Em nota técnica, a 6ª Câmara da Procuradoria Geral da República (PGR) considerou que a transferência de competências da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura e Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos é “inconstitucional” e foco de “conflito entre interesses indígenas e as políticas agrícolas e de direitos humanos do governo”.
Ao assumir o mandato de Presidente da República, Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória (MP 870/2019) que transferiu da Funai para o Ministério da Agricultura a competência de localizar, identificar e demarcar terras indígenas no país, e passou a responsabilidade da fundação, que antes era do Ministério da Justiça, para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Para o subprocurador-geral da República e coordenador da 6ª Câmara, Antonio Carlos Alpino Bigonha, que assina a nota técnica, a medida provisória é “inconstitucional e deve ser rejeitada” pela Câmara dos Depurados.
“A Medida Provisória nº. 870, de 1º de janeiro de 2019, afronta a literalidade do art. 231 e parágrafos da Constituição da República”, escreveu Bigonha, ao afirmar que a transferência das atividades de demarcação de terras indígenas para o MAPA [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento] submete os interesses dos índios, disciplinados no Título da Ordem Social da Carta Magna, aos interesses agrícolas de que trata o Título da Ordem Econômica e Financeira”.
Na nota, o subprocurador-geral alerta que ação do governo tem potencial de ressuscitar a política integracionista, que no passado, sob a coordenação do Ministério da Agricultura e na vigência do extinto SPI, “promoveu o assassinato indígena em grande escala, como registra o Relatório Figueiredo”.
Bigonha explica na nota que a perspectiva integracionista do índio “tornou-se incompatível” com a Constituição Federal (CF) de 1988 quando ela estabeleceu o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos indígenas; e reconheceu a legitimidade das próprias atividades produtivas indígenas, reservando-lhes o direito à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar. E destacou ainda, que pela legislação máxima, o indígena não precisa se tornar um agricultor “para tornar-se um cidadão pleno”, ele já é, “independentemente de um processo de aculturação, evolução ou integração”.
A nota diz ainda que a subordinação da Funai ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos enfraquece “a diversidade preconizada pelo Constituinte e faz letra morta à Norma Maior, pois parte do pressuposto de que os valores dessas comunidades compõem um mero subsistema da ordem social geral e não um sistema próprio, indígena, tal como previsto na Carta Política. Nesse sentido, como já afirmou o STF, quando voltada aos povos indígenas, a aplicação dos direitos humanos pressupõe o respeito à sua organização social, seus usos, costumes e tradições, garantindo-se sua diversidade cultural, a ser considerada, junto às suas histórias e anseios, pela educação pública”.
Para a PGR a Funai e o processo demarcatório de terras indígenas devem permanecer sob a supervisão do Ministério da Justiça, por ser este um campo neutro e equidistante de todos os atores envolvidos nas demais pastas, no âmbito do Governo Federal.
“O Ministério da Justiça é historicamente vocacionado à mediação dos conflitos decorrentes da implementação do estatuto constitucional indígena. Ademais, o fato de o Ministro da Justiça exercer também a supervisão da Polícia Federal e da Força Nacional confere maior celeridade na prevenção e repressão à invasão das terras indígenas, bens de propriedade da União, nos termos da Constituição da República”.
A nota técnica da PGR pode ser usada como guia para a ação de procuradores da República em todo o país, além de servir de subsidio para parlamentares no momento da análise da MP, que deve ser avaliada num prazo máximo de 120 dias pela Câmara dos Deputados e Senado Federal. A 6ª Câmara é responsável, na PGR, pela coordenação e revisão de assuntos relativos às populações indígenas e comunidades tradicionais.