
Um especialista em segurança pública – e coronel da Polícia Militar de São Paulo – que consultamos sobre o projeto dito “anticrime” do ministro Sérgio Moro, fez algumas observações muito interessantes.
Por exemplo, tínhamos pensado a questão da “barganha”, que o projeto pretende introduzir no Código de Processo Penal – ou seja, o “acordo” em torno de uma pena, aceita pelo acusado, sem o julgamento -, sob o ângulo da privatização do Direito (nesse caso, também da desnacionalização, pois esse estatuto é copiado dos EUA).
Certamente, a “barganha” trata os crimes – uma questão pública – como se fosse uma questão privada, com acordos entre acusação e defesa, praticamente à margem da Justiça.
Explicando melhor: no Direito brasileiro, que é derivado do Direito Romano, o assassinato de alguém é um crime contra a sociedade, não contra uma pessoa particular e privada.
Por isso, é necessário julgar o acusado pelo crime de acordo com a lei, não se admitindo acordos entre as partes (acusação e defesa) sobre a pena. Esta, determinada pela lei, é aplicada pelo juiz.
A ideia de um acordo particular entre a acusação e a defesa, sem a participação do juiz – ou com a participação secundária deste – é completamente estranha a essa concepção.
Existe, portanto, uma distinção entre Direito público e Direito privado – neste, tais acordos são admissíveis.
Isso não é verdade para o Direito dos EUA, o Direito anglo-saxônico (“common law”). Nas palavras de um jurista com quem, também, discutimos o projeto “anticrime” de Moro:
“No common law não existe diferença fundamental na forma como são julgadas as causas civis e as causas criminais. Como nas causas civis (direito privado) existem acordos, isso contribui para que nas causas criminais também existam. Se sou demandado a pagar uma dívida, posso, mesmo não sendo devedor, se eu quiser, e o juiz não tem nada a ver com isso, simplesmente dizer que pago. Se sou acusado de um crime, também posso me declarar culpado (guilty plea). Essa figura não existe no civil law [de que faz parte o Direito brasileiro]. Ao contrário, no Brasil existe até o crime de autoacusação falsa”.
EXPOSIÇÃO
Pois bem, leitor.
Era sob esse ângulo que estávamos preparando nossa análise da “barganha” proposta por Moro – e o jurista que citamos deu uma inestimável contribuição para essa análise.
Mas o especialista em segurança pública que mencionamos, coronel da PM, contribuiu com algo muito importante: esse sistema, disse ele, expõe os promotores e procuradores – que formam os Ministérios Públicos Estaduais e Federal – à corrupção (que, aliás, é inerente a um modelo supostamente calcado no “mercado”, ou seja, na compra e venda).
Essa conclusão é inteiramente confirmada pela literatura jurídica sobre o assunto e pelos fatos, sobretudo aqueles acontecidos no país de origem da “barganha” – os EUA (além do noticiário dos jornais e revistas, v. o importante artigo do professor Albert Alschuler, Plea Bargaining and Its History, Columbia Law Review, vol. 79, nº 1, 1979).
Então, disse o nosso especialista, hoje as investigações promovidas pelo Ministério Público são respeitadas.
A “barganha”, na medida em que abre um flanco para a corrupção, tende a desmoralizá-las – certamente, não é o país, nem a luta contra a corrupção, ou contra o crime em geral, que ganhariam com isso.
FÁBRICA
Colocamos o carro um pouco adiante dos bois.
Então, retomemos outra vez.
Iniciamos, após nossos primeiros artigos sobre o projeto dito “anticrime”, do ministro Sérgio Moro, uma série de discussões com juristas e especialistas em segurança pública, como o já mencionado coronel da Polícia Militar de São Paulo.
Tudo o que dissemos nos artigos anteriores pôde ser confirmado à luz dessas discussões – mas foi enriquecido, o que exigirá que voltemos a tocar nesses assuntos (v. A contribuição da família Bolsonaro ao projeto do Dr. Moro, Moro e o recuo na criminalização do caixa 2 eleitoral e Moro propõe tornar explícito em lei que milícias são organizações criminosas).
