(HP 20/11/2009)
Os vetos ao projeto de lei dos despejos sumários, anunciados pelos senadores Adelmir Santana (DEM-DF) e Ideli Salvatti (PT-SC), são inteiramente insuficientes para alterar o seu caráter pernicioso, anti-popular – e, em certos aspectos, francamente fascista. Sancioná-lo, somente serviria para comprometer o governo Lula.
Acreditamos que a senadora Ideli não o tenha percebido. Disse a senadora que os vetos “não desfiguram a espinha dorsal do projeto”. Esse é exatamente o problema: a “espinha dorsal” do projeto é, pura e simplesmente, o despejo sumário de famílias de trabalhadores – e daquelas que estão em maiores dificuldades. Tanto assim que concordou-se rapidamente, diante da mobilização dos lojistas, no veto aos dispositivos que mais afetavam os imóveis comerciais.
É algo triste ver a senadora Ideli aceitando parceria com o senador Demóstenes Torres no seu parecer final – e, pior ainda, argumentando que esse projeto servirá para “baixar o déficit habitacional brasileiro”, quando a única coisa que ele pode fazer é aumentar o número de homens, mulheres, crianças e idosos debaixo dos viadutos. Ou seja, aumentar, precisamente, o déficit habitacional. O mais misterioso, para nós, é por que a senadora Ideli considera que “agilizar os despejos” é uma coisa boa – e até um “aperfeiçoamento” da lei, como está em seu parecer.
Além do que já foi anunciado, o que é necessário vetar?
Primeiro: o despejo sumário. O projeto, inclusive, altera o caput do artigo 63 da lei do inquilinato, que, atualmente, é: “Art. 63. Julgada procedente a ação de despejo, o juiz fixará prazo de trinta dias para a desocupação voluntária”, etc.
No projeto: “Art. 63. Julgada procedente a ação de despejo, o juiz determinará a expedição de mandado de despejo, que conterá o prazo de 30 (trinta) dias para a desocupação voluntária”, etc.
O mandado de despejo, portanto, é antes dos 30 dias que o inquilino tem para deixar a casa. Na lei atual, ele é emitido somente se o inquilino não deixar a casa após os 30 dias – o leitor que já esteve desempregado e com o aluguel em atraso sabe o que significa essa diferença.
Porém, o prazo de 30 dias é fictício. A redução para 15 dias é estendida praticamente a todos os casos (artigo 63, incisos VI, VII, VIII e IX).
Segundo: a diminuição da caução que o senhorio tem de pagar nas execuções provisórias de despejo: hoje ela é “não inferior a doze meses e nem superior a dezoito meses do aluguel”. No projeto, passa a ser “não inferior a 6 (seis) meses nem superior a 12 (doze) meses do aluguel” (artigo 64).
Terceiro: a inclusão de mais 4 motivos, além dos que já existem na lei atual, para que o inquilino possa ser despejado (artigo 59, incisos VI, VII, VIII e IX).
Quarto: a exigência de pagamento em 15 dias dos aluguéis atrasados, com correção e demais encargos, para suspender o despejo (artigo 62, inciso II); a lei atual requer “autorização para o pagamento”, e não o pagamento imediato. Os 15 dias para pagar são um prazo inexequível para quase todos os inquilinos em dificuldades – equivalendo, portanto, ao despejo.
Quinto: se o senhorio alegar que o pagamento não foi integral, o inquilino não precisaria mais estar ciente dessa alegação para que se contem 10 dias de prazo para o depósito da diferença.
Sexto: se o inquilino suspender o despejo pagando os atrasados nos 15 dias de prazo, perderá o direito de fazer o mesmo nos 24 meses que se seguirem (artigo 62, parágrafo único); atualmente, o inquilino pode fazê-lo por duas vezes em doze meses.
Segundo os senadores, o governo teria concordado em vetar os parágrafos 3º do artigo 13; 3º do artigo 52; todos os parágrafos do artigo 74 e todo o artigo 75. Ainda que isso seja pouco, realmente não há o que fazer com esses dispositivos senão jogá-los na lixeira.
