ANTONIO PIMENTA
As ruas venceram e o presidente Abdelaziz Bouteflika, no poder desde 1999, cancelou sua anunciada candidatura ao quinto mandato, demitiu o detestado primeiro-ministro Ahmed Ouyahia e convocou uma transição na Argélia, prometendo reescrever a constituição e sua aprovação em referendo. A desistência foi recebida com júbilo em Argel e no país inteiro.
Está adiado sine die o pleito de abril e as eleições deverão ocorrer já sob a nova constituição e organizadas por uma nova comissão eleitoral independente, anunciou Bouteflika. A conferência que reescreverá a constituição deverá ser presidida por “uma personalidade independente, consensual e experiente” e dar origem a um governo de união para realizar eleições com “liberdade” e “transparência”.
“Não haverá quinto mandato”, enfatizou o vetusto presidente em pronunciamento na segunda-feira (11), acrescentando que “seu último dever” para com o povo argelino era contribuir com a “fundação de uma nova República e de um novo sistema que estará nas mãos das novas gerações”.
A Argélia vem vivendo os maiores protestos em 20 anos, em repúdio à recondução de um presidente que há sete anos não consegue discursar em público, após um acidente vascular cerebral, e à crise econômica e social. O caráter pacífico das manifestações tem sido saudado pelas mais diversas forças políticas. O novo primeiro-ministro será Nouredeine Bedoui, que como ministro do Interior vinha tendo uma atuação impecável diante dos protestos.
GREVE GERAL
Bouteflika voltara no domingo ao país depois de duas semanas em um hospital suíço para ‘exames de rotina’ e havia sido recepcionado com uma greve geral, lojas fechadas e protestos de estudantes e advogados. Sob aplausos dos transeuntes e buzinaços dos carros, na sexta-feira quase profeticamente multidões haviam cantado “Bouteflika, não haverá um quinto mandato!”.
Na véspera do recuo do octogenário presidente, manobra do ministro da Educação para antecipar e prorrogar as férias da primavera e esvaziar a mobilização dos estudantes fracassou e só gerou mais indignação.
Com o país tendo vivido uma dolorosa guerra civil de 1992 a 2002 contra a insurgência extremista islâmica – a “tragédia nacional”, como costuma ser referida, com 150 mil mortos – e tendo acompanhado de perto os abalos nas vizinhas Líbia e Tunísia, assim como no Egito e na Síria, na ‘Primavera Árabe’, não é de surpreender que as manifestações ocorram sob o lema de “pacíficas, pacíficas, pacíficas”.
A própria polícia foi orientada a evitar, ao máximo, confrontos e só agir em ‘casos extremos’ e até aqui oposicionistas consideram sua atuação “exemplar”.
FRATURAS PELO ALTO
Assim, as advertências de Ouyahia sobre a ameaça de que a mobilização descambasse para o caos e o derramamento de sangue, para “uma nova Síria”, não encontraram eco até aqui. Dentro das próprias fileiras do regime, não tardaram as dissensões.
A Organização Nacional dos Mujahideen (ONM), que congrega os veteranos da guerra da independência, contemporâneos de Bouteflika, apoiou a luta contra o quinto mandato: “é dever da sociedade argelina em todos os seus segmentos tomar as ruas”. Denunciou ainda o “conluio entre partes influentes no poder e empresários corruptos que se beneficiaram ilegalmente de dinheiro público”.
Setores da central sindical argelina UGTA aderiram à greve “por pressão das bases que rechaçavam os oligarcas”. Parlamentares da FLN deixaram o partido e se juntaram aos protestos.
Clérigos se pronunciaram repudiando as pressões do Ministério de Assuntos Religiosos para que proferissem sermões a favor do regime rechaçado nas ruas.
