(HP 13-17/11/2015)
Dez anos após a morte do amigo, Teodoro Sampaio, em 1919, escreveu “Recordando Euclides da Cunha”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. Entre o assassinato de Euclides e o artigo de Teodoro, o mundo vivera – e morrera – a I Guerra Mundial. Mas, além dessa hecatombe, houvera a Revolução Russa – a repercussão dos dois acontecimentos históricos aparece, menos de passagem do que parece, no final do artigo.
É este texto, por várias razões extraordinário, que publicaremos, nesta e na próxima edição.
Teodoro Sampaio era colega de profissão de Euclides da Cunha – os dois estavam entre os maiores engenheiros brasileiros da época.
Em São Paulo, onde foi diretor de Saneamento e um dos fundadores da Escola Politécnica – cujo projeto inicial Euclides demolira, o que lhe valeu, para sempre, sua preterição, como candidato a professor, pelo diretor da escola e autor do projeto demolido, Paula Souza – o baiano Teodoro conheceu Euclides, que já era, então, engenheiro civil, após sair do Exército.
Vale a pena, rapidamente, rememorar a vida deste amigo de Euclides – qualificativo que em nada diminui a contribuição própria de Teodoro Sampaio; não por acaso, Capistrano de Abreu, numa famosa carta, classifica Teodoro como “mestre” de Euclides. Talvez tivesse razão.
Nascido em Santo Amaro da Purificação, Teodoro era o único filho livre da escrava Domingas da Paixão do Carmo e de um padre – algo não raro no Império, como mostra a vida de José do Patrocínio.
Seus irmãos – Martinho, Ezequiel e Matias – eram escravos. Só deixaram essa condição quando Teodoro, depois de formado em engenharia, comprou suas cartas de alforria, o que conseguiu ao longo de anos, desde a libertação de sua mãe e de Martinho (1878) até a de Ezequiel (1882) e Matias (1884).
Teodoro Sampaio foi não somente um engenheiro notável, mas um dos mais eminentes brasileiros da sua geração, com trabalhos em geografia, etnografia e história, para citarmos apenas os campos mais genéricos do conhecimento, aos quais ele aportou suas contribuições.
Quanto a Euclides da Cunha, a maioria dos mais velhos não o desconhece – pelo menos o nome.
Entretanto, não é seguro que os mais jovens, com a derrocada a que foi submetido o ensino nos últimos tempos, o conheça. Portanto, achamos necessárias algumas palavras.
Há um trecho da obra máxima de Euclides, “Os Sertões”, que é especialmente belo:
“Estamos destinados à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.
“Estamos condenados à civilização.
“Ou progredimos ou desaparecemos.”
Neste trecho, Euclides da Cunha sintetiza toda a trajetória de nosso povo – ou, pelo menos, toda a sua visão dessa trajetória.
As consequências políticas permanecem, também, claras. Mas algo vem agora confirmá-lo.
Recentemente, apareceu na imprensa uma carta de Euclides ao historiador e diplomata Oliveira Lima, escrita no ano de 1906.
Nesse ano, sob influência do embaixador do Brasil em Washington, Joaquim Nabuco – que transitara da fé na monarquia para a fé no alinhamento mais do que “automático” a Washington – realizou-se no Rio de Janeiro a III Conferência Internacional Americana, com a presença de Elihu Root, secretário de Estado do governo Theodore Roosevelt.
Root era um daqueles belicistas a quem, de tempos em tempos, é conferido o Nobel da Paz. No seu caso, em 1912. O próprio Theodore Roosevelt, o homem da política do “big stick” (grande porrete), comandante de uma unidade na invasão de Cuba, recebeu um, aliás no mesmo ano em que Euclides escreveu a Oliveira Lima.
Apesar da oposição argentina ao alinhamento com os EUA, a III Conferência Internacional Americana foi um festival de capachismo – por parte da maioria dos delegados e da imprensa. Entre incensamentos à Doutrina Monroe (“A América para os americanos”), Nabuco, eleito presidente do conclave, não se satisfez com seu desempenho na Conferência: depois dela, adiou por um tempo seu retorno a Washington, para proferir uma série de palestras pró-EUA (cf. Tereza Maria Spyer Dulci, “As Conferências Pan-Americanas: identidades, união aduaneira e arbitragem (1889 a 1928)”, dissertação de mestrado, FFLCH/USP, 2008, p. 30).
