(HP 05/06/2015)
Por ocasião do 13 de maio, publicamos uma condensação do sociólogo Guerreiro Ramos sobre a “sociologia do negro” no Brasil.
Hoje, devido à sua importância, apresentamos outra condensação, também retirada de sua obra “Introdução Crítica à Sociologia Brasileira”.
O texto “Sociologia enlatada versus sociologia dinâmica” foi escrito após um incidente durante o II Congresso Latino-americano de Sociologia (1953).
Como presidente da Comissão de Estruturas Nacionais e Regionais do Congresso, o sociólogo baiano apresentou uma proposta que teve a rejeição da maioria dos presentes, que o destituíram do cargo.
Quais eram as propostas que o plenário rejeitou?
As seguintes:
“1ª – as soluções dos problemas sociais dos países latino-americanos devem ser propostas tendo em vista as condições efetivas de suas estruturas nacionais e regionais, sendo desa- conselhável a transplantação literal de medidas adotadas em países plena- mente desenvolvidos;
“2ª — a organização do ensino da sociologia nos países latino-americanos deve obedecer ao propósito fundamental de contribuir para a emancipação cultural dos discentes, equipando-os de instrumentos intelectuais que os capacitem a interpretar, de modo autêntico, os problemas das estruturas nacionais e regionais a que se vinculam;
“3ª – no exercício de atividades de aconselhamento, os sociólogos latino-americanos não devem perder de vista as disponibilidades da renda nacional de seus países, necessárias para suportar os encargos decorrentes das medidas propostas;
“4ª – no estádio atual de desenvolvimento das nações latino-americanas e em face das suas necessidades cada vez maiores de investimentos em bens de produção, é desaconselhável aplicar recursos na prática de pesquisas sobre minudências da vida social, devendo se estimular a formulação de interpretações genéricas dos aspectos global e parciais das estruturas nacionais e regionais;
“5ª – o trabalho sociológico deve ter sempre em vista que a melhoria das condições de vida das populações está condicionada ao desenvolvimento industrial das estruturas nacionais e regionais;
“6ª — é francamente desaconselhável que o trabalho sociológico, direta ou indiretamente, contribua para a persistência, nas nações latino-americanas, de estilos de comportamento de caráter pré-letrado. Ao contrário, no que concerne às populações indígenas ou afro-americanas, o sociólogos devem aplicar-se no estudo e na proposição de mecanismos de integração social que apressem a incorporação desses contin- gentes humanos na atual estrutura econômica e cultural dos países latino-americanos;
“7ª – na utilização da metodologia sociológica, os sociólogos devem ter em vista que as exigências de precisão e refinamento decorrem do nível de desenvolvimento das estruturas naci- onais e regionais. Portanto, dos países latino-americanos, os métodos e processos de pesquisa devem coadunar-se com os seus recursos econômicos e de pessoal técnico e com o nível cultural genérico de suas populações.”
A polêmica, a partir do incidente, foi uma das mais interessantes – e importantes – que já houve no país. Guerreiro Ramos afirmava, com suas propostas, o caráter de especificidade dos sociólogos dos países dependentes e a impossibilidade de produzir algo em sociologia sem que o profissional tivesse uma posição progressita sobre sua própria sociedade e nação. O que ele combatia era o servilismo às matrizes imperialistas na produção sociológica.
Seus adversários eram, basicamente, representados pelo que se chamou “sociologia paulista”, aquele grupo da USP que, depois da ditadura, na ausência de adversários, ficaria conhecido no país inteiro (Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, etc.).
Mas, leitor, não queremos contar, aqui, uma história que Guerreiro Ramos expressa, melhor que ninguém, no conteúdo de sua polêmica.
C.L.
GUERREIRO RAMOS
Via de regra, o sociólogo indígena está sempre disposto a adotar literalmente o que nos centros europeus e norte-americanos se apresenta como mais avançado. É comovente, mesmo, o esforço do profissional brasileiro e de países de formação semelhante ao seu, a fim de colocar-se up to date com a produção sociológica dos países líderes da cultura ocidental. Daí decorre que a disciplina sociológica, tal como se espelha em nossos livros, se transforma, no curso do tempo, ao compasso das mudanças que se verificam conjuntamente nas sociologias europeias e norte-americana.