Porém, entre as questões em que ainda não tocamos, a mais importante – porque mais sensível – é a da barganha (“plea bargaining”, como chamam os norte-americanos).
O que é a “barganha”?
Qualquer um que tenha visto alguma das versões do seriado “Law & Order” já se espantou com aquelas negociações, inclusive em crimes hediondos, onde promotores e advogados de defesa acertam penas para o réu, sem passar por um julgamento, isto é, sem que haja o famoso “contraditório” – mais especificamente, o direito de defesa exercido diante de um juiz.
Essa é a barganha em seu estado mais avançado, ou seja, mais deteriorado.
Trata-se de uma monstruosidade do sistema judicial norte-americano, importada por alguns países – em versões até piores que nos EUA.
A justificativa é sempre a de que isso agiliza, torna mais rápida a Justiça, desafogando o trabalho dos juízes.
O problema é que, ao mesmo tempo, isso acaba com a Justiça. E com o Direito, com coisas como “direito de defesa”, “paridade de armas” entre acusação e defesa, acesso aos juízes, etc.
Para que existir Judiciário, se tudo é decidido por supostos “acordos” (um interessante artigo sobre isso foi publicado na Forbes: Aaron Swartz and the Corrupt Practice of Plea Bargaining)?
É algo característico do neoliberalismo (a “barganha”, apesar de existir nos EUA desde o século XIX, somente foi declarada constitucional, pela Suprema Corte, em 1970), acabar com a Justiça porque ela é supostamente cara; não aparelhá-la, não aumentar o número de juízes, mas aumentar as desigualdades, portanto, a criminalidade – e, depois, a solução é dispensar os julgamentos…
No projeto, Moro não pretende instalar aqui o inteiro modelo dos EUA – até porque isso jamais iria passar, nem pelo Congresso, nem pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas o projeto, nesse ponto, é suficientemente ruim para esculhambar com algo que não está esculhambado no país: o sistema judicial, que, apesar de todas as suas dificuldades, funciona.
A barganha, aliás, é completamente desnecessária para qualquer combate ao crime ou projeto de segurança pública.
Listemos algumas questões:
A primeira, evidentemente – o Dr. Moro que nos desculpe – é que se trata de uma macaquice, de uma cópia acrítica do que se faz nos EUA, sem que haja qualquer vantagem para o Brasil, e sem qualquer avaliação do seu resultado – desastroso – no país de origem.
A segunda: somente é possível a “barganha”, se o acusado desistir de seu direito de se defender, na verdade, como diz um autor, com o “desaparecimento do processo e da defesa”.
A terceira é que a “barganha” concede a uma das partes, o Ministério Público, o poder de estabelecer a pena de um acusado – e o poder de coagi-lo, sob ameaça de pena maior, se o caso for a julgamento, a aceitar essa pena.
Ela, portanto, concede à acusação o papel de juiz – e juiz com poderes quase absolutos.
[Certamente, em caso de julgamento, quem estabelece a pena é o juiz; mas, como demonstrado nos EUA, raramente um juiz discorda da acusação quando esta pede uma pena maior para um réu que, com sua teimosia em não aceitar um acordo, aumentou sua carga de trabalho.]
Além disso, nos EUA, esse sistema mostrou-se uma fábrica de condenações de inocentes, sem que essas condenações fossem, nem ao menos, proferidas por um juiz.
Mas, vamos devagar, porque o assunto é algo complicado de explicar – embora seja fácil de entender.
REGRA
A barganha – os “acordos” de pena entre promotores e advogados de defesa, sem julgamento do acusado – é a norma geral nos EUA, onde alguns juristas falam, hoje, em “desaparecimento dos julgamentos” (v., p. ex., Marc Galanter, The vanishing trial: an examination of trial and related matters in federal and states courts, Journal of Empirical Legal Studies, Volume 1, Issue 3, 459–570, November 2004).
Nos EUA, os julgamentos tornaram-se exceções.
