O respeito às leis e às normas da civilização – isto é, às normas que traduzem o respeito humano pelo seu semelhante, pela coletividade de seus semelhantes – não podem ser exigidas apenas, nem principalmente, de quem cometeu crimes.
Pelo contrário, têm que ser exigidas, sobretudo, de quem pretende punir esses crimes.
Lula tinha direito, assegurado por lei – e, mesmo que não fosse assegurado por lei, seria pelo bom senso e pela sensibilidade humana – de comparecer ao funeral de seu irmão, Genival Inácio da Silva, o Vavá.
A lei de execução penal (Lei nº 7.210/1984), em seu artigo 120, estabelece que “os condenados que cumprem pena em regime fechado” podem sair da cadeia, “mediante escolta”, em caso de “falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão”.
O texto é, portanto, explícito.
A lei nem mesmo exige que, para isso, haja decisão de uma autoridade judicial – muito menos um parecer do Ministério Público ou da Polícia: “A permissão de saída será concedida pelo diretor do estabelecimento onde se encontra o preso”, diz o parágrafo único do artigo que citamos.
O que tem toda lógica, pois se trata de um direito já explicitado na lei, portanto, não necessita da interpretação de um juiz.
Também é lógico o artigo seguinte da mesma lei: “A permanência do preso fora do estabelecimento terá a duração necessária à finalidade da saída” (artigo 121 da lei de execução penal).
Mesmo que não existisse esse dispositivo legal – como não existia em 1980, quando o delegado do DOPS, Romeu Tuma, ainda durante a ditadura, permitiu que Lula, então preso político, comparecesse ao funeral de sua mãe – era algo de evidente e primária humanidade a permissão para que Lula fosse ao enterro de seu irmão.
O fato de, agora, Lula não ser um preso político, nada tem a ver com o assunto.
Como lembrou, em uma causa famosa, o grande Sobral Pinto – conservador, anticomunista, mas defensor dos direitos humanos –, pela lei brasileira, até os animais irracionais têm direitos. E, depois de citar o Decreto nº 24.645, de 1934, do presidente Getúlio Vargas, sobre a proteção aos animais, disse Sobral a um juiz: “… que os juízes e tribunais façam dispensar aos detentos, que vivem nas prisões e cárceres, sujeitos à sua ação e fiscalização, um tratamento que os impeça de se considerarem simples animais hidrófobos ou empestados”.
Lula não está na situação vexatória referida por Sobral. Mas tinha direito de comparecer ao funeral de seu irmão: direito pela lei e pelo respeito humano.
A confusão aprontada pela juíza de execuções penais de Curitiba, pelo Ministério Público, pela Polícia Federal, pelo desembargador do TRF-4, e, finalmente, a servil liminar concedida pelo presidente do STF, Dias Toffoli, acabaram por impedir Lula de comparecer ao enterro do irmão, mas foram totalmente ilegais.
Vejamos um resumo dos fatos:
1) No dia 29 de janeiro, às 15h50min, a defesa de Lula pediu à juíza de execuções, Carolina Lebbos, e ao superintendente da PF do Paraná, onde se encontra preso, permissão para que ele fosse ao funeral de seu irmão.
2) A juíza transferiu a decisão para o superintendente da PF do Paraná – o que estava correto, pela lei – mas pediu um parecer ao Ministério Público.
3) Às 18h14min, como o parecer do MP não fosse apresentado, a defesa repetiu o pedido para que a juíza permitisse a saída de Lula.
4) Às 19h43min, o MP pediu à PF que apresentasse relatório sobre o transporte de Lula.
5) Às 21h50min, o superintendente da PF comunicou à juíza que não podia autorizar a saída de Lula porque:
a) não havia transporte aéreo para que Lula chegasse a tempo no funeral;
b) se houvesse transporte aéreo, “a distância entre o ponto mais provável de pouso de helicóptero e o local dos atos fúnebres é de aproximadamente 2 km, percurso que teria que ser feito por meio terrestre, o que potencializa dos riscos já identificados e demanda um controle e interrupção de vias nas redondezas”;
c) não havia policiais disponíveis “tanto da PF quanto da Polícia Civil e PM/SP para garantir a ordem pública e a incolumidade tanto do ex-presidente quanto dos policiais e pessoas ao seu redor”;
d) por causa das “perturbações à tranquilidade da cerimônia fúnebre que será causado por todo o aparato que seria necessário reunir para levar o ex-presidente até o local”.
e) além disso, disse o superintendente, “os helicópteros da PF estão sendo utilizados no momento em Minas Gerais, para auxiliar nos resgates de Brumadinho“.
6) A defesa recorreu, então, à segunda instância, o TRF-4, que também negou o pedido, por razões processuais, ou seja, sem entrar no mérito do assunto.
