A nota da defesa de Lula, sobre sua condenação por receber propina na forma de obras no sítio de Atibaia, contém uma contradição política insanável – que, quase certamente, seu advogado não percebeu, e a cúpula do PT fingiu não perceber, o que é bastante próximo do cinismo.
Diz o advogado de Lula que faltou um “ato de ofício” para provar que Lula é corrupto – ou seja, faltou uma ação assinada por Lula em benefício da Odebrecht ou da OAS para provar que ele recebeu a propina.
Por isso, a condenação, pela juíza Hardt, a 12 anos e 11 meses de cadeia, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, foi injusta.
Transcreveremos, literalmente, o que escreveu o advogado de Lula – e foi imediatamente repercutido nos blogs petistas e no site do PT:
“A sentença [da juíza Gabriela Hardt]segue a mesma linha da sentença proferida pelo ex-juiz Sérgio Moro, que condenou Lula sem ele ter praticado qualquer ato de ofício vinculado ao recebimento de vantagens indevidas, vale dizer, sem ter praticado o crime de corrupção que lhe foi imputado” (grifos nossos).
Portanto, sem “ato de ofício” não há corrupção, dizem os defensores de Lula. Ou, pelo menos, não é possível provar que um corrupto é corrupto sem um “ato de ofício”, logo, não é possível condená-lo.
Na sentença de Lula, a juíza Hardt fez uma digressão teórica sobre o assunto, mostrando que a lei do Brasil não exige “ato de ofício” algum. O que a lei exige é que existam provas de que o réu recebeu alguma vantagem, ou aceitou alguma promessa de vantagem, para usar seu cargo em prol dos corruptores.
Porém, esqueçamos isso, por enquanto.
Finalmente, depois da nota da defesa de Lula, sabemos qual é a prova final de que Lula é inocente: a falta de um “ato de ofício” em favor da Odebrecht ou da OAS.
Mas… para quem a Odebrecht e a OAS fizeram as obras no sítio?
Por que o custo dessas obras não foi cobrado nem de Lula, nem de ninguém?
Teriam a Odebrecht e a OAS se transformado em entidades caritativas para ex-presidentes?
Mas, se isso tivesse acontecido, por que elas só fizeram obras no sítio em que um determinado ex-presidente se aboletara?
E as notas fiscais, os recibos, a cozinha?
E nem falemos nos depoimentos, nem mesmo o do próprio Lula, fartamente citado pela juíza – são todos mentirosos, é claro.
Ora, leitor, o que interessa é que falta um “ato de ofício”.
E, se Lula não “praticou” um ato de ofício, isso quer dizer que ele não “praticou” o crime de corrupção.
É algo um pouco parecido com a Operação Uruguai, com a qual Collor queria explicar a sua vida faustosa, quando presidente da República, só que, ao contrário: na Operação Uruguai, todos os documentos estavam em ordem. O único problema era que não correspondiam a qualquer realidade. Eram, todos, inventados.
Agora, no “ato de ofício” reivindicado por Lula, o que está faltando é um documento. Sem ele, diz a defesa, Lula é inocente. Que a realidade – inclusive provas documentais e depoimentos – mostre que ele não é inocente, não tem a menor importância.
Por falar em Collor, existe gente com memória curta – e gente que acha os outros com memória curta.
ESCÂNDALO
O tempo passa e a vida corre.
Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) absolveu Collor, em dezembro de 1994, com a justificativa, aceita por cinco ministros de então, de que “não havia ato de ofício” que provasse a sua corrupção, esse resultado do julgamento foi recebido pelo país como um escândalo.
Na época, há 25 anos, tanto nós, quanto o PT, quanto Lula, quanto todo mundo, protestamos.
E não apenas porque era evidente a culpa do réu. Aquilo que é evidente, muitas vezes, não é suficiente para condenar, quando faltam provas.
Porém, na denúncia da Procuradoria Geral da República ao STF, havia, pelo menos, três provas da corrupção de Collor, uma delas irretorquível: um pedido de propina para a Mercedes Benz, até mesmo com uma gravação.
