Com eleições gerais marcadas para maio, o ano não começou propriamente bem para os planos de reeleição do primeiro-ministro indiano Narendra Modi: uma greve geral de 48 horas, com a participação de 150 milhões de trabalhadores – certamente a maior greve geral do planeta -, repudiou nos dias 8 e 9 sua anunciada ‘reforma trabalhista’ e o esmagamento dos pequenos agricultores, exigiu salário mínimo de 18.000 rúpias (250 dólares), previdência universal e medidas urgentes de criação de empregos, além de rechaçar o comunalismo racista e o neoliberalismo.
Também, no primeiro dia do ano uma multidão de mulheres – 5,5 milhões delas – formou um muro de 620 quilômetros ao largo da fronteira do estado de Kerala em defesa da decisão da Suprema Corte que autorizou a entrada de mulheres no templo de Sabrimala, ao qual apenas homens podiam ter acesso, erradicando um preconceito travestido de “tradição religiosa do hinduísmo”, tão caro ao partido de Modi, o supremacista hindu Bharatiya Janatha Party (BJP).
Aliás, o ano passado também havia terminado mal, com o partido de Modi sendo derrotado em eleições em três importantes estados, tidos como redutos.
A greve atingiu especialmente o transporte, órgãos governamentais, indústria, telecomunicações, bancos públicos, comércio, chá e mineração e também os trabalhadores na informalidade, da construção civil aos motoristas de riquixá.
UNIDADE
Para o líder de uma das dez centrais que convocaram a paralisação, Tapen Sen, da Central de Sindicatos da Índia (CITU), “as novas leis sindicais” – que irão a votação no atual parlamento controlado por Modi – praticamente implicam “na escravização dos cidadãos hindus”. Ainda, a nova legislação tenta aprofundar o cerceamento do direito de greve e aumentar a precarização, para manter o arrocho salarial.
A maior participação ocorreu nos estados de Bengala Ocidental e Odisha (leste), Maharashtra e Goa (oeste), Kerala, Karnataka e Tamil Nadu (sul), Punjab (norte), Haryana e Rajasthan. Em Mumbai, segunda maior cidade e o centro financeiro da Índia, a maioria dos bancos e das repartições públicas foram fechados e as operações portuárias, afetadas. Na capital, Nova Delhi, houve um enorme protesto diante do parlamento. Escolas e universidades deixaram de funcionar, assim como os correios. Ônibus públicos não saíram das garagens e ferrovias foram bloqueadas em vários locais, com os grevistas sentados nas vias, de Chennai a Assam, no outro extremo da Índia. Trabalhadores rurais também aderiram.
Como assinalaram as centrais sindicais, “a amplitude sem precedentes é um indicador claro do grau de cólera e indignação dos trabalhadores contra as políticas neoliberais e ataques às suas condições de vida e trabalho perpetradas por esse governo”.
A paralisação logrou, ainda, superar as divisões comunais e de castas, em que Modi tanto se apoia para implementar sua política de arrocho, benesses para os bilionários indianos e favorecimento do capital estrangeiro. A polícia de Modi reprimiu os grevistas e realizou prisões, enquanto os servidores públicos que participaram foram ameaçados de demissão.
Com o país precisando criar 1,3 milhão de empregos por mês segundo o Banco Mundial, só para atender os que ingressam no mercado de trabalho, a promessa de campanha de Modi de que sua política pró-‘investimento privado’ iria fazer chover postos de trabalho, se revelou um cruel estelionato eleitoral, apesar de ele propagandear às multinacionais a maravilha que era os salários na Índia serem uma fração dos vigentes na China. Só no ano passado, o desemprego aumentou em 11 milhões de pessoas.
Modi prometera criar “100 milhões de empregos” até 2022, mas de acordo com a OIT criou menos de 900 mil entre 2014 e 2017. A ponto de a estatal indiana das ferrovias anunciar concurso para 90 mil vagas e se inscreverem 28 milhões. A informalidade grassa, e dos 405 milhões na força de trabalho, 206 milhões são “autônomos”. De acordo com o PNUD, de 1991 a 2013, enquanto a população em idade ativa aumentou em 241 milhões, o emprego aumentou em apenas 144 milhões.