No meio dessa bajulação oficial, Euclides escreveu a Oliveira Lima:
“Essa aliança com os E. Unidos (?) não me impressiona: é artificial; dura o que duram os banquetes. Não creio – felizmente – em golpes políticos que liguem a nossa fraqueza à energia do colosso. Havemos de ir ao fastígio onde ele está, pelo nosso pé – e só assim será fecunda uma estreita solidariedade. Mas para isto talvez tenhamos de fazer o contrário do que estamos fazendo.
(…)
“Quero tudo nas esplêndidas conquistas sociais do Yankee… mas afeiçoadas à nossa maneira, à nossa índole – para nos melhorar, e não para nos levar, de repente, pela civilização afora, como um caipira mal vestido numa recepção em Washington!”
No momento atual, em que a debilidade – e mesmo a negação – das raízes nacionais estão levando o país, se esse processo não for interrompido, à catástrofe, a leitura de Euclides e Teodoro é iluminadora.
Como, depois de lê-los, pode-se negar o caráter antinacional e antipopular – portanto, antidemocrático – do atual desgoverno?
Somente por mesquinho interesse – tão antinacional e antipopular quanto antidemocrático – ou por burrice. Coisas que, geralmente, estão estreitamente associadas.
C.L
TEODORO SAMPAIO
Euclides da Cunha chegara, havia pouco, do Rio de Janeiro, saído das fileiras do Exército, quando o conheci em S. Paulo. Casara-se e tinha vindo fazer vida nova, laboriosa, na terra dos Andradas. Uma vulgaríssima transação imposta pela necessidade de se instalar, nos aproximou.
Foi isto ali por 1892, se bem me recordo; mas Euclides, nomeado engenheiro das obras públicas do Estado, na sua faina de construir pontes e estradas e a viajar pelo interior, raro então me aparecia.
De volta dos seus trabalhos de campo, trazia um ar de tédio a trair-lhe uma repugnância invencível. Não que a vida ativa de engenheiro lhe pesasse; mas porque não encontrava na função, como exercida, a superior elevação, capaz de o libertar da pasmaceira de uma técnica que lhe parecia duvidosa.
Maior ainda era o seu nojo pelas cousas públicas, quando consideradas no terreno da política indígena. Não as queria comentadas por mais em foco que se lhe deparassem elas na tela da vida nacional. A república, que ele sonhara e pela qual até sacrifícios fizera, não a reconhecia ele nesse arremedo de instituição política, que então era o governo do Brasil, tão ao avesso dos seus ideais de mocidade ardorosa, intransigente. Abaixava então a vista para não ver a miséria a que chegara a ruína dos seus ideais desvanecidos.
O seu positivismo ou materialismo, já um tanto esmaecido, não colidia com o meu espiritualismo, por ele polidamente respeitado. Havia tanta cousa em que conversar que não fosse política ou filosofia em que militávamos em campos opostos! Tratávamos então dos livros novos, dos que faziam época e logravam interessar-nos, a ambos. Euclides lia, porém, com muito particular atenção a Herculano e a Camilo Castelo Branco nas suas obras de polêmica literária. Vi-o muitas vezes a folhear os escritos de ambos, mas principalmente os escritos de combate, onde a paixão não raro arrebata, e a crítica, posto que sincera, chega a ser cruel e terrível. O vocabulário, aí mais espontâneo e enérgico, seduzia sobremaneira ao escritor in fieri dada a sua predileção acentuada pelo frasear enérgico, expressivo, quente, mais de acordo com a sua maneira de sentir.
Mas o Euclides, na sua vida de engenheiro errante pelas regiões do Oeste paulista, me desaparecia por longo tempo. Era uma raridade quando me surgia de improviso em casa a contar-me a sua odisseia e a maldizer o seu tédio que já se prolongava por muito tempo.
Uma vez tornou-me mais depressa do interior, e vinha mais animado. Era outro e tinha como que um vago pressentimento de que o seu destino ia mudar. Aquela pasmaceira de tantos anos ia ter o seu fim.
Foi quando se ateou a guerra de Canudos no íntimo dos sertões baianos, em 1896, após o insucesso de duas sucessivas expedições mandadas contra os jagunços fanatizados de Antônio Conselheiro.
Crescera no país a fama dos atrevidos sertanejos, forçando a retirada de forças regulares federais ao mando do Coronel Febrônio de Brito, há pouco falecido.