Há em nossa disciplina sociológica uma espécie de “falar correto”, semelhante ao dos cultores da língua pura que renunciam, por exemplo, aos critérios comunitários, vivos, de correção, em favor dos critérios artificiais, importados. Assim como para esses puristas brasileiros, falar certo é falar como falam os portugueses em Portugal, uma arte difícil que só alcança a minoria dos que conhecem as regras de colocação de pronomes e da crase, induzidas do falar lusitano, do mesmo modo se pretende praticar a sociologia no Brasil, de maneira hipercorreta, literalmente tal como no exterior. As orientações e tendências aparecem aqui, simetricamente, na mesma ordem em que surgem lá. Nossos adeptos de Comte são sucedidos por spenceristas, estes por durkheimianos e tardistas e assim por diante. Mas, não é só simetrismo que se discerne na sucessão dos nossos estudos sociológicos. É também sincretismo, pois os nossos autores estão sempre dispostos a fazer aqui a conciliação de doutrinas que, nos próprios países de origem, são incompatíveis. Um dos nossos mais eminentes sociólogos escreveu mesmo: “Cada vez mais me convenço de que as incompatibilidades metodológicas se reduzem a questões de nomenclatura”.
O simetrismo e o sincretismo tornaram-se mais nítidos desde que começaram a ser editados, entre nós, compêndios de sociologia. Em todos eles, apresentam-se justapostos os sistemas europeus e norte-americanos, na suposição de que existe uma verdade sociológica resultante da “conciliação” das várias correntes.
Esse simetrismo, aliás, se registra em todos os campos da cultura brasileira, e Sylvio Romero, ao escrever a sua História da Literatura Brasileira, observou que “a literatura no Brasil, … e em toda a América, tem sido um processo de adaptação de idéias européias às sociedades do continente”, marcada de “servilismo mental”. Sylvio Romero verberava mesmo o fato: “Não é mais do que ter lido por acaso Zola, ou Daudet, ou Rollinot, e atirar com eles à cara do país, como se tudo estivesse feito! …”
Desde que se empresta aos sistemas estrangeiros o caráter de validade absoluta, eles passam a ser tomados como pontos de partida para a explicação dos fatos da vida brasileira. Houve tempo, por exemplo, em que se tentou explicar a evolução do Brasil à luz das leis gerais da evolução. O positivista Luiz Pereira Barreto, referindo-se à queda de um gabinete conservador, escrevia em 1874 (Vide As Três Filosofias): “No momento em que a sociedade brasileira cessa, oficialmente, de ser teóloga para entrar no pleno regime da metafísica…”.
A alienação da sociologia no Brasil decorre de que ela não é, em regra, fruto de esforços tendentes a promover a autodeterminação de nossa sociedade. Em face desta, o sociólogo brasileiro tem realmente assumido uma atitude perfeitamente equivalente à do estrangeiro que nos olha a partir de seu contexto nacional e em função deste nos interpreta.
A alienação de nossos estudos sociológicos tornar-se-á particularmente visível para aqueles que adotarem como aspirações suas as tendências autonomistas da sociedade brasileira. Na verdade, o intelectual desplantado ou contemplativo não poderá alcançar a alienação, porque esta se define desde um ponto de vista extra-teórico ou pragmático, desde um querer orientado para a transformação da sociedade.
Não é possível ignorar, hoje, a estreita relação entre as aspirações e o conhecimento. Na verdade, só o que atua conhece a realidade, como disse Plenge. As posições quietista- contemplativa e teórico-pragmática são inconciliáveis. A primeira tem feito de muitos estudos sociológicos, no Brasil, obras de beletrismo, de diversionismo e, às vezes, modelos de formalismo. A segunda tem suscitado as obras de maior conteúdo de protestação e pragmático, em nosso meio.
Tomo para modelo da visão alienada do Brasil uma obra de caráter para-sociológico que teve extraordinária repercussão na época em que foi publicada. Trata-se de Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, que exprime, de modo paroxístico, certo sadomaso- quismo de nossas camadas letradas para as quais o caráter do povo brasileiro está marcado de notas pejorativas. O brasileiro é povo triste, luxurioso, cobiçoso e romântico, para Paulo Prado; como para outros se caracteriza pelo servilismo e pelos maus costumes ou por características equivalentes.
