Pela Exposição de Motivos apresentada por Paulo Guedes para sua “reforma”, a Previdência Social – o Regime Geral, o INSS, que abrange os empregados em empresas privadas – não tem déficit.
No máximo, o que existe é uma “perspectiva de insustentabilidade no futuro” (cf. Proposta de emenda/Exposição de Motivos, p. 52).
Que futuro?
Ora, o ano 2060, citado há séculos (bem, isso é um modo de dizer) como se fosse o ano do Armagedom.
Portanto, Guedes, na cola de alguns antecessores, está prevendo que a Previdência irá quebrar daqui a 41 anos.
Por isso, é preciso tirar hoje dos trabalhadores o direito de se aposentar.
Pois a proposta de emenda constitucional apresentada quarta-feira na Câmara é isso: uma tentativa de fazer com que todos (isto é, todos os que trabalham) morram antes de se aposentar, para enriquecer mais, mais ainda, aqueles que não trabalham, isto é, os comparsas de Guedes no setor financeiro.
Nem perguntaremos como é que Guedes sabe o que vai acontecer nos próximos 41 anos, pois é notório que esse governo não sabe o que vai acontecer na próxima semana.
Mas não deixa de ser sintomático – além de ser um escândalo – que, na hora de colocar por escrito sua fundamentação para acabar com a previdência pública, Guedes, depois de semanas repetindo a história do déficit, tenha desistido e adotado outro motivo, de resto, completamente absurdo.
Mas, diz Guedes, “o modelo atual das regras atuariais e de acesso a benefícios previdenciários (…) não atenderam aos princípios constitucionais de igualdade e distribuição de renda”.
Guedes, claro, é um paladino da igualdade e da distribuição de renda. Tanto assim que enriqueceu no mercado financeiro, dando golpes na praça. Com isso, distribuiu muita renda para ele mesmo.
Se o Brasil não ficou mais igual, portanto, a culpa é da Previdência…
Logo a Previdência, provavelmente, o maior mecanismo de distribuição de renda que existe neste país, onde ratos financeiros devoram o dinheiro de seu povo.
PRIVILÉGIOS
Bolsonaro, na manhã de quarta-feira, ao entregar na Câmara o seu projeto de desmantelamento da previdência pública, conseguiu elevar a Presidência da República ao papel de office-boy.
Não que tenhamos algo contra a nobre categoria dos office-boys – pelo contrário.
Mas Bolsonaro chegou na Câmara às 9h36min e saiu da Câmara às 9h58min.
Levou 22 minutos para entrar, dizer meia dúzia de palavras que somente mostraram, mais uma vez, sua incapacidade de formular alguma ideia, ouvir uma coleção de mentiras de Paulo Guedes e os pronunciamentos dos presidentes da Câmara e do Senado, entregar o papel ao presidente da Câmara – e sair de lá, acompanhado por Lorenzoni, que, de ministro da Casa Civil, foi rebaixado a mestre de cerimônias de um ato que foi na sala de um dos presidentes do Legislativo.
Qualquer office-boy um pouco articulado faria melhor do que isso.
Quanto ao projeto, trata-se de uma barbaridade.
Ele elimina – ou, melhor, eliminaria, se passasse – qualquer possibilidade de aposentadoria que não seja por idade.
Portanto, instituiria o pé-na-cova como perspectiva para a aposentadoria de quem trabalha – ou, pior, para muitos instituiria a cova antes da aposentadoria.
Estabelecer 60 anos como idade mínima de aposentadoria para os trabalhadores e trabalhadoras rurais – e ainda exigir deles uma contribuição anual de R$ 600 – é algo que faz lembrar “Morte e Vida Severina”, do grande João Cabral de Melo Neto:
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
— Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
Rebaixar a pensão dos idosos que têm renda familiar até ¼ do salário mínimo para R$ 400 – e somente permitir que receba um salário mínimo àqueles que atingirem 70 anos – é um plano para matá-los, assassiná-los de maneira mais barata do que se fazia em Auschwitz ou Treblinka.