A fama tinha dado proporções exageradas ao sucesso; mas subira de ponto a estupefação popular quando se espalhou por todo o país a notícia do desastre completo da expedição Moreira César, a terceira que a jagunçada tinha repelido e esta agora com a perda de vida do próprio chefe da expedição e de boa parte de sua oficialidade.
Grandíssimo foi o abalo na opinião pública nacional. Os republicanos julgavam-se mais uma vez traídos pelo adesismo monárquico, vítimas eles da sua boa-fé e de sua moderação para com os adeptos do decaído regime. Era o sebastianismo impenitente, diziam, que armava essa traição de Canudos, onde, se supunha, estavam refugiados ex-marinheiros da revolta do Almirante Custódio José de Melo, capitaneados por hábeis oficiais europeus contratados. Era a monarquia que levantava o colo, no sertão, apunhalando traiçoeiramente, pelas costas, a república.
O Visconde de Ouro Preto, se então escapou com vida à fúria da multidão ignara e incontida, viu entretanto tombar a seu lado, vítima de celerados energúmenos, o seu amigo, o Coronel Gentil de Castro, apontado como dos principais responsáveis pela revolta sertaneja.
Castro tombara inocente, como inocente estava o monarquismo acusado. Mas a turba dos exaltados queria culpados em que cevar o seu desejo de sangue, e o sebastianismo impenitente, só ele, é que lho podia fornecer.
Canudos, diziam, é por certo uma maquinação de monarquistas; é a restauração que faz volta pelas caatingas e cai agora de improviso sobre a república.
Euclides chegou um instante a acreditar nisto e ainda nutria dúvidas muito sérias quando me veio anunciar que partia e trazer-me as suas despedidas. E partiu como correspondente de O Estado de S. Paulo, a seguir de perto a coluna expedicionária do comando do General Artur Oscar.
Levou-me algumas notas das que eu lhe ofereci sobre as terras do sertão que eu viajara antes dele em 1878. Pediu-me cópia de um meu mapa ainda inédito, na parte referente a Canudos e vale superior do Vaza-Barris, trecho de sertão ainda muito desconhecido, e eu lha forneci como forneci ao governo de S. Paulo que dela tirou mais de um exemplar, remetido para o Rio, ao Ministério da Guerra.
Quando, porém, por entre fogo e sangue aquele lúgubre episódio terminou; vencida, mas não rendida, a pertinácia do jagunço, fanatizado, e Euclides, convencido e também desiludido, tornou ao seio da família, a alma do patriota agora é que se revoltava, o coração confrangido, o ânimo a explodir contra a vilania de quem não soube vencer sem manchar; contra a miopia daqueles que não souberam ver, para além do jagunço fanático, a alma do brasileiro do sertão capaz dos mais sublimes rasgos de heroísmo.
Euclides resolveu então escrever as suas impressões daquela tragédia lúgubre; era um como que protesto íntimo contra aquele criminoso extermínio que nem a mulheres e crianças tinha poupado. Os Sertões, que ele então escreveu, teve esse fundamento de protesto do seu espírito de patriota revoltado.
Conta-nos contristado os episódios horríveis da caatinga conflagrada. Repugnava-lhe aquela reação da legalidade que não lhe pareceu na altura da nossa força militar, como não agiu consoante à cultura que, como um povo civilizado e cristão, representávamos. Não acusava a indivíduos; reprovava, porém, a ação descabida, errônea, incontida dos responsáveis. Não escreveu para acusar, mas para reprovar. Daí o seu emudecer diante das misérias de que foi testemunha; daí o não carregar as cores, antes até esse esmaecer de tintas no quadro da realidade amarga, onde se lhe percebe, entre o silêncio por compostura e o estrugir num protesto de indignação, a tortura de sua alma de patriota.
Foi nesse estado d’alma que escreveu Os Sertões. O escritor másculo, que se ia ele revelar, vinha pleno das mais desencontradas impressões. sentia com forças para fixá-las na tela de uma obra imperecível. Parecia-lhe isso uma reparação, uma dívida a pagar à memória As cenas daquelas terras, devastadas pelas secas periódicas e pela cólera insana dos homens, revelavam-se-lhe de um imprevisto inimaginável e ele como que se daquela gente obscura que soube morrer por um ideal, fosse embora um ideal obscuro também, mas gente máscula que à rendição humilhante preferiu a morte, ainda que fosse a morte num braseiro ao fundo de um fosso, com tão maior heroísmo quanto o não fora outrora o dos defensores da abrasada Sagunto.