7) Foi então tentado um recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF), cujo presidente, Dias Toffoli, concedeu uma liminar que parece escrita por um bolsonarista:
“… concedo ordem de habeas corpus de ofício para, na forma da lei, assegurar, ao requerente Luiz Inácio Lula da Silva, o direito de se encontrar exclusivamente com os seus familiares, na data de hoje, em Unidade Militar na Região, inclusive com a possibilidade do corpo do de cujos ser levado à referida unidade militar, a critério da família”.
A expressão “de cujos” significa “cadáver”.
Quando Toffoli deu a sua liminar, “permitindo” que o corpo fosse transladado até uma “unidade militar” (Deus!), para que Lula pudesse vê-lo, Genival já estava enterrado.
Expusemos esses fatos porque os leitores sabem muito bem qual a nossa posição sobre Lula e seus processos. Nem por isso achamos admirável o que ocorreu. Nem na guerra é válida qualquer coisa – tanto assim que existem “criminosos de guerra”. Quanto mais na política – e, muito menos, quando se trata de cumprir as leis e garantir direitos.
Um sinal clamoroso de que nada disso foi edificante é que a pessoa de mais bom senso, nessa história, por incrível que pareça, foi o vice-presidente, Hamilton Mourão, que declarou, ainda no exercício da Presidência, que era uma “questão humanitária” autorizar a saída de Lula da prisão para ir ao enterro de seu irmão. E completou: “A gente perder um irmão sempre é uma coisa triste. Eu já perdi o meu e sei como é que é”.
Não estamos discutindo a sinceridade do vice-presidente, mas, quando Mourão se torna um exemplo de sensatez e humanismo, é sinal que alguns deixaram de distinguir entre a sanidade e a loucura.
Algo está errado.
E, certamente, não é a prisão ou a condenação de Lula.
JUSTIÇA
Do ponto de vista político, a recusa de permitir que Lula comparecesse ao enterro de seu irmão, tem como consequência colocar combustível no tanque de demagogia do condenado – em suma, dar alguma suposta credibilidade à sua “narrativa”, em que se apresenta como “injustiçado”, “vítima”, “perseguido”, “preso político” e outros embrulhos desse tipo.
Se os personagens desses acontecimentos quisessem ajudar na campanha do PT para desmoralizar a Justiça, a Polícia e o Ministério Público, não podiam ter feito outra coisa.
Mas, é claro, nem assim conseguiram, pois a conta de Lula é alta demais para ser encoberta até com essa série de asnices.
Entretanto, não é por isso que era justo permitir a ida de Lula ao funeral de seu irmão.
A questão, sucintamente, é a seguinte.
Lula foi condenado por roubar dinheiro público: por receber propinas de uma empreiteira, sob a forma de um triplex em uma praia de Guarujá.
As provas são tão irretorquíveis, que sua defesa – inclusive o próprio Lula – nem ao menos tentou contestá-las, preferindo a versão de que elas não existem, como se fosse possível negar a existência daquilo que todos estão vendo.
Em outros processos, a quantidade e a gravidade das provas contra ele é ainda maior.
Foi, portanto, justamente condenado, no processo do triplex, a nove anos e seis meses de prisão em primeira instância, sentença que foi aumentada, na segunda instância, para 12 anos e um mês de cadeia.
Já analisamos, em dezenas, centenas de matérias, as provas contra Lula. Aqui, não entraremos em mais detalhes sobre essas provas ou sobre os processos e as acusações contra Lula, porque não é necessário.
Pois o problema é que qualquer preso, qualquer condenado, qualquer criminoso tem alguns direitos – primeiramente, o de ser tratado como ser humano, o que inclui o respeito a aspectos afetivos e familiares – que, como disse o nosso maior jurista, Rui Barbosa, até mesmo são anteriores à própria lei (pois a existência de direitos, dizia Rui, não depende deles estarem – ou não – escritos na lei).
Mais ainda quando esses direitos estão na lei – e, nesse caso, estão.
Qual o problema de Lula comparecer ao enterro de seu irmão?
Haveria manifestações a seu favor?
Claro que haveria.
E daí?
Haveria manifestações contra ele?
É pouco provável, porque esses doidos, postos em circulação pelo bolsonarismo, além de não rasgar dinheiro, preferem, como esporte, a corrida de 100 metros rasos, não o boxe. É por isso que o Olavo de Carvalho foi para os EUA e até agora, felizmente, não voltou.
Mas, e se houvesse manifestações contra Lula?
Qual o problema?
Haveria, como disse algum ridículo – nem nos lembramos quem –, risco de Lula fugir?
A vontade é de rir, pois se existe algo que não apetece a Lula – nem lhe é possível – é viver na clandestinidade.
Mas a verdade é que a custódia de um preso é dever do Estado – e não do próprio preso.
Em outras palavras: a lei é para ser cumprida, assim como não existe senso de justiça onde faltam sensibilidade e humanidade.
CARLOS LOPES