(HP 27/03/2009)
A 31 de dezembro de 1951, o presidente Getúlio Vargas, havia onze meses governando o Brasil pela segunda vez, pronunciou o seu discurso de saudação ao povo brasileiro pelo novo ano que se iniciava no dia seguinte. Abaixo, publicamos os principais trechos deste pronunciamento.
Getúlio, homem avesso a floreios de oratória, foi direto ao assunto: o que seu governo fizera e o que pretendia fazer. Nessa prestação de contas, revelou ao povo, pela primeira vez, a sangria que as remessas de lucros das empresas externas estavam submetendo o país. Denunciou que, em três anos, o capital externo acumulara ilegalmente US$ 830 milhões.
Para que se tenha uma ideia do que isso significa: em dólares de hoje, usando para correção o Consumer Price Index – CPI –, que é o índice de preços ao consumidor dos EUA, isso equivaleria a US$ 7 bilhões e 44 milhões; porém, dois pesquisadores norte-americanos, Lawrence Officer e Samuel Williamson, autores de “Measures of Worth”, aconselham que, no caso de valores orçamentários e assemelhados, seja usado, como índice de atualização, a parcela do PIB norte-americano que a quantia representava na época. Neste caso, os US$ 830 milhões de 1951 equivaleriam hoje a US$ 35 bilhões e 735 milhões – o que parece mais coerente com a afirmação seguinte de Getúlio: “os técnicos já calcularam as necessidades financeiras do Brasil, para levar a cabo um importante programa de desenvolvimento econômico, em cerca de 500 milhões de dólares (…) o total do dinheiro criminosamente arrancado ao povo brasileiro e ilegalmente incorporado ao capital estrangeiro foi, no triênio 1948-1950, muito superior à quantia de que necessitamos para a nossa própria recuperação econômica”.
Depois disso, Getúlio esboça esse programa de desenvolvimento econômico. É isto que lhe permite concluir: “A crise brasileira é uma crise de crescimento e há de ser superada. Governo e povo caminharão juntos para construírem a prosperidade e a grandeza do Brasil”.
C.L.
GETÚLIO VARGAS
Enganam-se redondamente os que julgam que o povo brasileiro me foi buscar e me reconduziu ao governo para pescar sardinhas. Vamos fisgar tubarões. Não descansarei enquanto não conseguir proporcionar aos homens, às mulheres e às crianças do meu país a existência digna, segura, tranquila, próspera e confortável a que têm direito. E isto eu reafirmo agora, como um juramento solene, nesta passagem de ano, sempre tão cheia de inquietações e de esperanças.
Na primeira prestação de contas do meu governo, cumpre-me fazer uma revelação. Por detrás dos bastidores da administração pública, logrou o governo descobrir aos poucos, e não sem dificuldades, uma trama criminosa, que há cinco anos se vinha tecendo contra a economia, a riqueza e a independência da pátria. Fora tão bem feita, tão bem planejada e tão bem executada, que passou despercebida aos olhos da opinião pública. Levou tempo, até que lhe descobríssemos a pista, de tal modo estava ela envolta numa rotina burocrática aparentemente inocente. Ainda que pareça incrível, não foi apenas obra de particulares ou de capitalistas interessados em sugar o nosso patrimônio. Foi orientada à sombra da autoridade do próprio governo, através de um regulamento e de vários aditivos e esse regulamento, baixados pela direção da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil.
Com a melhor das intenções patrióticas, o chefe do Poder Executivo, que me antecedeu, promulgou, a 27 de fevereiro de 1946, um decreto-lei, que tomou o nº 9.025 e que assegurou aos capitais estrangeiros aplicados no Brasil o direito de retorno ao seu país de origem, mas na proporção máxima de 20% ao ano. Assegurou-lhe também o direito de remeter para o estrangeiro os juros, lucros e dividendos produzidos no Brasil, porém, no máximo, até 8% ao ano. Essa lei está em vigor; e, para cumpri-la, fez-se mister o registro prévio dos capitais estrangeiros na Carteira de Câmbio.
Essa lei, infelizmente, nunca foi cumprida. No mesmo ano de 1946, fez-se um regulamento, baixado pela Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, mais tarde completado por vários aditivos, onde se permitiu que os juros, dividendos, lucros etc. do capital estrangeiro, que ultrapassassem os 8% previstos na lei, também fossem considerados como “capital estrangeiro” e somados a este último, para fins de registro e cálculos de juros posteriores.