Não havia dúvida sobre isso, mas os ministros do STF que absolveram Collor – Ilmar Galvão, relator do processo, Moreira Alves, Sydney Sanchez, Octávio Gallotti e Celso de Mello – não levaram em consideração essa prova, pois exigiam um “ato de ofício” do réu, enquanto presidente da República, em favor da Mercedes Benz ou outros, para que houvesse condenação.
Na época, isso foi contestado pelos três ministros que votaram pela condenação de Collor.
Um desses ministros, aliás, proferiu um voto brilhante, demonstrando a total inanidade jurídica – e até mesmo lógica – da exigência de um “ato de ofício” para condenar, por corrupção, alguém que exercera a Presidência da República.
O nome desse ministro era (e ainda é) José Paulo Sepúlveda Pertence.
Até julho passado, Sepúlveda Pertence era advogado de Lula (v. Afronta do PT a juízes faz Sepúlveda desistir de advogar para Lula).
VANTAGEM
O que disse Sepúlveda Pertence, em 1994, sobre a suposta necessidade de um “ato de ofício” para condenar um presidente corrupto?
Essa exigência, disse o ministro, era “fruto remoto do insistente complexo colonial, que às vezes ainda assalta os nossos melhores juristas e os leva a começarem a resposta a um problema de direito positivo brasileiro, não pela análise da lei positiva brasileira, mas da doutrina estrangeira”.
Numa intervenção bastante erudita, Sepúlveda demonstrou que o “ato de ofício” era “parte do transplante de comentários adequados à lei penal italiana e à grande maioria das legislações penais estrangeiras, mas inadequadas à lei brasileira”.
O ministro, então, transcreveu o artigo 317 do Código Penal, com sua definição de “corrupção passiva”:
“Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” (grifos nossos).
Na lei brasileira nem mesmo é necessário que o corrupto esteja no cargo durante o crime – o que torna impossível, nesse caso, um “ato de ofício” de sua autoria – para que seja condenado.
Esse, aliás, é, exatamente, o caso de Lula, após sair da Presidência.
Na lei brasileira, o corrupto nem mesmo precisa auferir uma vantagem. É suficiente “aceitar promessa de tal vantagem”, para que possa ser condenado.
Nas palavras de Sepúlveda Pertence:
“… o Código brasileiro (…) não exige que a contraprestação do funcionário à vantagem cogitada seja um ato de ofício predeterminado, mas, somente, que haja uma relação genética, uma relação de causa e efeito entre a função do agente e o ato de corrupção visado, auferido ou prometido: ainda que não haja originariamente, no momento da oferta, do recebimento ou da solicitação, conexão com um ato específico, com um ato determinado a praticar” (grifo nosso).
Este é, precisamente, o caso das obras no sítio de Atibaia.
FUNÇÃO
Ainda mais interessante é a abordagem que Sepúlveda Pertence faz da corrupção nos altos escalões, sobretudo quando o corrupto é o presidente da República:
“… é óbvio que no âmbito do funcionário subalterno, o que se compra, o que se pretende comprar, o que se oferece é um ato específico.
“Mas, o mesmo não ocorre, quando se trata de altos dignitários, sobretudo na área fértil de oportunidades de corrupção, que é a da intervenção do Estado no domínio econômico: Presidente da República – estou falando só em tese – Presidente da República não celebra contratos pelo BNDES, nem pela Caixa Econômica; o Presidente da República não põe em pauta projetos da SUDENE, nem os retira; o Presidente da República não dá licença de importação…”
Depois de passar em revista as leis vigentes no Brasil sobre o assunto, desde as Ordenações Filipinas (1595), Sepúlveda Pertence enfatizou:
“Ao invés de aludir (…) a que a vantagem indevida tivesse por objeto a ‘prática de ato de ofício’ ou expressão semelhante, só reclama o Código brasileiro que ela seja solicitada, recebida ou prometida, em razão da função” (grifo no original).
