No dia 3 de fevereiro de 1989 – há 30 anos – teve fim a ditadura de Alfredo Stroessner, general que durante três décadas e meia apequenou o Paraguai como serviçal dos Estados Unidos, em meio a perseguições, torturas, desaparecimentos e assassinatos. Toda esta série de crimes está muito bem documentado nos “Arquivos do Terror”.
Pela relevância da data e do tema – uma vez que para aprofundar a submissão aos EUA, os governos do Paraguai, Chile, Argentina e Uruguai se uniram na “Operação Condor”, que logo depois também somou elementos do Brasil e da Bolívia – reproduzimos abaixo o artigo enviado pela companheira Guilhermina Kanonnikoff. Professora e ativista, casada com Mário Raúl Schaerer Prono, jovem docente assassinado sob tortura nas dependências da polícia política do ditador, Guillermina é uma referência de abnegação e ponto central na luta pela democratização do seu país.
Por se manter fiel aos princípios e não delatar nenhum companheiro, foi presa e espancada grávida de sete meses, permanecendo encarcerada por 1 ano e 7 meses sem qualquer processo judicial.
Derrotada a ditadura, ganhou a primeira ação contra os responsáveis pelo assassinato de seu companheiro Mário.
L.W.S.
Exercendo memória para um nunca mais
GUILERMINA KANONNIKOFF
A ditadura strosnista se instaura em 1954 após um golpe militar e se apropria do poder por 35 anos. Desde as suas origens é constituída por um sistema político ilegítimo e ilegal. Se bem que se realizavam votações de cinco em cinco anos, essas eleições eram fraudulentas e só serviam para dar a aparência de legitimidade ao governo. Estes fatos eram continuamente denunciados por organismos nacionais e internacionais em inúmeras ocasiões.
Durante a era strosnista, o exercício do poder, longe de ser uma garantia para a defesa dos interesses nacionais e a segurança dos cidadãos, foi constituído em terreno de caça para grupos de poder que defendiam o ditador e que através de propinas, da impunidade e da instauração do medo como forma de governar, conseguiram submeter uma grande parte da sociedade. Estes três ingredientes permitiram que a corrupção penetrasse em todos os níveis das relações sociais, onde as leis de nada valiam, mas os “favores” dos “amigos” que se beneficiavam das benesses do poder. Isto se transformou em forma de vida e hoje, em grande medida, continua a ser uma prática corrente.
Eu disse… “conseguiram submeter grande parte da sociedade”, porque nem todos os cidadãos se resignaram ao modo de vida oferecida pelos personagens da ditadura. Muitos conterrâneos e em diferentes épocas fizeram sentir as suas vozes de protesto diante do que consideravam um atropelo à liberdade das pessoas, ao que a ditadura respondia com feroz repressão, tortura, morte, prisão e exílio. Nessa época, as privações de liberdade por causas políticas sem processo judiciário e por longos períodos, eram moeda corrente, o mesmo que a prática da tortura para arrancar confissões, ferir, humilhar, dobrar e destruir psicologicamente os presos políticos. Desta forma e sistematicamente, a ditadura implantava com brutalidade sobre os grupos de oposição, todo o seu sistema de terror, a fim de consolidar-se no poder.
Desde fevereiro de 1989, após a derrubada da ditadura, através de um golpe militar por grupos de poder do seu mesmo ambiente, começam a ouvir-se de forma pública, denúncias de todos os tipos de violações aos direitos humanos, desaparecimentos, mortes sob tortura, exílio entre outros.
A primeira denúncia criminal apresentada foi a do meu esposo Mário Raúl Schaerer Prono, no dia 30 de março de 1989. Jovem docente de 23 anos que tinha acabado de terminar seus estudos de pedagogia na Universidade Católica de Assunção. Ele, como muitos outros lutadores, não conseguiu viver de costas para a cruel realidade de injustiças e corrupção em que vivia o seu povo.
INVASÃO DA CASA
Nossa casa foi invadida em horas da madrugada por um grupo de civis armados que, a gritos e atirando, diziam ser policiais e nos mandavam a que abríssemos a porta. Três pessoas nos encontrávamos dormindo na casa: Mário, meu esposo; João Carlos da Costa, companheiro que estava hospedado desde alguns dias, e eu. Os tiros provinham de diferentes janelas que possuía a habitação.
Quando João Carlos tentou fugir pelos fundos foi mortalmente ferido, voltando para o interior da casa. Aproximei-me dele com a pretensão de prestar ajuda, mas já só sons guturais emitia. Nesse momento, Mário pega minha mão dizendo: “já não podemos fazer nada por ele, corre o máximo que puder”. Corremos pelo quintal tentando sair para a rua. A polícia disparava para matar.
Mário foi atingido por um projétil no peito do pé direito e eu caí no fundo de um poço de lixo que tínhamos no quintal… Até hoje eu me pergunto como consegui sair? Mário tinha pulado bem a cerca de arame que dividia a nossa propriedade com a do vizinho. O que lembro é que pulei entre os fios deixando entre eles pedaços de couro cabeludo, vestido e pele da barriga. Eu tinha uma gravidez de sete meses.