ARROCHO SALARIAl
O arrocho é, portanto, um chamariz essencial para o projeto de Modi, que ganhou notoriedade como governador do estado de Gujarat. Conforme pesquisa socioeconômica do próprio governo, mais de 90% do povo indiano tem uma renda de menos de 10.000 rúpias (143 dólares). Há 42 milhões de crianças desnutridas.
No campo, onde estão mais da metade dos indianos, em decorrência do endividamento, alta do custo dos insumos e sementes transgênicas e falta de preço mínimo justo, o estresse é imenso, com 12.000 agricultores arruinados tendo cometido suicídio a cada ano de mandato de Modi. Também é catastrófico o índice de suicídios entre os jovens, uma consequencia do desemprego, da competição por acesso à educação, falta de perspectivas e clima preconceituoso: 35,5 por 100 mil, o mais alto do mundo.
A privatização e o favorecimento dos rentistas – iniciados nos governos do Partido do Congresso, após uma crise cambial, com o primeiro-ministro Manmohan Singh, e agravados sob Modi -, têm exacerbado a já imensa desigualdade na Índia. A participação do trabalho na renda nacional caiu de 40% para 35% entre 1991 e 2013. Enquanto havia apenas dois bilionários indianos em meados da década de 1990, agora são 131, com uma riqueza equivalente a 15% do PIB da Índia. Apenas 1% da população detém 68% de toda a riqueza, um aumento de quase 20 pontos percentuais nos últimos cinco anos, segundo a deputada comunista Brinda Karat. Com 1,3 bilhão de habitantes, deu para cevar uma classe média enorme em termos absolutos, em meio à imensa massa de destituídos e trabalhadores informais, muitos deles ganhando US$ 2 por dia.
O governo Modi também cortou gastos sociais, enquanto concedia gordos subsídios fiscais aos monopólios. Não poupou os pequenos produtores e negociantes que acreditaram em suas miragens: o confisco das “notas de alto valor” fez um estrago enorme, num país onde a maior parte não tinha conta em banco. Outro golpe é o novo imposto sobre vendas, de 12% a 18%. As mudanças de impostos visam colocar o fardo da crise fiscal do governo sobre os ombros dos trabalhadores e camponeses.
CAMPONESES EM CRISE
A crise no campo levou no ano passado dezenas de milhares de pequenos agricultores, asfixiados pelas dívidas, a marcharem por centenas de quilômetros, até à capital, Nova Delhi, e o centro financeiro, Mumbai, para denunciar sua dramática situação e exigir providências – que não vieram e acabaram influindo nas derrotas do final de ano de Modi.
Conforme a Reuters, para ter chance de ganhar a eleição geral de maio, Modi “está sob pressão para apaziguar aqueles que ficaram desesperados com a queda dos preços das safras”. Uma coisa é “dolorosamente clara: as massas estão sendo espremidas. Os protestos estão ficando maiores e mais ruidosos”. A seca, os atrasos na distribuição da ajuda do governo e a proibição de notas grandes em 2016 “contribuíram para o colapso do crescimento da renda rural de 18% nos quatro anos até março de 2014, para 5% no período subsequente, segundo economistas”, aponta a agência de notícias.
No terreno democrático, o governo Modi tem se caracterizado pelo assalto aos princípios básicos da Constituição Indiana de 1950, em particular, o secularismo e a diversidade étnica e religiosa do país. O BJP, que tem origem em uma organização que juntou ideias fascistas com a apologia das castas superiores brâmanes, não esconde seu desejo de transformar a Índia em um estado teocrático de supremacia hinduísta, receita para o desastre num país multiétnico e de várias religiões. A apologia desses preconceitos e supertições trouxe de volta turbas de linchamento de supostos “comedores de vacas” – crentes muçulmanos, em geral – e tornou comum os estupros. Outro efeito colateral é o de autoridades delirando sobre que os hindus da antiguidade já dominavam de carros alados à cirurgia plástica, como atestaria a mitologia veda. Um secretário de estado até mesmo asseverou que a vaca é o único animal que “inspira e espira oxigênio”. Obscurantismo que já causa preocupação a cientistas indianos.
ANTONIO PIMENTA