Pediu para STF barrar investigação
Negou ainda que ficasse com parte do salário dos funcionários do gabinete
As explicações dadas por Flávio Bolsonaro, no domingo, 20/01, sobre os depósitos suspeitos, detectados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) em sua conta bancária, mais complicam a sua situação do que esclarecem alguma coisa.
Segundo ele, foram transações imobiliárias.
Em suma, seu motorista, Queiroz, “fazia dinheiro” com a compra e venda de carros usados. Ele fazia a mesma coisa com a compra e venda de imóveis…
Vamos resumir a sua explicação:
Disse ele que trocou uma cobertura em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, por um apartamento na Urca e um imóvel comercial na Barra da Tijuca, pertencentes a Fábio Guerra, conhecido jogador de vôlei de praia – com mais um pagamento de R$ 600 mil, pois o valor da cobertura de Flávio Bolsonaro era R$ 2,4 milhões, enquanto a soma dos valores dos imóveis de Guerra era R$ 1,8 milhão.
O filho de Bolsonaro, então, recebeu R$ 550 mil de Guerra, como sinal da transação, sendo R$ 100 mil em dinheiro.
Esse seria o dinheiro que ele depositou em sua conta na agência do Itaú Unibanco da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), dividido em 48 envelopes, contendo R$ 2 mil em cada um.
O ex-jogador de vôlei de praia disse, na segunda-feira, que pagou ao rebento mais velho de Bolsonaro “cerca de R$ 100 mil em dinheiro”.
É difícil saber o que significa “cerca de R$ 100 mil” – por que essa forma vaga e indefinida de falar?
Guerra também disse que “paguei em dinheiro porque havia recebido em dinheiro pela venda de outro apartamento. Como recebi aos poucos, fui pagando aos poucos. Não posso falar ao certo, porque de repente foi 70, 80, foi 120, 110 [mil reais]. O resto foi tudo depósito”.
Outra vez, existe algo indefinido aqui. Por quê?
Talvez seja porque a escritura do apartamento desmente essa transação – ou, melhor, desmente o modo em que, no relato de Flávio Bolsonaro, ela foi realizada.
O pagamento dos R$ 550 mil realmente existiu, segundo esse documento. Mas foi efetuado no dia 24 de março de 2017, dois meses antes de começarem os depósitos suspeitos na conta de Flávio Bolsonaro.
O resto dos R$ 600 mil foi pago em 23 de agosto de 2017: R$ 50 mil, divididos em cinco cheques, na passagem da escritura.
Mas, segundo Flávio Bolsonaro, foi o que ele recebeu de Guerra em dinheiro, que ele depositou, no auto-atendimento da agência do Itaú Unibanco, entre 9 de junho e 13 de julho de 2017 – divididos em cinco séries de envelopes com R$ 2 mil dentro de cada um.
Foram 10 envelopes na primeira vez; cinco envelopes na segunda; 10 envelopes na terceira; oito envelopes na quarta; e 15 envelopes na quinta vez.
A primeira vez foi no dia 9 de junho de 2017; a quinta vez foi no dia 13 de julho de 2017.
Tudo muito simples e descomplicado, certamente. Para que ir direto ao guichê da agência e depositar o dinheiro – ou as parcelas que recebeu do dinheiro?
Bem, aí não haveria a emoção de dividir o dinheiro em notas, colocar R$ 2 mil em cada envelope, comparecer ao auto-atendimento para fazer operações sucessivas, despertar as suspeitas do Coaf, etc., etc.
Não parece lógico, leitor?
Bem, há outra explicação: Mussolini disse uma vez que o ideal fascista é “vivere pericolosamente” (cf. Discurso perante o Conselho Nacional do Partido Fascista, 02/08/1924).
Deve ser isso, embora é pouco provável que Flávio Bolsonaro haja lido Mussolini. Entretanto, há certas afinidades que vão além do conhecimento – e, mesmo, da inteligência.
Mas, voltemos aos depósitos na conta do filho de Bolsonaro.
Há uma questão anterior à sua opção pelos envelopes com R$ 2 mil cada um:
Se ele recebeu esse dinheiro em março, será que ficou, até junho, com o dinheiro em casa, talvez esperando uma data astrologicamente propícia para depositá-lo?