Conseguimos chegar à casa das freiras canadenses, distante 400 metros da nossa. Éramos professores das cátedras de orientação cristã do Colégio São Cristóvão, administrado por esta congregação. Fomos atendidos pelas freiras, que nos acomodaram no andar superior da residência. A Mário lavaram a ferida do pé e lhe colocaram uma gaze.
Depois de umas três horas de discussão sobre o que fazer com a gente, decidiram nos entregar à polícia. Vimos sair o carro do Pai Raimundo Roy, quem depois de retornar informava a Mário que nos tinha entregue à polícia e que esta se comprometia a respeitar as nossas vidas.
Aproximadamente às 7 horas da manhã uma patrulha veio nos buscar. Fomos enviados ao Departamento de Investigações da Polícia (polícia política) onde fomos recebidos a golpes e patadas.
Mário foi morto no dia 6 de abril de 1976, depois de cruéis sessões de tortura de quase 24 horas. Seu cadáver foi entregue aos familiares com sinais evidentes de ter recebido todos os tipos de tortura, com golpes e hematomas por todo o corpo. Ao redor da testa tinha traços de um torniquete com dois buracos a cada lado da têmpora, todas as unhas levantadas, os testículos carbonizados, as pernas com marcas deixadas pelo bastão elétrico, além de uma ferida na parte de trás da cabeça. A Polícia não permitiu velório nem acompanhamento e deu ordem de enterro imediato.
Estavam com raiva dele porque não conseguiram lhe arrancar um único nome. A polícia, através do método de tortura, procurou quebrar sua vítima e expô-la a seus camaradas de luta e demais opositores ao governo de Stroessner.
CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Somente depois de três meses de seu assassinato e uma vez que meu filho Manuel nasceu, me contam o acontecido. Permaneço no campo de concentração de Emboscada até 9 de novembro de 1977, sem nunca ter passado por qualquer processo judicial (1 ano e 7 meses!).
Durante 13 anos este crime contra meu esposo ficou na impunidade, já que na época da ditadura era impossível processar e, pior ainda, pretender prender os responsáveis, já que eram eles quem detinham o poder e não existia a mínima possibilidade de obter justiça. Não se podia sequer pensar em considerações legais porque na realidade não havia processos. Os presos eram mantidos na prisão por longos anos, desaparecidos ou mortos com total impunidade. O poder judicial foi absolutamente administrado pelo partido do governo e especialmente pelo conluio do poder. É por isso que a queixa não foi apresentada naquele momento.
Quando da queda da ditadura, em 3 de fevereiro de 1989, nos reunimos, os ex-prisioneiros políticos, e decidimos apresentar denúncias criminais que permitissem pôr na cadeia os assassinos de inúmeros compatriotas. No dia 30 de março, assumi o processo do meu marido. A denúncia era dirigida contra Stroessner, ex-presidente, da República; Sabino Augusto Montanaro, ex-ministro do interior; Pastor Milciades coronel, ex-chefe da Polícia de Investigações; Alcebíades Brittes Borges, comandante da Polícia Nacional; Lucillo Benitez, torturador; Camilo Almada Morel, torturador; e João Martinez, torturador.
Não se deu sequência no caso dos dois primeiros, por se encontrarem fora do país, mas contra os cinco restantes.
FATOS RELEVANTES DA DISPUTA
Este é um caso particularmente irrefutável, já que conta com provas suficientes para demonstrar o que aconteceu:
• Tínhamos o corpo do crime.
• Contávamos com provas testemunhais como as declarações de religiosos, companheiros de prisão, familiares que receberam o corpo e do policial que entregou Mário Schaerer vivo nas dependências do Departamento de Investigações.
• Com os testemunhos de testemunhas presenciais, conseguiu-se reconstruir passo a passo os últimos momentos de vida de Mário Schaerer.
• Contávamos com provas periciais como a autópsia do corpo da vítima, que sustentava em todas as suas partes o relato dos fatos fornecidos pela denúncia, onde se descreveram e depois se constataram estes fatos.
• O corpo mantinha a pele intacta sobre os ossos. Isso permitiu verificar que a morte não foi produzida por ferida de arma branca, de fogo ou por lesão óssea. A autópsia descrevia uma ferida superficial cutânea linear a nível do dorso do pé direito revestida com uma gaze não ensanguentada, como o descrito pela reclamação. As testemunhas que presenciaram essa autópsia descreveram a roupa com a que foi enterrado e que correspondia com a descrita no texto da denúncia.
Quando os canais de televisão fizeram uma pergunta a um dos médicos forenses, este apontou que, com base no que foi encontrado, a morte de Mario Schaerer teve que ter sido lenta e dolorosa e fez a comparação com o calvário da morte de Jesus.