Assim, um mero regulamento, baixado por autoridade de menor hierarquia, sabotou totalmente não só o espírito, mas o próprio texto do decreto-lei, e conseguiu inaugurar, em surdina e sem que ninguém se desse conta, um sistema de vazamento subterrâneo da moeda brasileira para o exterior. Vazamento tão grande, tão extorsivo do fruto do trabalho de milhões de brasileiros, que, em menos de cinco anos, se logrou subtrair à economia nacional uma soma fabulosa, quase equivalente ao total do papel-moeda circulante no país e que foi escandalosamente incorporada ao capital estrangeiro.
Em 1948, estavam registrados no Banco do Brasil, a título de capitais estrangeiros, 12 bilhões e 960 milhões de cruzeiros. Mas, nesse total, apenas 6 bilhões e 730 milhões representavam moeda estrangeira realmente entrada no Brasil; os outros 6 bilhões e 230 milhões constituíam moeda nacional, acumulada no Brasil por conta de lucros que excediam a percentagem legalmente transferível e que foram indevidamente incorporados ao capital, por força do regulamento.
Nos anos seguintes, a situação agravou-se consideravelmente. O total dos registros de capital estrangeiro montou a 15 bilhões e 490 milhões de cruzeiros em 1949, e a 25 bilhões e 130 milhões em 1950. Mas, neste último total, o dinheiro estrangeiro realmente trazido para o Brasil representava pouco mais de 9 bilhões e 417 milhões, enquanto se considerava como capital estrangeiro mais de 15 bilhões e 718 milhões de cruzeiros em moeda nacional, provenientes de lucros legalmente intransferíveis e indevidamente incorporados ao capital.
Tomando-se por base esse malabarismo de cifras, essa criminosa “multiplicação” do capital estrangeiro em detrimento do trabalho de milhões de brasileiros, foram metidos para fora, em três anos, a título de rendimentos e de remessas de retorno de juros e dividendos, as seguintes quantias, em números redondos: 791 milhões de cruzeiros em 1948; 883 milhões em 1949; 1 bilhão e 28 milhões em 1950 – ou seja, nos três anos mencionados, um total de mais de 2 bilhões e 700 milhões de cruzeiros. Se se tivesse cumprido a lei e respeitado os 8% permitidos, as remessas para o exterior teriam sido apenas, em números redondos, de 540 milhões em 1948, 450 milhões de cruzeiros em 1949 e 750 milhões em 1950, ou seja, ao todo, cerca de 1 bilhão e 750 milhões de cruzeiros. Portanto, foram indevidamente remetidos para fora 950 milhões de cruzeiros a mais do que permitia a lei.
A rigor, esses 950 milhões excedentes deviam ter sido considerados como retorno de capital e descontados do total deste último, que, em 1950, ficaria, assim, reduzido a pouco mais de 8 bilhões e 460 milhões. Entretanto, o que vimos, nesse mesmo ano de 1950, foi o capital estrangeiro registrado num total de 25 bilhões e 130 milhões ostentando, pois, um excedente de 16 bilhões e 670 milhões de cruzeiros sobre o seu legítimo e real valor. Isto representa um aumento escandaloso e ilegal de cerca de 200% no capital estrangeiro aplicado no Brasil.
O excedente de mais de 16 e meio bilhões de cruzeiros significa nada mais nada menos que uma dívida contraída pelo Brasil no estrangeiro e que terá que ser paga, ou melhor, “restituída” dentro de certo prazo. E vamos restituir o quê, para o quê? Pagar o que não devemos; restituir o que não recebemos, o que é nosso, o que foi majorado por simples magia de cifras, a fim de supervalorizar o capital estrangeiro, em detrimento dos valores do trabalho brasileiro e da produção brasileira.
Essa vultosa cifra em cruzeiros equivale a mais de 830 milhões de dólares, em moeda internacional. E se a nação souber que os técnicos já calcularam as necessidades financeiras do Brasil, para levar a cabo um importante programa de desenvolvimento econômico, em cerca de 500 milhões de dólares, compreenderá desde logo que o total do dinheiro criminosamente arrancado ao povo brasileiro e ilegalmente incorporado ao capital estrangeiro foi, no triênio 1948-1950, muito superior à quantia de que necessitamos para a nossa própria recuperação econômica, excedendo em proporção maior de uma vez e meia o seu valor.