Euclides começou a escrever.
A princípio trazia-me aos domingos os primeiros capítulos, os referentes à natureza física dos sertões, geologia, aspecto, relevo, e mos lia naquela sua caligrafia minúscula que era como a minha também. A leitura fazia-se pausada a meu pedido, porque tinha eu a sensação de com ela estar a trilhar vereda nova, cheia de novidades. Não havia, porém, no novel escritor o abuso da adjetivação, tão comum aos novos. A frase saía-lhe perfeita, moldando-lhe com exatidão e nitidez as ideias. Uma propensão contudo se lhe notava e era a do emprego de termos desusados a que eu, a gracejar, chamava calhaus no meio de uma corrente harmoniosa – que de resto era a sua boa linguagem.
“Por velho ou esquecido”, contestava-me, “não perdeu para mim a força de expressão que eu procuro no vocábulo. Que me importa, a mim, que o leitor estaque na leitura corrente, se a impressão que lhe dou com esse termo esquecido é a mais verdadeira, a mais nítida, e, em verdade, a única que eu lhe queria dar?!”
A nitidez da expressão era o seu cunho, o seu empenho maior. Catava termos expressivos até na gíria popular; saboreava o frasear do sertanejo, por achá-lo mais espontâneo e verdadeiro; ávido colhia-os todos, como a diamantes na cata do garimpeiro.
Conversamos uma vez a propósito do estouro da boiada e dos costumes do vaqueiro da caatinga, quando me ocorreu citar-lhe um bilhete de sertanejo cujo teor, como se vai ver, me deram por autêntico de um vaqueiro dos Inhamuns:
“Ilustríssimo Senhor meu amo.
“Participo-lhe que a sua boiada meteu-se em despotismo. Um boi no deixar o curral entregou o couro às varas. O resto… o resto trovejou naquele mundão.”
“Falar assim é que é falar com a natureza”, atalhou-me encantado o Euclides. “Não conheço deveras povo, como o nosso do sertão, que por palavras dê mais realce ao seu sentir, tenha mais energia no dizer.”
Uma boiada que “se meteu em despotismo”, comentávamos então, é em verdade a revolta, a convulsão da bovina caterva, mugindo, arremetendo, arrombando porteiras e levando tudo adiante de si. “Meter-se em despotismo” quer dizer tudo isso numa frase sintética muito verdadeira ao sabor da gente simples do sertão. “Um boi que entrega o couro às varas” é a vítima do incontido tropel sobre cujo cadáver passou a avalanche de manada e de que o provido boiadeiro tirou o couro, espichando-o por meio de varas a secar no oitão da casa da fazenda. “Trovejar naquele mundão…” exprime de modo incomparável o que é o horizonte da caatinga quando, como um furacão, o sacode o arranco da boiada por entre nuvens de pó. O chão treme. O ruído da ramalhada partida e levada a peitos estruge como um trovão ao longe, numa tempestade em que aos euros se substituem bisões furibundos como que tangidos por demônios invisíveis.
Euclides repetia essas frases como que a pesar-lhes as imagens, a haurir-lhes na onomatopéia significativa, a sensação real que lhe produziam.
Tinha eu viajado os sertões muito antes de que Euclides os conhecesse, e daí o assunto predileto das nossas palestras domingueiras, revivendo na memória cenas que ambos contemplamos e que para ele eram tão novas e tão fundamente impressionantes.
Passávamos em revista essas terras adustas do Nordeste Brasileiro que o homem ainda não subjugou e em que a natureza de contínuo vitima o homem, selecionando-o pela energia e resistência que ele opõe às crises periódicas da seca e da fome. Recordávamos a geologia por meio dos estudos de Hartt, de Derby, e neste examinar em que contemplávamos aquelas extensões de terras salgadas, ou com inflorescências salinas, na caatinga como nas margens do S. Francisco, passávamos dos depósitos calcários, da calheira silicosa das várzeas onde dos rios temporários só se vê o sulco profundo e estéril, que as águas abandonaram, ao relevo antiplano das montanhas de quartzito e de xistos cristalinos do divisor das águas; revíamos de memória aquele cenário imenso das planuras sertanejas com os seus cerros isolados, de um pitoresco sem par, perdidos na caatinga como se foram ilhas num mar petrificado; revíamos os tabuleiros onde por léguas não se encontra uma baixada úmida que sirva de refrigério.