‘MESMA VISÃO DE FUTURO’
O vice-ministro da Defesa e chefe do Estado Maior, Ahmed Gaid Salah – o sabre que sustenta Bouteflika na descrição do ‘Jeune Afrique’ -, que chegara a advertir contra a ameaça de volta “aos anos de dor”, já mudou de foco, passando a salientar que o exército nacional popular e as mobilizações “tinham a mesma visão de futuro” para a Argélia.
Após lembrar a gênese da identidade nacional argelina na dura luta de libertação contra o colonialismo e registrar que os filhos da Argélia “exibem hoje um patriotismo sincero”, Salah assinalou sua convicção de que esse povo generoso saberá preservar a pátria e seus valores.
Inflexão extremamente importante, dado o papel jogado pelo Exército Nacional Popular na guerra da independência (1954-1962), na nacionalização do petróleo (1971) e criação da estatal Sonatrach, bem como para deter a insurreição islâmica dos anos 1990.
E também em relação ao que permanece de prestígio da Frente de Libertação Nacional (FLN), por ter comandado a libertação da Argélia e os anos mais gloriosos em que a revolução argelina foi uma fonte de luz para o mundo.
Ao preço de 1,5 milhão de mortos, os argelinos conquistaram a independência após mais de um século de ocupação, e tendo de fazer frente à tortura em massa cometida a mando dos ensandecidos generais franceses. Um genocídio tamanho que praticamente todo argelino tinha um parente morto na guerra da independência. Durante os anos finais da ocupação, a França ainda transformara a Argélia em campo de prova para seus testes nucleares.
ISOLAMENTO
Forças que vinham respaldando o governo, como os islâmicos moderados do Movimento da Sociedade para a Paz (MSP), aderiram aos protestos. Também a ícone da guerra da independência, Djamila Bouhired, de 84 anos. Assim como o maior bilionário do país, e o quinto maior da África, Issad Rebrab. No início, no coro só estavam as torcidas organizadas e as redes sociais.
As eleições adiadas por ora já estavam virtualmente mortas. Partidos de oposição haviam decidido promover um boicote e dois candidatos já haviam retirado sua postulação. Outros seis que ainda se dispunham a compor a cena eleitoral para o quinto mandato pouco contavam.
Mais de mil juízes argelinos anunciaram a criação de uma nova associação para “restaurar a dádiva da justiça” e sua recusa em supervisionar as eleições de abril se Bouteflika insistisse no quinto mandato.
Chama a atenção a enorme participação dos jovens nas manifestações que barraram o quinto mandato de Bouteflika. Desde a queda nos preços do petróleo, e consequente derrubada nas receitas de divisas da Argélia, a crise econômica vem grassando e atinge especialmente os jovens, cujo desemprego é de 28%, num país em que 54% da população tem menos de 30 anos.
Nas manifestações, têm aparecido referências às mortes no Mediterrâneo daqueles que buscavam como escapatória um lugar, por pior que fosse, na abastada Europa, os ‘harraga’.
Também há denúncias contra o “clã presidencial” e as negociatas no círculo palaciano. “Ladrões, comeram a Argélia!”, expunham cartazes nos protestos. Entre os mais odiados, o irmão caçula de Bouteflika, Said, cuja função no palácio ninguém sabe propriamente qual é. Os protestos também se estenderam à região berbere, a Cabília.
CICATRIZAÇÃO
Quando a chamada ‘Primavera Árabe’ varreu as ruas árabes, derrubou regimes e foi usada como pretexto pelo governo Obama para destroçar a Líbia, Bouteflika logrou manter o país em calma e investiu em ampliar as oportunidades de emprego e moradia, mas tudo isso dependia em grande medida das receitas de petróleo, em um país de insuficiente industrialização e faixa de terra arável estreita, o que demanda importar boa parte do que consome.
Bouteflika também tinha certo crédito pelo papel que desempenhou na normalização da vida da Argélia e cicatrização das feridas pós-guerra civil. Foi assim que em 2014 se reelegeu com 81% dos votos e quase 50% de participação, sem participar de qualquer comício e depois de seis meses afastado devido ao avc.