Sem dúvida, precisamos incentivar o capital estrangeiro e assegurar o retorno dos juros, dividendos e do próprio capital, em percentagem razoável. Nunca, porém, nessa voragem de dilapidação do patrimônio nacional, que acarretou para o país duas graves conseqüências.
A primeira foi a de permitirmos a transferência para o exterior de lucros resultantes da aplicação de verdadeiros capitais nacionais, num injustificável esbanjamento dos nossos parcos recursos cambiais. Isto significa que tivemos de reduzir as nossas possibilidades de importar máquinas, matérias-primas essenciais e bens indispensáveis ao povo brasileiro, para remunerar os estrangeiros possuidores de capitais nacionais.
A segunda conseqüência dessa inépcia administrativa foi a de sobrecarregar as gerações presentes e futuras com dívidas e compromissos injusta e indevidamente assumidos pelo Brasil, o qual terá de pagar quantia muitíssimo superior à que recebeu – quantia para cobertura da qual todas as nossas atuais reservas em ouro e divisas não seriam suficientes.
Já determinei que fosse suspenso o critério ilegal, fixado no regulamento de 1946, e um novo regulamento será decretado dentro de poucos dias, a fim de pôr cobro a essa exploração e salvaguardar o patrimônio nacional, sem todavia, afugentar os investimentos de capitais estrangeiros, que, dentro de um critério de justa e razoável retribuição, trazem incontestáveis benefícios à nossa economia.
Com o fito de corrigir o déficit orçamentário, determinei, desde o começo do ano, ao ministro da Fazenda, que tomasse providências capazes de estimular, de norte a sul, a arrecadação dos impostos e refrear as despesas excessivas. O resultado dessas medidas já se faz sentir. Hoje posso anunciar à nação que, a 30 de novembro último, havia um saldo, na execução orçamentária, de 4 bilhões e 680 milhões de cruzeiros. E as arrecadações, na mesma data, já subiam a 23 bilhões e 480 milhões, ou seja, 3 bilhões e 300 milhões acima da previsão orçamentária.
Devo esclarecer ainda que, embora com sacrifício de suas realizações diretas, a União procurou ajudar os poderes dos Estados e municípios a se libertarem das ingentes dificuldades financeiras em que se encontravam. Para isso, foi ampliado de 1 bilhão de cruzeiros o total dos empréstimos do Banco do Brasil aos governos estaduais e municipais.
Consolidada a parte financeira, restabelecido o equilíbrio orçamentário, poderemos consagrar-nos, em 1952, ao desenvolvimento de um programa de base para a recuperação nacional. Não pretendo prosseguir nessa rotina de realizações esparsas, sem um eficaz planejamento de conjunto, como se vinha fazendo até agora. O governo reconhece a necessidade de um programa de larga envergadura, que já está sendo traçado e que lhe permitirá enfrentar a solução conjunta dos grandes problemas nacionais.
Nesse primeiro ano, foram assentadas as bases para um financiamento total de 20 bilhões de cruzeiros, destinados a uma série de empreendimentos básicos, que abrangem a dragagem e o reaparelhamento dos portos e da navegação, o incentivo das construções navais, o reaparelhamento das estradas de ferro, a construção de armazéns, silos e frigoríficos, o desenvolvimento de um plano geral de aproveitamento de energia, bem como o incremento das indústrias básicas. Desse total, 10 bilhões já foram autorizados pelo Congresso, e outros 10 bilhões deverão ser providos em moeda estrangeira pelo Banco Internacional, de acordo com os entendimentos estabelecidos. Para a abertura e conservação das estradas de rodagem, também foram ampliados consideravelmente os recursos do Fundo Rodoviário.
Constroem-se neste momento, por iniciativa e patrocínio oficial, vários armazéns e frigoríficos; e um plano nacional de silos, armazéns, frigoríficos e matadouros industriais está sendo elaborado.
Propôs o governo uma nova lei de garantia e de preços mínimos aos produtores, para defendê-los da especulação dos intermediários e dos azares da falta de transporte, estimulando, assim, a produção.
