“Rebaixados a escravos civis”, denunciam os servidores deixados sem salário por Trump, na tentativa de impor muro da xenofobia, que é o mote de sua campanha pela reeleição em 2020
Com um milhão de servidores públicos federais – incluindo os terceirizados – e suas famílias, mais muitos milhões de pessoas que dependem do atendimento de nove departamentos e de dezenas de agências, feitos de reféns por Trump, o assim chamado ‘fechamento’ (‘shutdown’) do governo dos EUA já é o mais longo da história e sem data para se encerrar, enquanto o Congresso não liberar o dinheiro para o muro da xenofobia na fronteira com o México, que tornou símbolo do regime Trump e mote para sua reeleição.
Os ministérios fechados vão desde o Homeland (Segurança Interna) até o Departamento de Estado, passando por Agricultura, Transporte, Tesouro, Comércio, Interior, Habitação e Justiça – e respectivos programas sociais -, e afeta ainda a NASA, a Fundação Nacional de Ciência, a Agência de Proteção Ambiental, parques nacionais, museus e até a vigilância sanitária.
A cada dia que é prorrogado o ‘fechamento’, avolumam-se os prejuízos. Na sexta-feira, os servidores federais atingidos ficaram sem pagamento, e tem gente que começa a vender o que pode – um carro usado, uma tevê – para poder continuar comendo e pagando aluguel ou hipoteca. 450 mil estão trabalhando sem receber, situação considerada “insustentável” tanto pelos sindicatos quanto pelos próprios dirigentes dos órgãos federais afetados. Os restantes foram mandados para casa: “funcionários públicos rebaixados a escravos civis”, na denúncia nas redes sociais.
“Faço parte do fechamento do governo e preciso de dinheiro para sobreviver”, postou funcionário público da Virgínia oferecendo uma TV por “US$ 400 dólares”. “Funciona perfeitamente e está em boas condições”.
Pior ainda a situação dos terceirizados. Um guarda de museu de Nova Iorque, Keith Polite, disse que está comendo miojo depois de ser posto em folga compulsória e sem pagamento. Quando o ‘fechamento’ acabar, ele não terá ressarcido pelas horas não trabalhadas.
No sábado, um banco de alimento doou 15 toneladas de comida a servidores sem salário. Funcionários estão ficando sem dinheiro para pagar a creche dos filhos. Entre os deixados à míngua, há agentes penitenciários e até mesmo guardas de fronteira.
AGRESSÃO A DIREITOS
Por qualquer medida, o ‘fechamento’ é uma agressão aos direitos dos cidadãos norte-americanos, que estão sendo lesados por uma razão pífia. A Associação Nacional de Governadores denunciou a suspensão de US$ 85,8 bilhões em verbas federais para os estados e ameaça sobre mais US$ 16,5 bilhões. O programa que atende a sete milhões de gestantes, bebês e crianças de baixa renda, só não parou completamente por ação emergencial dos estados.
Com as verbas para funcionamento dos tribunais federais secando na última sexta-feira, começa o sufoco para manter como for possível a justiça operando no país. Na vigilância sanitária, a FDA deixou de fazer a maioria das inspeções de rotina. Até a comissão de fiscalização dos especuladores, a SEC, está de molho. As investigações de acidentes estão paralisadas: o órgão responsável deixou de apurar a colisão de caminhão-trator com um ônibus escolar que feriu 15 pessoas.
O diretor de Orçamento da Casa Branca, Russ Vought, tentou tranqüilizar os contribuintes, dizendo que as “restituições do Imposto de Renda não serão atrasadas” e que “só” faltaria o Tesouro descobrir como fazer isso legalmente possível. Mas ainda não há nenhum “plano de contingência” efetivo.
Nos aeroportos, sem pessoal, postos de controle alfandegário estão sendo fechados, como ocorreu em Miami, Washington e Atlanta no final de semana, e os controladores de vôo estão no limite. Com os inspetores de segurança em casa, as companhias aéreas estão essencialmente sem fiscalização.
Cientistas estão sendo vítimas da paralisação de laboratórios e pesquisas por falta de verbas. Dezenas de pesquisadores da Nasa e da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica não tiveram como ir à reunião anual da Sociedade Meteorológica Americana. Também agricultores, por causa da paralisação da Agência de Serviço Agrícola, ficaram impedidos de obter empréstimos e outras formas de subsídio.
VALE-SOPÃO
O espinhoso problema do vale-sopão, que beneficia quase 40 milhões de pessoas, foi temporariamente driblado, graças a uma interpretação criativa do decreto de Trump, com a antecipação do pagamento de fevereiro para até o dia 20 deste mês, apesar de toda a confusão que isso vai causar.
Na espera de quem vai piscar primeiro, prossegue a queda de braço entre Trump e a direção democrata, mas dos dois lados do establishment, a turma do deixa disso vem tentando jogar água na fervura. O Lockheed-boy Lindsey Graham chegou a pedir que Trump suspendesse “temporariamente” o fechamento, para dar tempo às negociações, enquanto deputados democratas, citados pelo portal Político, clamavam pelo fim do impasse.
Por enquanto, Trump só aceitou assinar lei do Congresso que irá garantir o pagamento aos servidores efetivos (mas não aos terceirizados) dos salários não recebidos durante o fechamento. Outra tática dos democratas, a de aprovar a reabertura do governo federal por partes, na expectativa de atrair senadores republicanos, até aqui foi bloqueada pelo líder do Senado, Mitch McConnell.
A fixação de Trump com o muro tem explicação, como revelou o El País, citando o New York Times. Era um candidato tão indisciplinado que seus marqueteiros buscaram um slogan para garantir que falasse sobre imigração, o assunto identificado “como o cavalo vencedor que o levaria à Casa Branca”. “Vamos fazê-lo falar sobre construir um muro”, decidiram Sam Nunberg e Roger Stone.
“A ideia funcionou” – como descreveu o biógrafo de Trump, Michael D’Antonio, “ele ouve o bip, bip , bip de um caminhão betoneira dando a marcha a ré, o produto sendo vertido e o muro crescendo”. Em auditórios de todo o país, o bilionário passou a ser recebido com o grito de “Construa o muro!” – afinal, nada mobiliza tanto seu eleitorado quanto a xenofobia e racismo. Segundo Andrew Selle, especialista sobre imigração, o que no início era só uma imagem sobre a segurança na fronteira, logo se tornou um símbolo “contra a imigração, o comércio, o terrorismo” e de “frear a globalização e enfrentar todos os seus males”.
Durante os últimos 25 dias, se pelo lado de Trump não houve como esconder o aspecto eleitoral da confrontação pelo seu muro, também isso não faltou do lado dos democratas. Como denota o lançamento das pré-candidaturas à presidência do ex-secretário de Habitação de Obama, Julian Castro, e da senadora Elisabeth Warren – apesar da eterna presidenciável e musa de Wall Street, Hillary.
ANTONIO PIMENTA