Tem toda razão o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), quando classificou tal monstruosidade como “genocídio” (v. Reforma da Previdência “vai beneficiar o capital e provocar um genocídio”, afirma Flávio Dino).
A resposta de Guedes ao governador é característica do caráter dessa malta que está com Bolsonaro no governo: “ele [o trabalhador] pode falar: ‘olha, se não contribuir ou contribuir, aos 65 anos vou ganhar o salário mínimo do mesmo jeito, então eu prefiro não contribuir’. Então, deixa ele receber um pouco menos antes e, se ficar até os 70 anos, ele recebe o salário [mínimo] inteiro”.
Há certas coisas diante das quais as palavras parecem muito insuficientes.
Guedes estava falando de idosos que têm renda familiar per capita inferior a 25% (ou seja, ¼) do salário mínimo.
No Brasil, hoje, são mais de dois milhões os idosos que, nessa situação, recebem um salário mínimo (R$ 998).
Guedes está propondo que somente aqueles que atinjam 70 anos recebam um salário mínimo.
Para os outros, a partir dos 60 anos, R$ 400.
Ele próprio diz, na apresentação do projeto, que se trata de “segurados em condição de miserabilidade”.
Portanto, qual o sentido de rebaixar seus proventos – e somente conceder um salário mínimo aos que atingirem 70 anos?
Matá-los, evidentemente, antes que cheguem aos 70 anos.
Mas Guedes apresenta tal tentativa de assassinato como uma proteção, diante da sanha dos trabalhadores para fraudar a Previdência, pois o trabalhador “pode falar: ‘olha, se não contribuir ou contribuir, aos 65 anos vou ganhar o salário mínimo do mesmo jeito, eu prefiro não contribuir’. Então, deixa ele receber um pouco menos antes e, se ficar até os 70 anos, ele recebe o salário [mínimo] inteiro”.
“Se ficar até os 70 anos?”
Se ficar aonde?
Se ficar vivo, evidentemente.
Por isso, disse Guedes na mesma entrevista, “a reforma da Previdência vem para remover privilégios, reduzir desigualdades e principalmente botar o Brasil para crescer”.
O modo de “reduzir desigualdades” é matar os pobres.
O “privilégio” que Guedes quer combater é aquele dos que envelheceram com 25% (ou menos) do salário mínimo de renda familiar, de receber um salário mínimo.
A rigor, é o privilégio dos pobres poderem viver, que ele quer acabar.
Pode-se ler de frente para trás, e de trás para a frente, a exposição de motivos de Guedes e o seu projeto – não há um só privilégio que seja cortado por ele.
Os privilégios, para ele, são os dos pobres, por disporem de uma previdência pública.
Então, leitor, as palavras não parecem insuficientes diante dessa aberração que Bolsonaro colocou no Ministério da Economia?
Porém, não nos apressemos, leitor.
RASTEIRAS
Não existe aposentadoria por tempo de contribuição no projeto de Guedes/Bolsonaro, mas o trabalhador terá que ter 65 anos – e a trabalhadora, 62 anos – e 20 anos de contribuição para se aposentar.
Mas isso, observe o leitor, “até que seja editada a lei complementar que definirá os critérios e parâmetros para o funcionamento do Regime Geral da Previdência Social” (cf. Proposta de Emenda à Constituição/Exposição de Motivos, p. 56).
Ou seja, até que esse critério seja tirado da Constituição – para que possa ser alterado por lei complementar, para a qual bastaria 50% mais um dos votos no Congresso para aprová-la – ao contrário da Constituição, que, para ser alterada, necessita de 3/5 dos votantes.
Por isso, todas as modificações propostas, apesar de hediondas, são, no que depender de Guedes, Bolsonaro e outros anormais, apenas a antessala do que virá depois que a Previdência sair da Constituição.
Essa, aliás, é a maior infâmia desse projeto: ele remete para “lei complementar” tudo o que hoje é determinado pelos dispositivos da Constituição.