A assistência aos produtores, sob a forma de revenda, a preços de custo e a prazo, de máquinas e outros materiais, foi muito ampliada em 1951.
Nova legislação está sendo elaborada, para permitir maiores facilidades de acesso à pequena propriedade, mesmo antes de uma indispensável reforma agrária, que ora é objeto de estudos num órgão especial, criado pelo governo – a Comissão Nacional de Política Agrária.
O planejamento dos recursos de energia vai sendo progressivamente realizado. Está no Congresso o Plano do Carvão Nacional, que deverá duplicar a produção e reduzir sensivelmente os preços do combustível nacional, elevando os salários e as condições de trabalho e de vida dos mineiros.
Para solucionar em bases nacionais o problema do petróleo, propôs o governo a criação da Petróleo Brasileiro S. A., na qual, sob o efetivo controle do Estado se poderão associar subsidiariamente capitais privados, em limites definidos, para completar os recursos necessários ao programa nacional de petróleo e dar caráter industrial à grande organização de produção. Os recursos serão buscados, de preferência, na tributação de artigos de luxo, processando-se, dessa maneira, sem atingir as classes menos favorecidas.
A expansão dos serviços de energia elétrica é objeto de preocupações especiais e constitui uma das mais altas prioridades no Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico.
Criou-se uma comissão de desenvolvimento industrial, com o fim de coordenar e impulsionar o planejamento e as providências oficiais para uma sólida política de expansão industrial do país. A Fábrica Nacional de Motores vai entrar em fase de produção eficiente. A instalação da usina de álcalis está vencendo os últimos obstáculos. O governo animou, em 1951, a criação e expansão da produção de metais não ferrosos, de que o Brasil carece. As indústrias de fertilizantes, cimento, material elétrico e de máquinas em geral são outras produções básicas, que estão sendo desenvolvidas através de medidas governamentais. A Companhia Vale do Rio Doce, neste ano, excedeu em preços, produção e volume de exportação os níveis alcançados desde a sua instalação.
A Companhia Hidrelétrica do São Francisco teve acelerada a marcha de suas obras e luta apenas contra o atraso na entrega dos equipamentos encomendados no estrangeiro. Antes de concluída a primeira fase da construção da usina de Paulo Afonso, que lhe dará 180 mil quilowatts de potência, já está o governo cuidando de ampliar as instalações para a segunda fase, que lhe dará a potência de 300 mil quilowatts. A proposta de criação do Banco do Nordeste, que ora se encontra no Senado, dará, se concretizada, extraordinário impulso a todo o desenvolvimento econômico da região.
A Comissão do Vale do São Francisco também prossegue seus trabalhos em ritmo intenso, dando prioridade à regularização do fluxo do rio, à eletrificação, irrigação e colonização de várias zonas marginais, e ao levantamento dos recursos minerais da região.
O Plano de Valorização da Amazônia vai se desenvolvendo, tendo-se antecipado o governo à lei do Congresso, cuja aprovação aguarda, porém, para levar a cabo o empreendimento, que deverá abranger o desenvolvimento dos transportes fluviais e aéreos, a ampliação das disponibilidades de energia elétrica nos maiores centros urbanos, a plantação nacional de 30 milhões de seringueiras, a organização de colônias, a produção agro-industrial e a pesquisa de petróleo.
Tudo isto é apenas um pequeno esboço do grande programa de recuperação nacional, que o meu governo está procurando firmar em questões-chave, selecionando os pontos básicos, essenciais à vida da nação. Oportunamente vos darei contas mais minuciosas de cada uma das partes do programa. Aqui pretendi apenas atender à vossa inquieta expectativa e lembrar-vos que o presidente está cumprindo as promessas do candidato.
Unamo-nos todos, e congreguemos os nossos esforços para o aumento da produção nacional.
E a todos vós, brasileiros, a todos vós, trabalhadores, envio daqui a minha mensagem de confiança e a minha promessa de lutar sem tréguas e sem desfalecimento para a defesa dos vossos interesses, do vosso bem-estar e segurança.
A crise brasileira é uma crise de crescimento e há de ser superada. Governo e povo caminharão juntos para construírem a prosperidade e a grandeza do Brasil.