Como paradigma da visão integrada do Brasil, elaborada desde um ponto de vista pragmático e participante, invoco Os Sertões, de Euclides da Cunha. Aí se confirma aquela observação do Hans Freyer: “Só aquele que se acha imerso na realidade social… pode captá-la teoricamente”. Apesar de seus erros de técnica científica e de seu tributo ao dedutivismo, Os Sertões (1901) constitui, até esta data, obra não excedida como contribuição tendente a liquidar aquele bilinguismo a que me referi, a ambivalência psicológica do brasileiro, e a identificá-lo consigo próprio.
Ainda mais, nossa socio-antropologia do negro está toda ela viciada por um tratamento alienado do tema. O negro no Brasil, país cuja matriz demográfica mais importante é o contingente corado, tem sido visto como algo estranho ou exótico na comunidade, o que só se explica na base de um equívoco etnocentrismo.
Há tradições a cultivar na cultura brasileira. Tradições que, uma vez estudadas, nos poupam de reabrir caminhos. Fiz uma tentativa, neste sentido, quanto mostrei as correntes principais da sociologia brasileira (Vide O Processo da sociologia no Brasil).
É assim que adquire pleno sentido a expressão de Graciliano Ramos: “quem não tem vergonha na cara, não pode ser sociólogo”. Graciliano Ramos dizia isto, referindo-se a certo “sociólogo” indígena. Pode-se, entretanto, endereçar esta frase a outros “sociólogos” nacionais. Alguns anos depois que ela foi pronunciada, reencontro-a no fundo de minha memória e percebo nela toda uma receita a administrar àqueles que desejam alcançar a nova teoria sociológica brasileira.
Hoje, no Brasil, pelo menos se distinguem, com clareza, entre outras, duas correntes de pensamento sociológico: uma corrente que pode ser chamada, como já propus certa vez, de “consular”, visto que, por muitos aspectos, pode ser considerada como um episódio da expansão cultural dos países da Europa e dos Estados Unidos; e outra que, embora aproveitando a experiência acumulada do trabalho sociológico universal, está procurando servir-se dele como instrumento de autoconhecimento e desenvolvimento das estruturas nacionais e regionais.
A essência de toda sociologia autêntica é, direta ou indiretamente, um propósito salvador e de reconstrução social1. Por isso, inspira-se numa experiência comunitária vivida pelo sociólogo, em função da qual adquire sentido. Desvinculada de uma realidade humana efetiva, a sociologia é uma atividade lúdica da mesma natureza do pif-paf. Quem diz vida, diz problema. A essência da vida é a sua problematicidade incessante. Daí, na medida que o sociólogo exercita vitalmente a sua disciplina, é forçosamente levado a entrelaçar o seu pensamento com a sua circunstância nacional ou regional.
Mas a formação do sociólogo brasileiro ou latino-americano consiste, via de regra, num adestramento para o conformismo, para a disponibilidade da inteligência em face das teorias. Ele aprende a receber prontas as soluções, e quando se defronta com um problema de seu ambiente, tenta resolvê-lo confrontando textos, apelando para as receitas em que se abeberou nos compêndios. Adestrado para pensar por pensamentos feitos, torna-se frequen- temente, quanto aos sentimentos e à volição, um répétiteur, isto é, sente por sentimentos feitos, quer por vontades feitas, como diria Péguy.
Abram-se os nossos compêndios de sociologia. Um ou outro foge à regra: em geral, cada um deles traz de tudo, arrola autores e sistemas, sem proporcionar ao aprendiz um critério diretivo de crítica. Como quem insinua: o educando que procure a verdade sociológica, tirando um bocadinho daqui, outro bocadinho dali. Pois esses compêndios de que falo, a quase totalidade dos que se escrevem nestas bandas, supõem esta enor- midade: que existe uma verdade sociológica, eterna, imutável, au-delá da contingência histórica, resultante da média agregativa de todos os sistemas2. Portanto, incapacitam o estudante para o exercício funcional de uma atitude sociológica.