Para que não haja dúvida sobre isso, citaremos, literalmente, a Exposição de Motivos de Guedes:
“Em relação às coberturas do atual RGPS, a proposta mantém as atuais coberturas mínimas, reafirmando-se a necessidade de observância de critérios que preservem o seu equilíbrio financeiro e atuarial, do caráter contributivo e da filiação obrigatória, mas transferindo para lei complementar de iniciativa do Poder Executivo a definição de critérios e parâmetros para o funcionamento do regime, tais como: rol de benefícios e beneficiários, requisitos de elegibilidade para os benefícios, idade mínima, carência, tempo de contribuição, limites mínimos e máximos de valor dos benefícios e do salário de contribuição, regras de cálculo e de reajustamento” (p. 55, grifo nosso).
Portanto, o que a emenda de Guedes e Bolsonaro propõe é tirar da Constituição tudo aquilo que tem importância para o povo.
Logo:
“Enquanto não aprovada a lei complementar que definirá os novos critérios e parâmetros para o funcionamento do RGPS, será exigido dos trabalhadores (homens e mulheres) vinculados a este regime, para efeito de aposentadoria, o cumprimento de 62 anos de idade, para as mulheres, e 65 anos, para os homens, 20 anos de contribuição para ambos os sexos, estando previsto, também, que as idades exigidas na Emenda serão ajustadas quando houver aumento na expectativa de sobrevida da população brasileira aos 65 anos, conforme estabelecido em lei complementar” (idem, p. 56, grifos nossos).
Ou:
“… até a publicação da lei complementar que fixará os novos critérios e parâmetros ao RGPS, em relação ao acúmulo de aposentadorias e pensões que venha a ocorrer após a entrada em vigor da Emenda, a alteração proposta veda a acumulação de mais de uma aposentadoria e de mais de uma pensão deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do RGPS” (idem, p. 58, grifo nosso).
Ou, ainda:
“Não será mais definida a regra de benefícios a serem concedidos pelos RPPS [servidores públicos] no texto permanente da constituição, sendo remetida a uma lei complementar que estabeleça normas gerais de organização e funcionamento dos regimes, bem como de responsabilidade previdenciária, adotando assim as mesmas práticas internacionais, que não estabelecem o regramento previdenciário como matéria exclusivamente constitucional” (idem, p. 60).
CAPITALIZAÇÃO
Continuemos com a emenda:
Os professores (ensino infantil, fundamental e médio), que hoje se aposentam depois de 30 anos (homens) e 25 anos (mulheres) de contribuição, só poderiam se aposentar aos 60 anos de idade – e desde que tenham 30 anos de contribuição.
Relapsos na escola, os bolsonaristas não sabem o que é ficar em pé – ou, mesmo, sentado – diante de uma sala de aula por 40 anos. Quanto a Guedes, que saiu corrido da PUC do Rio e da FGV, deve odiar os professores, exatamente aquilo que não conseguiu ser.
Porém, resumamos um pouco essa matéria, pois ela, com certeza, será a primeira de uma série.
No artigo 201-A está a famigerada “capitalização”:
“… será instituído novo regime de previdência social, organizado com base em sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida e de caráter obrigatório” (p. 55, grifo nosso).
Guedes e Bolsonaro pretendem instituir essa desgraça que tornou o Chile um inferno, em que os idosos se suicidam em massa, rodeando ou tapeando a Constituição, por “lei complementar”:
“… se propõe a autorização de criação de um novo regime capitalizado de previdência para as novas gerações, por meio de lei complementar” (p. 45, grifo nosso).
Em síntese, Guedes está propondo a liquidação da previdência pública, da Previdência Social, por “lei complementar”, isto é, dando uma rasteira na Constituição.
Mais:
“… propõe-se introduzir, em caráter obrigatório, a capitalização tanto no RGPS [empregados em empresas privadas] quanto nos RPPS [servidores federais, estaduais e municipais]” (p. 54, grifos nossos).
Ou, mais claro ainda:
“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão para o regime próprio de previdência social o sistema obrigatório de capitalização individual previsto no art. 201-A, no prazo e nos termos que vierem a ser estabelecidos na lei complementar federal de que trata o referido artigo” (p. 4. grifos nossos).
O que significa que as supostas garantias a que se referiu Guedes – inclusive a manutenção do salário mínimo como piso das aposentadorias – não valem absolutamente nada.