Nas palavras de um dos juristas brasileiros com quem debatemos a questão, aliás, um promotor de Justiça:
“Quando eu assistia filmes de julgamentos nos EUA, ficava intrigado. O sistema me parecia muito caro. Tem o grande júri, depois vem o pequeno júri. Tem um procedimento para a escolha dos jurados, no qual a acusação e a defesa podem fazer perguntas para os jurados para descobrir seu perfil ideológico. Os jurados ficam trancados até vários dias para que cheguem a uma decisão unânime, enquanto isso ficam isolados e com todas as despesas pagas, etc.
“O fato é que o que acontece nos filmes é, de fato, somente para uma pequena parte dos julgamentos. Entendi as coisas quando li o livro Barganha e Justiça Criminal Negocial, de Vinícius Gomes de Vasconcellos, vencedor do 19º concurso de monografias do IBCCRIM [Instituto Brasileiro de Ciências Criminais], 2015.”
O trecho a seguir é desse livro, do jurista Vinícius Gomes de Vasconcellos (os grifos são nossos):
“No sistema estadunidense, a plea bargaining é a regra absoluta, ou seja, o seu aclamado modelo acusatório de júri puro é um mito na realidade prática, embora teoricamente previsto como direito a todos os cidadãos processados criminalmente.
“Em termos médios, aponta-se que 90% dos casos de sentença condenatória se fundamentam no reconhecimento de culpabilidade (guilty plea) obtido por meio de acordos entre acusação e defesa e, portanto, sem a necessidade de provas incriminatórias sólidas e lícitas além da dúvida razoável.
“Nesse sentido, em interessantes dados de 2002, verificou-se que no sistema criminal federal estadunidense 73% das investigações resultam em denúncias (ou seja, não são arquivadas), das quais 89% acabam em condenações, em que 96% se deram por meio de acordos entre acusação e defesa.
“Recentemente, em 2013, Dervan e Edkins apontaram a estatística de que quase 97% das condenações no sistema de justiça federal se dão com base em acordos para reconhecimento de culpabilidade”.
CONTRA QUEM
Pode-se, e com algum rigor, dizer que a Justiça – o Judiciário – quase deixou de existir nos EUA, substituída pela barganha entre promotores e advogados de defesa.
Com um resultado catastrófico. Foi um dos motivos que tornaram os EUA uma coleção de cadeias e campos de forçados – em constante processo de privatização, com o suborno de autoridades judiciais, etc.
Porém, em que importa ao cidadão brasileiro, ao cidadão comum, essa questão?
O problema é que esse sistema funciona contra os pobres – no caso dos EUA, contra os pobres e os negros (“… a partir de pesquisa empírica, Vanessa Edkins atesta que a raça do acusado pode determinar diretamente a postura do seu advogado quanto à recomendação acerca da aceitação da barganha, pois seu estudo demonstra que um acusado negro recebe três vezes mais sugestões no sentido de reconhecer sua culpabilidade”).
Aliás, é inevitável que um sistema de “barganha” funcione contra os menos favorecidos, com menores condições de contestar as acusações, se forem a julgamento – ou seja, é um sistema voltado contra os que não podem pagar. Como dizia aquele personagem de Máximo Gorky: nesse sistema, “o homem é livre porque paga”. Quem não paga…
Este, aliás, é um dos motivos das confissões de culpa dos inocentes, obrigados a uma terrível opção: “ao acusado é ofertada possibilidade de escolha ilusória (…). Trata-se da denominada ‘tesoura sancionatória’, demonstrada empiricamente em estudos específicos e inquestionavelmente exposta em decisões da Suprema Corte estadunidense, como o já descrito em Bordenkircher v. Hayes (em que o réu era acusado por emitir cheque falso e devia optar entre aceitar a barganha com prisão por cinco anos ou exercer o direito ao julgamento e correr o risco de uma prisão perpétua por reincidência)”.
Aliás, é impressionante a volumosa literatura jurídica – e jornalística – norte-americana sobre inocentes que confessaram crimes sob ameaça de uma pena maior (p.ex., Emily Yoffe, Innocence Is Irrelevant in the Age of the Plea Bargain, F. Andrew Hessick III, Plea Bargaining and Convicting the Innocent: the Role of the Prosecutor, the Defense Cousel, and the Judge, John H. Blume & Rebecca K. Helm, The unexonerated: factually innocent defendants who plead guilty).