TEORIA DE TUDO
Quanto ao pagamento de um título de R$ 1.016.839 (um milhão, 16 mil e 839 reais), também identificado pelo Coaf, Flávio Bolsonaro disse que foi pagamento da cobertura em Laranjeiras. Literalmente:
“É um apartamento que comprei na planta. Quando você compra um apartamento na planta, o financiamento fica com a construtora e quando sai o habite-se, quando a Caixa pode fazer o financiamento, o que você faz? Você busca a Caixa, que tem juro menor. A Caixa vai e paga a sua dívida com a construtora, eu deixo de ser devedor da construtora e passo a ser o devedor da Caixa”.
Ou seja, a cobertura em Laranjeiras explicaria tudo: o pagamento do título seria explicado por sua compra e os 48 depósitos seriam explicados por sua venda.
Parece uma daquelas narrativas, próprias de alguns advogados, que explicam tudo – sem necessariamente ter relação com a realidade.
Mas, concedamos, por enquanto, o benefício da dúvida a Flávio Bolsonaro. Embora, que isso tem um odor de Operação Uruguai, lá isso tem.
[NOTA (para os leitores mais jovens): “Operação Uruguai” foi a justificativa dada por Collor, em julho de 1992, para suas despesas completamente incompatíveis com seus rendimentos. Segundo essa justificativa, não eram as propinas que possibilitavam essas despesas, mas um empréstimo de US$ 3,75 milhões, convertido em 318 kg de ouro, que Collor obtivera de um doleiro no Uruguai. Nos interrogatórios da CPI que, então, investigou a corrupção do grupo de Collor, foram apresentados todos os documentos e testemunhos que comprovariam tal “operação”. O único problema foi que a “operação” jamais existiu, como ficou claro no depoimento de uma secretária, Sandra Fernandes Oliveira, que presenciara a montagem da falsa operação, e no depoimento de um dos advogados que montaram a própria “operação”.]
INFERNO
Um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), na sexta-feira (18/01), comentou que Flávio Bolsonaro, ao pedir que o ministro Luiz Fux paralisasse as investigações do Ministério Público na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), “pegou um elevador para o inferno”.
Os fatos, em seguida, comprovaram o que disse o ministro.
Até então a investigação era sobre a movimentação de R$ 1,2 milhão na conta de Fabrício Queiroz, motorista de Flávio Bolsonaro na Alerj, e antigo serviçal de seu pai.
Essa movimentação era totalmente incompatível com a renda ou o patrimônio de Queiroz – e incluía um repasse de R$ 24 mil para a mulher de Jair Bolsonaro (ou para o próprio, segundo disse este, em pagamento de um empréstimo que fizera a Queiroz).
O pedido para paralisar as investigações – e, mais, a concessão do pedido pelo ministro Fux – foi visto imediatamente como uma tentativa de impedir que se soubesse a verdade sobre a conta de Queiroz, onde nove outros funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro depositavam parte do salário.
O que era verdade. Mas não era só isso.
Logo depois do pedido do filho de Bolsonaro ao STF, apareceram os 48 depósitos suspeitos, não mais na conta de Queiroz, mas na conta do próprio Flávio Bolsonaro (v. Quem fazia os depósitos na conta de Flávio Bolsonaro?).
Aliás, as movimentações na conta de Flávio Bolsonaro eram muito assemelhadas àquelas na conta de Queiroz.
No domingo, em duas entrevistas, o filho de Bolsonaro negou que ficasse com uma parte dos salários dos funcionários de seu gabinete: “No meu gabinete, no meu gabinete não! E se eu soubesse de alguém que tivesse cometendo isso, eu era o primeiro a denunciar e mandar prender. Porque todo mundo sabe, quem me conhece, quem me acompanha no dia a dia, sabe que não tem sacanagem comigo”.
No entanto, um de seus funcionários, Wellington Servulo Romano da Silva, mora em Portugal há dois anos, embora recebendo da Alerj e fazendo depósitos na conta de Fabrício Queiroz.
Segundo Flávio Bolsonaro, ele não sabia que seu funcionário morava em Portugal. Mas, nem quando soube, isso lhe despertou algum acesso de bravura ou indignação (v. Flávio Bolsonaro diz que não sabia que seu funcionário era fantasma e morava em Portugal).
Só agora tais acessos apareceram.
Além disso, apareceu o pagamento do título de R$ 1.016.839 (um milhão, 16 mil e 839 reais), para alguém não identificado, também a partir da conta de Flávio Bolsonaro.
