Governos do Congresso Nacional Africano deram fim às leis segregacionistas, mas um ‘apartheid econômico’ mantém 90% das riquezas do país nas mãos de 10% da população
Manifestações de camponeses negros questionam a implementação limitada e lenta da reforma agrária e urbana o que, mesmo depois de 23 anos (considerando como data do fim do apartheid a eleição de Nelson Mandela para a presidência da África do Sul, 1994) faz com que aquilo que os críticos do governo chamam de apartheid econômico se mantenha.
Uma comunidade negra de 40 famílias organizou recentemente um protesto em Durban, onde vivem em instalações de empresas agrícolas há mais de 20 anos.
Os manifestantes exigem a terra em que trabalham. Lisa Mbele, de 23 anos, é uma das manifestantes: “O meu pai está aqui há tantos anos. Temos que ser tratados de forma igual. Agora que estou aqui, quero que me deem os documentos que me permitam fazer o que eu quero nesta propriedade onde eu estou porque não se pode fazer nada se não tivermos esses papéis”.
Mandela tomou posse após eleito à frente de sua organização partidária, o Congresso Nacional Africano (CNA), que havia prometido durante os anos de luta contra o regime branco do apartheid, a redistribuição de terras aos negros. Terras que desde as Leis de Terras (as primeiras datam de 1913), tornaram legal a posse de terra usurpada aos camponeses negros nativos pelos colonizadores vindos da Europa. O CNA tinha como programa retornar aos donos e seus descendentes pelo menos 30% das terras usurpadas. De fato, com o novo governo que, desde Mandela, é dirigido por um representante do CNA e da maioria negra do país, teve início uma reforma agrária, mas que está muito aquém das promessas da campanha de libertação do apartheid. Hoje, depois de 23 anos, apenas 10% das terras foram devolvidas.
De tal forma que, se em 1994, 85,1% das terras era dos brancos, hoje eles possuem 73,3% das terras e os negros sul-africanos possuem 8,5%.
Esta lentidão tem tido como resposta manifestações, como a citada acima, e uma grande manifestação por reforma agrária ao final de 2016 se dirigiu ao centro administrativo governamental (Union Buildings) exibindo cartazes denunciando: “Reforma é muito lenta”, “Terra para alimentação, não para a ganância”, “Posse da terra, não financiamento”.
Dinte desta decepção, surgem organizações que contestam a falta de compromisso com o fim do apartheid econômico e pleiteiam a aceleração da reforma que, apesar da retórica do atual presidente, Jacob Zuma, na verdade, foi praticamente paralisada. Exemplos disso são a BFLF (Black First Land First) e a EFF (sigla em inglês de Lutadores pela Liberdade Econômica), cujo dirigente, Julius Malena, que já foi indiciado por “discurso de ódio”, mas não condenado e eleito por seu partido como deputado, declarou em um dos seus comícios: “Quando sairmos daqui, se virem algum pedaço de terra que gostem, ocupem-no, porque vos pertence, é vossa terra. É a terra dos vossos antepassados, é a terra que nos foi tirada pelos brancos que mataram pessoas como nós”.
Segundo descreve o articulista Peter Goodman, em matéria no New York Times, o governo assumido pelo CNA “uma vez instalado no poder relutou em adotar políticas que tivessem o risco de ser vistas como radicais pelos investidores internacionais, temendo que isso pudesse prejudicar a classificação de crédito do país”.
Na África do Sul o resultado dessa política, que manteve o domínio dos monopólios sobre a economia foi um crescimento médio de 3,5% do PIB ao ano entre 1998 e 2008, quando estourou a crise dos derivativos. Em 2009, a queda é de – 1,8% no PIB, há uma ligeira recuperação em 2010 (3,0%) e a economia vai perdendo ritmo a partir daí: 2011 (2,2%) 2012 (2,5%); e depois se aproxima da estagnação; 2013 (1,7%), 2014 (1,7%), 2015 (1,7%) e 2016 (O,6%). Um desastre para um país com uma imensa dívida social determinada por décadas de apartheid. De tal forma que hoje o índice oficial de desemprego chega a 28% e a concentração de renda persiste, com a minoria branca, 10% da população, detendo 90% da riqueza nacional, segundo aponta a pós-graduanda Anna Orthofer, da Universidade Stellenbosch. Segundo o mesmo estudo, 80% da população nacional, de maioria negra, não possui bem algum.
As denúncias não param por aí. Nas terras distribuídas, a crise está instalada. Os novos fazendeiros precisam competir no mercado com os brancos, que possuem acesso mais abundante a crédito, estrutura de produção, expertise e sistemas de distribuição dos seus produtos que deixam os camponeses negros em tal desvantagem que alguns já revenderam as terras reconquistadas para sair de apuros financeiros imediatos.
APARTHEID GEOGRÁFICO
Desde a Lei de Terras, de 1913, o apartheid instituído deslocou milhões de africanos de suas regiões originárias para os bantustões e para favelas nas periferias das grandes cidades, as townships, os negros passaram a morar em barracos em localidades sem serviços básicos, água encanada ou esgoto.
Em 1988, Colin Murray editora do Jornal de Estudos Sul Africanos, JSAS, descreveu o que ela chamou de ‘estratégia dos bantustões’ uma “urbanização deslocada” que consistia em criar “imensas favelas rurais”; assentamentos “que eram urbanos do ponto de vista da densidade populacional mas ‘rurais’ em termos da ausência de infraestrutura apropriada e serviços”.
Após a vitória do CNA, alegando falta de verbas, o governo construiu mais de 2 milhões de residências nestas mesmas localidades mantendo basicamente a mesma deficiência de serviços de antes. Além disso, muitos só conseguem trabalhar, ainda hoje, nas cidades habitadas pelos brancos. Por exemplo, os negros, moradores da township de Mitchells Plain precisam viajar mais de 30 quilômetros para os terminais de onde irão aos seus locais de trabalho na Cidade do Cabo.
“Agravamos os problemas do apartheid ao comprar todos esses terrenos baratos o mais longe possível das cidades”, refletiu Alan Hirsch, do Departamento de Comércio e Indústria no governo Mandela e hoje diretor da Escola de Pós-Graduação em Política e Prática do Desenvolvimento na Universidade do Cabo.
Como seria de se esperar, a manutenção desta desigualdade tem gerado uma violência insustentável no meio rural. Há duas semanas, milhares de fazendeiros brancos fecharam rodovias com comboios de veículos trafegando lentos pelas estradas do interior para as cidades do Cabo, Pretória e Johannesburg para denunciar a morte de brancos no interior do país. Os protestos foram convocados pela organização dos fazendeiros brancos sul-africanos, AfriForum, que denuncia que até novembro deste ano, 70 fazendeiros brancos foram assassinados em 341 ataques a fazendas.
Já o grupo Black First Land First denuncia que, na verdade, são os fazendeiros brancos que perpetraram durante décadas uma extensa violência contra os negros e que esta violência continua até os dias de hoje.
Finalmente, o parlamento sul-africano aprovou projeto de lei em maio de 2016 para acelerar a reforma agrária. A nova legislação permite que o Governo determine aoss proprietários brancos de fazendas a venda de terras, para que possam ser devolvidas aos antigos proprietários nativos. Zuma tem ainda de promulgar a lei, mas ninguém sabe se e quando isso vai realmente acontecer.
NATHANIEL BRAIA