Essa última questão é decisiva: a punição, na lei brasileira, é pelo uso corrupto da função pública – e não por um “ato de ofício” determinado:
“O art. 317 [do Código Penal], para usar da expressão de [Nelson] Hungria, pune a venalidade em torno da função pública; a dádiva ou a promessa da vantagem são feitas na expectativa de uma conduta própria do ocupante da função pública, que pode ser, e frequentemente será, um ato de oficio determinado; mas não necessariamente esse ato de oficio determinado, de modo a que a incriminação alcance também a vantagem solicitada ou recebida com vistas a provocar uma conduta ativa ou omissiva do funcionário, desde que na esfera de um poder de fato derivado da sua função e, por isso, em razão dela” (grifos nossos).
Lula, até a metade do ano passado, tinha, realmente, um excelente advogado.
Preferiu, no entanto, ficar com o genro de seu compadre, Roberto Teixeira – aliás, condenado, também, no processo das obras do sítio de Atibaia.
AGRAVANTE
Os dois outros membros do STF que, em 1994, votaram pela condenação de Collor foram os ministros Néri da Silveira e Carlos Velloso.
O primeiro, sobre essa questão, foi sucinto:
“… no ‘caput’ do art. 317 do CP, não há previsão da efetiva prática de ato de ofício (…). O que se exige, em face da lei em vigor, (…) é que a solicitação ou recebimento da vantagem indevida ou aceitação de promessa de tal vantagem ocorra ‘em razão da função pública’, ‘ainda que fora da função ou antes de assumi-la’” (cf. STF, voto do ministro Néri da Silveira, AP 307, pp. 2749-2750).
O segundo frisou que o próprio artigo 317 do Código Penal, em seu primeiro parágrafo, aumenta a pena em um terço, se o funcionário público praticar um ato de ofício (ou deixar de praticá-lo ou retardá-lo) em função de vantagem material ou promessa de vantagem material.
Logo, o “ato de ofício” é uma agravante, não uma condição para a caracterização do crime de corrupção passiva.
AFINIDADES REVELADAS
Na época da absolvição de Collor, em 1994, classificamos a posição da maioria do STF como “um estupro jurídico”.
E era.
A interpretação que exigia “ato de ofício”, era um recurso político. Como frequentemente ocorre nesses casos, o objetivo político redundou em uma interpretação jurídica que contrariava o próprio conteúdo do dispositivo que estava sendo, supostamente, interpretado.
Resta dizer que somente assim seria possível absolver Collor – a outra solução, negar as provas, era por demais violenta, sobretudo em um país que acabara de derrubar, tanto nas ruas quanto no parlamento, o réu que se queria livrar das consequências de seus atos.
É verdade que Collor era suficientemente maluco para também negar as provas. Porém, a discussão no STF foi sobre a validade dessas provas, se elas foram obtidas de acordo com a lei – ou não. Sobre a sua existência, não houve questionamento.
Agora, Lula adotou a defesa de Collor: nega as provas e exige um “ato de ofício”.
Não por acaso, Lula contemplou Collor, entregando a ele o cofre da segunda estatal mais lucrativa do país, a BR Distribuidora – e Collor retribui, pregando a inocência de Lula.
Porém, essa adesão às teses jurídicas colloridas equivale a uma confissão. Talvez seja mais que uma confissão.
Além disso, existe algo mais comprometedor do que ser defendido por Collor?
Quando do impeachment de Collor, Lula declarou:
“Lamentavelmente a ganância, a vontade de roubar, a vontade de praticar corrupção, fez com que o Collor jogasse o sonho de milhões e milhões de brasileiros por terra. Mas de qualquer forma eu acho que foi uma grande lição que o povo brasileiro aprendeu e eu espero que o povo brasileiro, em outras eleições, escolha pessoas que pelo menos eles conheçam o passado político.”
Para Lula, a culpa é sempre do povo – e não dos ladrões que roubam o povo.
Assim, é possível justificar, para si, o seu próprio roubo.
Pensando bem, a contradição política de que falamos no início deste artigo não era tão insanável assim. Tanto Lula quanto Collor acham, realmente, que o normal em política é roubar.
No entanto, há um problema: hoje é muito mais difícil, do que quando Collor foi julgado e absolvido, dizer, perante a Justiça, que se é inocente porque falta um “ato de ofício”.
C.L.