Por fim, descobriu-se que Fabrício Queiroz não movimentara apenas R$ 1,2 milhão em sua conta, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017.
Na verdade, Fabrício Queiroz movimentou R$ 7 milhões em três anos (2014 a 2017), o que é ainda mais incompatível com sua renda e patrimônio (v. Queiroz não movimentou R$ 1,2 milhão; movimentou R$ 7 milhões, diz Coaf).
PODERES
O problema da versão apresentada por Flávio Bolsonaro no domingo, evidentemente, é que não existe prova de que o dinheiro depositado em sua conta seja originário do pagamento (ou dos pagamentos) que Fábio Guerra, o jogador de vôlei de praia, lhe teria feito.
Além da escritura, existe outro indício – talvez até mais forte, ainda que seja circunstancial – de que isso não corresponde à verdade.
Se tudo é tão claro, se tudo sempre foi tão facilmente explicável, por que Flávio Bolsonaro pediu ao STF que paralisasse as investigações, alegando um “foro privilegiado” que não existia?
Por que ele não queria ser investigado – mesmo com o custo do pedido ao STF fazer a questão bater no Palácio do Planalto?
Pois, no caso de uma investigação conduzida pelo STF, um dos investigados seria, inevitavelmente, o pai de Flávio Bolsonaro e sua madrasta – que receberam dinheiro a partir da conta de Queiroz.
O presidente não pode ser processado, exceto com autorização do Congresso – mas pode ser investigado.
Essa, então, é a primeira questão: por que, se tudo é tão honesto e tão simples, Flávio Bolsonaro aprontou um quiproquó nos três vértices da Praça dos Três Poderes, exatamente para não ser investigado?
A outra questão é a própria versão do filho de Bolsonaro.
Não existe, também, prova de que foi ele a depositar o dinheiro, tal como disse.
Pela sua versão, ele mesmo colocou R$ 2 mil em cada um dos 48 envelopes e depositou-os no auto-atendimento do Itaú Unibanco.
A ideia de um deputado – e, no caso, um deputado que é filho de Bolsonaro – depositando 48 envelopes, com R$ 2 mil cada, no auto-atendimento de um banco, é algo cômica, para não dizer inverossímil.
O fato da agência se localizar dentro da Alerj, só piora a situação, tornando tudo ainda mais inverossímil (segundo disse Flávio, ele depositou o dinheiro no auto-atendimento da agência do Itaú na Alerj, porque a Alerj era o seu “local de trabalho”. Mas, todos os depósitos, com exceção daqueles do dia 15 de junho de 2017, foram efetuados em horário bancário. Por isso, era mais lógico depositar o dinheiro em uma agência onde os deputados têm tratamento preferencial, do que no auto-atendimento).
Então, a pergunta permanece: por que ele não preferiu depositar em algum guichê da agência, onde não haveria limitação para o valor do depósito? Por que preferiu um método cuja única vantagem era tornar anônimo o depositante?
Como noticiamos, o dinheiro foi depositado nas seguintes datas:
1) No dia 9 de junho de 2017 (10 depósitos de R$ 2 mil em 5 minutos – das 11h2min às 11h7min).
2) No dia 15 de junho de 2017 (5 depósitos em 2 minutos – das 16h58min às 17h).
3) No dia 27 de junho de 2017 (10 depósitos em 3 minutos – das 12h21min às 12h24min).
4) No dia 28 de junho de 2017 (8 depósitos em 4 minutos – das 10h52min às 10h56min).
5) No dia 13 de julho de 2017 (15 depósitos em 6 minutos).
Portanto, segundo sua versão, Flávio Bolsonaro levou do dia 9 de junho até o dia 13 de julho, depositando, em cinco vezes e 48 depósitos, pessoalmente, os R$ 100 mil que recebeu de Guerra, no auto-atendimento do Itaú Unibanco da Alerj.
Para que essa ginástica, se ele poderia poupar a si mesmo dessa trabalheira?
Ou não foi ele que fez esses depósitos?
E nem estamos perguntando onde foram parar os R$ 4 mil que faltam para chegar aos R$ 100 mil, pois 48 envelopes com R$ 2 mil, perfazem R$ 96 mil.
Ah, é verdade, não eram R$ 100 mil, mas “cerca” de R$ 100 mil.
Então, se é assim – e pode ser que apareça mais coisa – restam ainda os R$ 7 milhões na conta do Queiroz.
C.L.
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