Da mesma forma, é impressionante o número de organizações que se dedicam a rever processos de inocentes, injustamente condenados e presos, a maioria sem um julgamento.
ILUSÓRIO
O que se pode dizer, em geral, é que o sistema de barganha torna completamente secundárias as provas.
O importante, para a acusação, passa a ser o “acordo”, ou seja, a aceitação, pelo advogado do acusado (este, geralmente, nem está presente), de uma pena, sob ameaça de uma pena maior – no caso dos EUA, de uma pena imensamente maior – se recusar esse “acordo” e decidir pelo julgamento.
Existem, aqui, muitos detalhes.
Aqui nos deteremos apenas na completa desigualdade da suposta barganha, que, segundo seus defensores, é “um acordo entre partes em situação de igualdade, realizado de modo livre e informado” (?!).
Os fatos são:
“a) a igualdade entre as partes é ilusória, já que, além da disparidade inerente ao processo penal, em um sistema negocial ocorre a indevida usurpação das funções decisórias pelo acusador, extrapolando seus poderes e suas possibilidades de coações ao réu por meio de ameaças de sanções penais mais graves em caso de recusa ao acordo;
“b) a liberdade do imputado em realizar a barganha ou exercer o direito ao julgamento é falsa, ao passo que a coercibilidade da proposta é inerente à sua sistemática, pois há evidente punição em razão do não reconhecimento de culpabilidade, o que se demonstra patentemente pelo desvelamento da expressiva quantidade de inocentes que aceitam o acordo;
“c) a suposta assistência por advogado técnico que informaria o réu acerca da sua situação processual e das consequências da barganha (…) torna-se inócua diante da inevitável desvirtuação da relação entre cliente e advogado em um cenário de negociações e pressões burocráticas pela realização célere de acordos para imposição de sanções penais consentidas” (cf. Vinícius Gomes de Vasconcellos, Barganha e Justiça Criminal Negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro, IBCCRIM, 2015).
Sobre essa última questão, observa o autor:
“… é inquestionável a degradação das funções desempenhadas por juízes, promotores, advogados e, inclusive, réus em um panorama processual pautado por negociações e concessões. (…) seus interesses pessoais sobrepõem-se às funções processuais (…).
“Configura-se uma simbiose burocrática que inviabiliza a concretização da função precípua do processo penal, (…) ao passo que os atores do campo jurídico, em prol de seus interesses particulares alheios ao caso concreto e por suas perversas relações de cooperação mútua, incentivam (ou, melhor, pressionam e coagem) a realização de barganhas para a imposição antecipada de sanções penais a partir do reconhecimento de culpabilidade consentido do réu.
“Desse modo, rompe-se por completo com as premissas do processo penal democrático, já que a barganha vicia integralmente o sistema de justiça criminal”.
MUDANÇAS
Como já dissemos em um de nossos artigos anteriores, estamos longe de achar que tudo no projeto de Moro é ruim.
Especialmente a modificação que ele propõe para o Código de Processo Penal, estabelecendo a execução da pena (não somente as de prisão, mas também as restritivas de direitos e as pecuniárias) após a condenação em segunda instância, nos parece corresponder a um imperativo da atual situação (v. Por que a prisão após a segunda condenação é legal, justa e necessária).
No entanto, ao invés de se concentrar nessa questão – a mais candente, no momento atual, do ponto de vista da luta contra a corrupção – o projeto de Moro se estende com propostas de mudança em 14 leis (e várias mudanças em cada uma dessas leis).
Algumas dessas alterações são abertamente equivocadas, como aquela que torna o “excesso” de um policial, inclusive o “excesso doloso”, até mesmo sem punição, se a causa for, supostamentente, “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” (v. A contribuição da família Bolsonaro ao projeto do Dr. Moro_).
Voltaremos a esse assunto – e também examinaremos outros, que ainda não abordamos – com a ajuda de nossos consultores.
C.L.
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