Primeiro, porque isso dependeria de lei complementar, isto é, quórum menor, no Congresso, que uma alteração constitucional.
Além disso, como seria o financiamento desse estrupício?
Que dinheiro ou que fundo garantiria o piso de um salário mínimo, já em si muito baixo?
O próprio Guedes diz, em seu projeto, que não seria obrigatório que os patrões e o Estado contribuíssem para a “nova previdência”.
Aliás, em relação ao Estado, seria, mesmo, proibido.
Esse é o conteúdo do inciso VII do artigo 115 da emenda de Bolsonaro, que trata, exatamente, das características gerais do “regime de capitalização” que eles querem impor ao país:
“VII – possibilidade de contribuições patronais e do trabalhador, dos entes federativos e do servidor, vedada a transferência de recursos públicos” (p. 14, grifos nossos).
Evidentemente, a “possibilidade” é em relação às contribuições dos patrões, pois as dos trabalhadores são obrigatórias pelo próprio projeto – e não haveria como não ser.
Portanto, as “contribuições patronais” não seriam obrigatórias – logo, não existiriam.
Quanto às do Estado, apesar da menção a “entes federativos”, seria “vedada a transferência de recursos públicos”.
Portanto, pela capitalização de Guedes e Bolsonaro, o trabalhador que se vire – e que se lasque, se o seu destino, depois de idoso, for o suicídio.
Não foi isso o que Pinochet – o herói de Guedes – fez no Chile?
É verdade que, para isso, Pinochet deu um banho de sangue no país.
Guedes e Bolsonaro pretendem impor isso ao país, supõe-se, aprovando no Congresso.
SEQUESTRO
Não há espírito mais deletério, nessas horas, do que aquele que diz: “sou a favor da reforma da Previdência, mas não dessa reforma”.
A “reforma” que existe é a de Guedes e Bolsonaro.
É essa que tem de ser derrubada, derrotada.
Além disso, o problema é: o nosso regime previdenciário tem algum problema estrutural que obrigue a uma “reforma”?
Tanto não tem, que o máximo que Guedes et caterva puderam “prever” foi uma catástrofe para o ano 2060.
Os problemas que nós temos na Previdência são resultado de uma sabotagem contínua desde a década de 90 do século passado.
O que precisamos, pelo contrário, é ampliar os direitos previdenciários dos trabalhadores, isto é, aprofundar o nosso modelo.
Na quarta-feira, em sua arenga diante dos presidentes da Câmara e do Senado, Guedes culpou a Previdência pelo fato de que existem 40 milhões de brasileiros que não estão cobertos por ela.
Com certeza, ele aboliu o desemprego e o subemprego que grassam no país, precisamente devido à sua política – que em nada se distingue, na essência, daquela de Levy, Barbosa e Meirelles, exceto por sua ainda maior incompetência e criminalidade.
A previdência pública é um fator a favor do crescimento – e não somente porque sua arrecadação sobe quando há crescimento e redução do desemprego.
Hoje, na maioria dos municípios brasileiros – o Brasil é um país de municípios pequenos, com exceção dos 150 maiores -, a renda dos aposentados é o principal sustento da economia, ou seja, é o principal elemento do consumo da população.
Nosso problema é, exatamente, ampliar a capacidade aquisitiva da população – portanto, aumentar o valor real das aposentadorias, assim como dos salários.
Existe, também, uma prova negativa de que isso é verdade.
Por que Guedes e Bolsonaro querem essa reforma?
Para concentrar mais renda no setor financeiro, com o controle dos bancos sobre o regime de capitalização.
O que significa a restrição, o achatamento ainda maior do mercado interno do país.
Pode existir algo mais desigual e antagônico ao crescimento do país?
A prova está, exatamente, nessa tentativa de matar parte da população, transformando o país em um campo de extermínio para que meia dúzia possa ganhar, via juros, com o dinheiro sequestrado da população.
Se é a isso que conduz a estupidez de Guedes e Bolsonaro, somente pode-se concluir que temos de fazer o contrário.
CARLOS LOPES
Matérias relacionadas: