Em discurso anual ao parlamento russo, que na maior parte foi dedicado este ano ao desenvolvimento econômico e social da Rússia, o presidente Vladimir Putin voltou a advertir Washington que, se implantar de volta na Europa os mísseis nucleares terrestres de alcance intermediário e curto que estavam proibidos pelo Tratado INF, a Rússia não apenas “irá visar os territórios dos quais emana uma ameaça direta, mas também aqueles territórios onde existem centros de decisão do uso dos sistemas de mísseis que nos ameaçam”.
Putin ressaltou que estava dizendo isso “direta e abertamente” para que “ninguém nos censure mais tarde”, para que fique claro para todos “sobre o que estamos falando aqui”.
Os EUA suspenderam sua participação no tratado de 1987 no dia 2, retirada que se completará em seis meses. Em resposta espelhada, a Rússia tomou medida idêntica no dia seguinte.
O líder russo enfatizou que seu país “não pretende ser o primeiro a colocar tais mísseis na Europa” e que a doutrina militar russa não admite “ataque nuclear preventivo”.
Como Putin ressaltou, “se (os mísseis intermediários terrestres) realmente forem postos no continente europeu, e os EUA tiverem tais planos – nós não ouvimos declarações em contrário – isso agravará dramaticamente a situação de segurança internacional, criará sérias ameaças à Rússia, porque algumas classes desses mísseis podem levar de 10 a 12 minutos para chegar a Moscou”.
O que, como apontou, “é uma ameaça muito séria para nós”, e nesse caso, “seremos forçados – quero enfatizar isso – a considerar medidas recíprocas e ações assimétricas”.
Na década de 1980, milhões de pessoas foram às ruas na Europa contra a hecatombe nuclear, quando a presença desses mísseis no continente tornava a destruição atômica das principais capitais europeias coisa de minutos, não havendo sequer tempo para verificação se o alerta de ataque era por erro.
Conforme Putin, as armas russas “corresponderão totalmente às ameaças dirigidas contra a Rússia”, de acordo com os dados táticos e técnicos, incluindo “o tempo de voo até esses centros de controle”.
As declarações imediatamente repercutiram na mídia internacional, com o El País assinalando que a Rússia ameaçava os centros de comando nos EUA e não só as bases de lançamento na Europa, enquanto a CNN asseverava ser um blefe e o New York Times registrava que “ameaçando os EUA, Putin oferece mísseis e manteiga aos russos”.
Como o presidente russo salientou em seu discurso, a ameaça não partiu de Moscou, mas dos EUA, que nos últimos anos “adotaram uma política em relação à Rússia que dificilmente pode ser chamada de amigável”.
“Os interesses legítimos da Rússia são ignorados, ações anti-russas de vários tipos são constantemente organizadas, absolutamente não provocadas, mais e mais sanções ilegais são introduzidas do ponto de vista do direito internacional”, apontou o líder russo.
Ele também ressaltou que, enquanto a “base legal” da segurança internacional desenvolvida nas últimas décadas “está quase completa e unilateralmente desmantelada” por Washington, é a Rússia que é chamada quase diariamente de “principal ameaça aos EUA”.
“Eu vou dizer sem rodeios: isso não é verdade. A Rússia quer ter relações de pleno direito, iguais e amistosas com os Estados Unidos. A Rússia não ameaça ninguém, e todas as nossas ações no campo da segurança são exclusivamente recíprocas e, portanto, defensivas por natureza. Não estamos interessados em confrontos e não o queremos, especialmente com um poder global como os Estados Unidos da América”, sublinhou.
“Nossos parceiros americanos”, destacou Putin, “parecem não perceber como e em que ritmo o mundo está mudando, para onde está indo” e “continuam suas políticas destrutivas e obviamente erradas”. Isso – acrescentou – “dificilmente é do interesse dos Estados Unidos. Mas isso não cabe a nós decidir”.
Na descrição do presidente russo, “vemos que estamos lidando com pessoas ativas, muito talentosas [dos EUA], mas há muitos na classe dominante que são demasiado aferrados à ideia de sua exclusividade e sua superioridade sobre o resto do mundo”.
“Claro, é direito deles pensar do jeito que quiserem. Mas eles são capazes de contar? Com certeza. Deixe-os calcular o alcance e a velocidade de nossos possíveis sistemas de armas. Pedimos apenas isto: primeiro contem e só então tomem decisões que podem criar ameaça mais séria para o nosso país e, claro, levar a ações de retaliação por parte da Rússia, cuja segurança será confiável e absolutamente assegurada”, advertiu.
“Já disse e quero repetir: estamos prontos para negociações sobre os temas de desarmamento, mas não vamos mais bater em porta fechada. Vamos esperar até nossos parceiros amadurecerem e perceberem a necessidade de um diálogo de igual para igual sobre essa questão”.
“Os parceiros já tentaram obter superioridade militar absoluta com a ajuda da defesa antimísseis global. É necessário deixar tais ilusões. A resposta do nosso lado será sempre eficiente e eficaz”, ressaltou Putin, lembrando como a Rússia se tornou o primeiro país do mundo a dominar a tecnologia dos mísseis hipersônicos, o que comparou ao lançamento do primeiro satélite que abriu a exploração espacial.
Entre esses novíssimos sistemas, estão os mísseis hipersônicos Avanguard, Zirkon e Dagger, o míssil intercontinental pesado Sarmat, a arma laser Peresvet e o drone nuclear submarino Poseidon. No final da noite, Putin voltou a conversar com correspondentes estrangeiros sobre a repercussão do discurso, em que ressaltou que a Rússia não deseja uma corrida armamentista e que sua prioridade é elevar o nível de vida e conforto de seu povo.
Putin asseverou que, com as novas classes de armas hipersônicas russas, para resposta não seria necessário se aproximar das águas territoriais ou da zona econômica exclusiva de uma determinada nação, podendo agir desde “águas neutras, longe no oceano”.
“Sim, há problemas, [os EUA] criam cada vez mais esses problemas, mas também existem mecanismos e ferramentas para trabalhar juntos nesses problemas”, afirmou Putin aos jornalistas. “Espero que eles sejam usados para prevenir novas crises no mundo, como a crise do Caribe [dos mísseis de 1962], não há razão para isso”. Durante o discurso, Putin havia enfatizado que “não existe um Estado russo sem soberania”. Para outros países, talvez seja possível, mas “não para a Rússia”.