jamais resolvê-lo e a impedir essa resolução.