Era também um dirigente histórico da FLN, tendo sido ministro das Relações Exteriores e considerado um dos negociadores dos acordos que levaram ao choque do preço do petróleo após a Guerra do Yom Kippur. Documentos da inteligência francesa asseveram que foi um dos articuladores da derrubada do primeiro presidente argelino, Ahmed Ben Bella.
CONTRASTE
A gigantesca participação da juventude nos protestos contrasta fortemente com a situação do regime, que precisou tentar se agarrar à casca de um ancião de 82 anos e severas incapacitações como Bouteflika para manter intacto o sistema de parasitagem do rentismo do petróleo a que decaiu.
Com 42 milhões de habitantes, a Argélia atualmente tem o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os grandes países africanos, posição que já foi da Líbia, antes da invasão da Otan. É o maior país africano por extensão territorial desde a divisão do Sudão. Há quatro milhões de descendentes de argelinos na Europa, especialmente na França, ex-potência colonizadora. A Argélia é ainda o maior produtor de petróleo e gás da África, é o terceiro maior exportador de gás para a União Europeia e tem a quinta maior reserva de gás do planeta e a 14ª maior de petróleo.
RENTISMO DO PETRÓLEO
A componente econômica dos atuais protestos pode ser apreendida dos números da queda de receitas do petróleo – de que dependem 60% do orçamento – de US$ 70,5 bi em 2012 para US$ 37,4 bi em 2017. O petróleo representa 95% das receitas das exportações e 30% do PIB.
Enquanto o desemprego entre os jovens até 25 anos aumentava de 20% em 2014 para 28,3% em 2017, o regime tentava se manter à tona apelando para os conselhos do FMI.
Relatório do FMI lançado no ano passado sobre a situação da Argélia elogiou a “consolidação fiscal considerável em 2017” depois de quatro anos de preços baixos do petróleo, apesar de notar que “os déficits fiscal e em conta corrente continuam grandes”.
Na linguagem de gente normal, ‘consolidação fiscal’ quer dizer aperto dos cintos de quase todos para sobrar dinheiro para rentistas, escroques e corruptos.
FMI PARABENIZA AJUSTES
O relatório também “parabeniza” os esforços do governo argelino “para fazer os ajustes necessários” e incentiva “a consolidação orçamentária sustentada e reformas estruturais abrangentes”. O que, assevera, irá viabilizar “um modelo de crescimento mais sustentado e apoiado no desenvolvimento do setor privado”.
No ano passado, o crescimento do PIB ficou em 2,3%, para US$ 178,3 bilhões, contra 1,4% em 2017. O saldo na balança de transações correntes ficou no vermelho em US$ 26 bilhões em 2016 e US$ 27 bilhões em 2015. A inflação ficou abaixo de 4,3%, contra 5,6% no ano anterior.
O FMI também saudou “a abertura ao investimento estrangeiro direto” e manifestou seu apoio aos esforços do regime Bouteflika para “melhorar a eficiência e a gestão dos gastos públicos e expandir a reforma dos [leia-se cortar] subsídios”, o que, cinicamente, iria “proteger os mais vulneráveis”.
Com tanto elogio assim, alguma motivação teve o então primeiro-ministro Ouyahia para, num dos seus últimos discursos, diante dos insistentes boatos, asseverar que a saúde pública não seria privatizada e de que se trata de “um princípio sagrado” para a Argélia.
MÃO DE GATO
Com tanto petróleo e gás em jogo, e com todas as intervenções vistas no Oriente Médio desde a invasão do Iraque por W. Bush, o derrame de ouro saudita e do Qatar na região e a paúra de Washington com o ‘avanço chinês na África’ ou a ‘retomada de laços entre Moscou e Argel’, nada pode ser excluído liminarmente ao se avaliar o processo em curso na Argélia. A China já superou a França como principal parceiro comercial com Argel.