O parágrafo 3º do artigo 13 (inexistente na atual lei) instituía o absurdo de que, quando uma empresa mudasse de proprietário, a locação somente poderia continuar se autorizada pelo senhorio, mesmo que a empresa signatária do contrato de locação fosse a mesma.
A alteração do parágrafo 3º do Artigo 52 retirava do inquilino comercial o direito de receber indenização se o dono do imóvel não renovasse o contrato por ter recebido proposta mais alta de aluguel.
Os parágrafos do artigo 74 são, todos, para coibir o direito do inquilino de contestar na Justiça a não renovação do contrato de locação. Porém, além deles, é preciso vetar a modificação do caput. Na lei atual: “Art. 74. Não sendo renovada a locação, o Juiz fixará o prazo de até seis meses após o trânsito em julgado da sentença para desocupação”.
No projeto: “Art. 74. Não sendo renovada a locação, o juiz determinará a expedição de mandado de despejo, que conterá o prazo de 30 (trinta) dias para a desocupação voluntária”.
O leitor, certamente, dispensará maiores comentários sobre essa “desocupação voluntária”.
Quanto à alteração do artigo 75, ela retirava do inquilino o direito à indenização no caso da Justiça decidir a seu favor (não é brincadeira, leitor), nos casos de não renovação devido a uma proposta mais alta de aluguel. Esse direito era substituído pelo “direito” a impetrar na Justiça uma ação, separada da primeira, por perdas e danos. E ainda proibia o inquilino que ganhasse a ação de retornar, “em qualquer hipótese” (sic), ao imóvel.
A lei atual – do governo Collor – já foi o maior retrocesso da História do país no campo das leis do inquilinato, ao se preocupar, pela primeira vez, não em proteger os inquilinos da sanha parasitária dos especuladores imobiliários, mas em dar a estes mais poder para esfolar os primeiros – por isso, incorporou a “denúncia vazia”. Pois esse projeto é a exacerbação mais estúpida desse escárnio neoliberal, num momento em que o neoliberalismo faliu, tanto ideologicamente quanto financeiramente. E não estamos falando de proteger pessoas que têm um, dois ou três imóveis para alugar.
O autor do projeto, deputado José Carlos Araújo (PDT-BA), apresentou como exemplo um amigo que tem “80 apartamentos fechados” (sic). Qualquer um que sonegue produtos ao mercado para aumentar seu preço está cometendo um crime – não importa que esses produtos sejam batatas ou apartamentos. No entanto, o deputado, ao invés de propor um imposto que impeça um sujeito de deixar 80 apartamentos fechados, ou uma lei que faça esse cidadão ir para a cadeia, acha que é preciso aumentar os privilégios do sonegador em relação aos inquilinos.
Não nos surpreende que o senador Adelmir Santana diga que “o grande beneficiário [do projeto] é o país, porque aumenta a segurança jurídica para os investidores do mercado imobiliário”. Confundir o país com os especuladores imobiliários, com uma minoria microscópica de sanguessugas, é bem próprio de um senador do DEM.
No entanto, não entendemos a ansiedade da senadora Ideli, ao defender a aprovação do projeto a toque de caixa (“Não há óbice do governo em vetar os quatro dispositivos. Se houvesse recurso ao plenário, haveria o risco de não votarmos este ano”).
O risco é exatamente o oposto. Esse projeto foi aprovado em apenas duas comissões da Câmara e uma do Senado. Foi aprovado sem passar pelo plenário nem da Câmara nem do Senado, da forma mais antidemocrática possível no Brasil atual. Enviado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), foi publicado no dia 14/07, distribuído no dia 06/08, entrou na pauta da CCJ em 19/10 e foi aprovado em caráter terminativo no dia 28/10. Em termos congressuais, isso é mais do que a velocidade de um MiG-35, se este pudesse fazer atalhos, como o projeto fez, evitando o plenário.
CARLOS LOPES