Depois falávamos da história desse Nordeste indomado, onde o brasileiro é sempre o mesmo homem, do Piauí pelo Ceará às terras baianas; o mesmo tipo, os mesmos costumes, o mesmo vestir, o mesmo falar, porque a natureza é a mesma no Parnaíba como no Jaguaripe, no Potengi como no S. Francisco. E ele me pedia apontamentos históricos que eu assim, como os possuía, enfeixados em cadernos de notas, de bom grado lhos fornecia, resultando disso, por acaso, esse manuscrito da lavra de nós ambos, que o Instituto hoje possui, isto é, notas distribuídas em capítulos por mim escritas na primeira parte do livro, observações outras da lavra do Euclides, feitas com a mesma letra miudinha que ambos adotávamos para simples anotações.
Ficou assim esse livrinho manuscrito como um testemunho da nossa prisca comunhão de vista, dos tempos em que o escritor másculo ainda ensaiava os seus voos que o ergueram tão alto. Dessa íntima convivência, que aliás o lidar da profissão tão breve interrompeu, nada mais me ficou.
Outro homem na pena que não na ordinária conversação era o Euclides. Raro na palestra se animava. Não era verboso, nem álacre, nem causticante no discretear ordinário. Preferia pensar, refletir, ouvir antes que dizer, o que traía natural propensão mais para colher do que para dispartir as joias do seu espírito.
À mesa o Euclides era um torturado a quem as iguarias faziam mais medo do que as carabinas da jagunçada revolta na caatinga. Comer fosse o que fosse era-lhe um tormento, por mais inocente que lhe parecesse a iguaria e isso notei-lhe sempre, antes como depois da sua visita a Canudos.
Não tinha prazer à mesa, onde se assentava, de ordinário, conviva taciturno e desconfiado e neste estado de espírito tudo lhe servia de escusa aos obséquios e oferecimentos.
“Que é que se há de oferecer ao Euclides?” Era a pergunta da dona da casa toda vez que se aguardava a visita do autor de Os Sertões. E o Euclides, a bem dizer, só se considerava tranquilo à mesa, quando nada via de especial a se lhe oferecer.
Mordicava, não comia, e ainda assim se enchia de receios. Não sei se mais tarde essa inapetência nervosa se lhe dissipou. O que posso dizer é que o autor de Os Sertões, do À margem da História, do Peru Versus Bolívia de tantos outros escritos fulgurantes que o sagraram o mais potente dos escritores, intérpretes da natureza brasílica, era um doente, talvez imaginário, mas de fato um doente.
Mais tarde o notável escritor deixou S. Paulo e eu lá fiquei por mais anos porque os afazeres me obrigavam e os afetos daquele povo progressista me prendiam.
Não nos encontramos mais. Segui-lhe de longe a trajetória que todos conhecemos, parábola fulgente que rápido ascendeu ao ápice e que também rápido declinou, findando nessa morte trágica, que a solenidade presente rememora e as minhas palavras não têm como vos significar a mágoa desoladora.
A alma boa, que ele foi e que tão profundamente sabia sentir, merecia certamente do destino outro desenlace na vida que não esse da bala assassina que, matando-o, tisnou-lhe de suspeição até o próprio lar da família.
Acima de tudo, antes de tudo, Euclides era um sincero patriota. A nossa natureza ninguém a descreveu com mais verdade nem mais brasileira nem mais legitimamente. O gênio do nosso povo ninguém o compreendeu melhor do que ele.
Estamos num período da História, após essa guerra tremenda de sucessos inauditos, maxime memorabile omnium, em que revivesce o espírito das nacionalidades.
Os povos despertam para uma era nova que começa. Agora a reconstrução, um direito novo, uma concepção social nova que já se vem definindo. Seja o nosso despertar na era nova um apelo aos expoentes da genialidade nacional, como o foi o Visconde do Rio Branco, cuja obra memorável o Brasil inteiro hoje celebra.
Lembremo-nos de que as ideias conduzem o mundo e de que fatos nada valem se não encarnam uma grande verdade. Dominem em nós as ideias que Euclides agitou e com elas façamos desta pátria o teatro de uma esplêndida realidade, oficina do trabalho, fecundando-se num largo espírito de solidariedade humana.