Antes da desistência de Bouteflika, um dirigente da FLN chegou até mesmo a asseverar ao Sputnik que as manifestações eram parte “da guerra de quinta geração [‘híbrida’]”, com “forças estrangeiras atacando o país com ajuda dos meios de comunicação e das redes sociais”.
Mas nada disso funciona se as coisas, internamente, não estiverem bem mal paradas. Afinal, o que abriu o caminho para a insurreição extremista islâmica apadrinhada por Londres e Washington em 1991 foi a rendição do então presidente argelino ao neoliberalismo e a brutal deterioração das condições de vida de largos setores do povo.
ALI HADDAD
É verdade nos tempos de hoje que a presidente de um pequeno e tradicional partido de oposição, Louisa Hanoune, fique perplexa ao ser impedida de abrir bandeiras da sua agremiação nas manifestações em curso. E ainda que o time de futebol USM Argel, cuja torcida organizada ajudou a lançar o coro contra Bouteflika, por coincidência é de propriedade desde 2010 do magnata da construção, Ali Haddad, que preside ainda a Câmara de Comércio Estados Unidos-Argélia e a principal federação de empresários, manda na Federação de futebol e é dono de jornais e canal de televisão.
O mesmo Haddad unha e carne com o caçula Said e considerado o principal operador de “dinheiro sujo” no país, acusado no ano passado de deixar sem término 20 obras públicas no valor de mais de 3 bilhões de euros. Há um ano atrás, um primeiro-ministro, Abdelmadjid Tebboune, não esquentou muito a cadeira após bater de frente com ele sobre o assunto. Para os manifestantes, quem de fato governa é o caçula Bouteflika, isto é, é ele quem centraliza a distribuição da propina dos petrodólares para a cúpula do regime e para os magnatas acumpliciados.
QUIETO NO TWITTER
O Jeune Afrique chamou a atenção para que, no caso da Argélia, “Washington apoia o povo” – embora Trump ande quieto no Twitter a respeito -, enquanto a Otan defende “o direito de manifestação” dos argelinos: comovente. O governo Macron manifestou alívio pela desistência de Bouteflika do quinto mandato, pois tudo que menos quer é uma avalanche de refugiados argelinos batendo às portas da França.
Outro questionamento que existe é sobre o papel dos extremistas islâmicos nos atuais protestos, após a Argélia ter derrotado a tentativa deles de esmagar o secularismo e impor uma teocracia, há duas décadas. Em entrevista ao L’ Humanité, a dirigente do movimento oposicionista Mouwatana ‘Cidadania-Democracia’, a advogada Zoubida Assoul, asseverou acreditar que “eles agora estão do lado da maioria” e só tem o objetivo de “romper com este sistema e nada mais”. Na Argélia – como na Síria e, antes, no Iraque, as mulheres têm incontáveis direitos a mais que as mulheres nos países muçulmanos do Golfo sob ditaduras medievais.
DIVERGENTES
Então, não é impossível que o gênio maléfico esteja à solta ou à espreita, mas serão as grandes massas de jovens que tirarão suas próprias conclusões e decidirão o destino da Argélia. Com exceção do “não ao quinto mandato”, do “fim da corrupção e da fraude eleitoral” e “por mudanças e reformas”, os organizadores dos protestos até aqui têm sido muito concisos sobre o que propõem.
Na próxima sexta-feira (15), ao final das preces nas mesquitas se saberá se os compromissos propostos pelo regime foram aceitos ou se simplesmente, aproveitando o embalo, os manifestantes, ou parte deles, se dedicarão a encerrar de vez o capítulo Bouteflika. “Lenta e gentilmente, ao El Mouradia” [o palácio presidencial], já cantavam nas últimas manifestações os estudantes.
Ao que parece, o FMI e o povo nas ruas chegaram a conclusões divergentes sobre o sucesso dos últimos anos do governo Bouteflika.