Com todas essas provas reunidas, no dia 21 de maio de 1992 um jovem juiz de primeira instância, Luis Maria Benitez Riera, condenava os responsáveis pelo assassinato. (25 anos) com a pena máxima que prevê o nosso Código Penal. Isto representou um marco na nossa história pátria e abriu um precedente histórico na América Latina.
A decisão foi apelada, mas em 1996 a segunda instância confirmou a sentença de primeira instância. Para então, já conseguimos contar com os “Arquivos do Terror” (arquivos secretos da polícia), onde apresentamos como prova a ficha de ingresso de Mario ao Departamento de Polícia com a última foto que haviam tirado, suas digitais e sua assinatura. Com isto caía por terra a mentira de seus torturadores de que Mário havia morrido em um confronto com a polícia e de que nunca tinha estado em dependências policiais.
No dia 7 de maio de 1999, dez anos após a apresentação da denúncia, é obtida uma sentença final. O Supremo Tribunal de Justiça confirma o que havia sido determinado nas primeira e segunda instâncias: uma pena de 25 anos de prisão para os réus.
CRIME DE LESA-HUMANIDADE
A conquista mais significativa desta disputa é que a condenação foi qualificada como crime de lesa-humanidade, deixando de lado a tese da obediência devida. Além disso, estabeleceu um precedente histórico em nosso país e na América Latina na luta contra a impunidade, por ter sido a primeira sentença condenatória de homicídio por tortura a um preso político cometido por autoridades públicas em dependências policiais.
A denúncia também representou para a família e para a sociedade paraguaia uma contribuição por um NUNCA MAIS CONTRA A INTOLERÂNCIA, uma prevenção e defesa da integridade das novas gerações, para que ninguém ou aqueles que torturaram tenham que passar por esse tipo de experiência.
Este caso vai além dos limites de uma reclamação particular ao motivar e dar participação ativa a setores democráticos da sociedade civil com mobilizações populares, marchas, comícios e inauguração de placas em praça pública. O envolvimento de organizações de direitos humanos que ajudaram a difundir o caso, a igreja que nos acompanhou celebrando missas com a participação ativa de personalidades como Monsenhor Rolón, arcebispo emérito de Assunção; Monsenhor Medina, Monsenhor Lugo e sacerdotes de luta reconhecida.
Essa denúncia representa uma contribuição e um exemplo de setores democráticos da sociedade paraguaia na luta contra a impunidade, pela vigência da verdade e da justiça. Ao mesmo tempo, demonstra a força que os cidadãos podem ter quando estão cientes de seus direitos, quando os reivindicam e exigem o cumprimento de suas autoridades.
O processo da disputa também mostrou que no Paraguai, como em outros países, para alcançar justiça é preciso estabelecer alianças com setores democráticos a nível nacional e internacional, a fim de que se dê continuidade, se exijam processos justos e se aplique a lei sem discriminação.
Desde o primeiro momento o processo teve que ser acompanhado de forma direta e permanente, sem deixar a responsabilidade do assumido em mãos somente dos advogados contratados para o caso. Isso permitiu entender as regras de jogo e estabelecer as estratégias de ação. A contínua avaliação dos resultados dessas ações serviu para corrigir rumos e estabelecer novas estratégias para alcançar o sucesso dos resultados esperados. Sem este acompanhamento e persistente empurrão, dificilmente se haveria obtido o sucesso do resultado.
O tempo que levou o processo demonstra a lentidão que ainda opera o poder judiciário em nosso país. O processo significou uma dura e desgastante luta na busca por justiça, por cidadãos que se viram afetados ou feridos nos seus direitos, desnudando o difícil acesso a ela. Estes fatos nos levarão a reclamar com urgência reformas necessárias para o poder judiciário, a fim de que todos os paraguaios e paraguaias possamos contar com uma justiça confiável e de rápido acesso.
Finalmente, hoje o caso Schaerer aparece no Volume II das “Sentenças Institucionais” da Suprema Corte da República do Paraguai. Por último, quero dizer que se quisermos caminhar em direção a uma sociedade diferente, não pode se dar sobre o perdão e esquecimento, porque a IMPUNIDADE está gerando e sustentando atitudes intolerantes, autoritárias e corruptas.
Não devemos permitir que a história se repita mais uma vez. É o momento de dizer não mais à impunidade e exigir das autoridades encarregadas de transmitir justiça uma investigação profunda dos fatos e que caiam com todo o rigor da lei sobre os responsáveis pelos crimes que enlutaram esta nobre nação.
Hoje lembramos com dor e orgulho aos que já não estão…
Nos alimentamos do belo legado que com o seu exemplo nos deixaram e com a MEMÓRIA fortalecemos nossa esperança e ratificamos o compromisso histórico e inevitável que nos cabe, o de seguir construindo JUNTOS, o país solidário e com justiça social com o que eles sonharam e pelo que foram capazes de entregar suas vidas.
Devemos entender definitivamente, que:
• Os espaços não se oferecem, se conquistam e se constroem no dia a dia;
• E que da atitude com que assumamos o hoje vai depender o amanhã e o país que deixaremos aos nossos filhos.