Por outro lado, outra espécie de vício mental é patente em grande número de nossas obras sociológicas. O sociólogo indígena parte, quase sempre, de um sistema importado, ao qual dá validade absoluta e se filia incondicionalmente. O mal vem de origem. Sempre aqui tivemos positivistas, haeckelistas, evolucionistas e outras espécies de aficionados à outrance. E quando se apresenta o sociólogo patrício a alguém, a pergunta vem logo: que escola o senhor segue?
Além de “consular”, esta é uma sociologia que pode ser dita enlatada, visto que é consumida como uma verdadeira conserva cultural.
Nestas condições, assume-se, entre nós, em face dos métodos e produtos do trabalho sociológico no exterior, uma atitude apologética. Tudo que de lá vem é ortodoxo, excelente, imitável. Não se acordou ainda para o fato de que os meios e resultados do trabalho sociológico são condicionados por estruturas nacionais ou regionais. Afirma-se a eficácia imanente das transplantações. Não se assume uma posição sociológica na discussão da sociologia. De modo que, muitas vezes, os certames ou reuniões ditos de sociólogos se resumem em pronunciamentos idólatras e até mesmo de intrepidez patriótica, como daqueles que consideram a necessidade de adotar procedimentos metodológicos simplificados, num país subdesenvolvido, uma diminuição dos brios nacionais. Já assisti, num congresso de sociologia, à queda de uma proposta sociologicamente correta, em virtude de ter-se invocado os brios patrióticos dos presentes.
Este exemplarismo é um dos aspectos do que se pode chamar a “doença infantil” da sociologia nos países coloniais, doença que torna a disciplina referida uma “gesticulação”, vazia de significados, um ato em oco, uma ação ilusória, mas capaz de satisfazer a certos indivíduos.
O “gesticulante” satisfaz-se em fingir a ação que anela cometer, mas não comete realmente3.
Há, pois, no que concerne ao comportamento de grande parte dos sociólogos de países como o Brasil, uma patologia da normalidade. Desde que, em suas posturas mentais, é generalizado aquele traço culturologicamente mórbido, passa o mesmo a ser normal. Entre eles, teremos também de levar a sério as ficções para vivermos em paz. Se ousarmos ser sensatos, estamos perdidos, não nos toleram.
Esta é a doença infantil da sociologia no Brasil. Não a creio, entretanto, incurável. O próprio fato de ser capaz de fazer o seu exame de consciência a encaminha para a maturidade. Um indício de que estou certo é o que se passa com o pensamento econômico latino-americano. Sob os auspícios de um organismo como a CEPAL, realiza-se a descolonização do economista latino-americano, e a contribuição de brasileiros para esta mudança, e das mais ilustres.
1Em confirmação, o estudioso poderá verificar como, por exemplo, Augusto Comte é levado à ideia da ciência sociológica, através da meditação do problema francês de sua época, e secundariamente do problema europeu (vide o Curso de Filosofia Positiva). Ainda a este propósito, observe-se como uma posição renovadora no campo da sociologia, como a de Karl Mannheim, reflete um propósito de quem procura soluções para uma crise.
2Este modo de ver foi, aliás, proclamado sem rebuços, por um dos mais destacados vultos de nossas ciências sociais, Arthur Ramos, que disse: “Cada vez mais me convenço de que as incompatibilidades metodológicas se reduzem a questão de nomenclatura” (O Negro Brasileiro, 3‘ edição, 1953). Este mesmo ecletismo conciliador é patente na obra da figura de maior prestígio nas letras sociológicas do país em nosso dias, Gilberto Freyre. Vide especialmente Casa-grande & Senzala.
3Emprego o termo “gesticulação” em seu sentido técnico, tal como usado por Lazar e Karl Mannheim. Lazar refere-se ao tipo de “criança gesticulante” que se satisfaz com gestos quando outros lutam por objetivos concretos. Lewin reporta-se ao caso de uma criança imbecil que deseja lançar uma bola à longa distância e, ainda que não tenha conseguido, se sentiu satisfeita porque encontrou um substitutivo no vigoroso movimento que realizou. Determinadas configurações coletivas podem ser favoráveis à propagação desta enfermidade. No Brasil, muito da atividade intelectual é mera “gesticulação”, ou expressão de esforços de “adultos gesticulantes”. Para maior desenvolvimento deste tema, vide Karl Mannheim, Libertad y Planificación Social, México, 1946.