
Por todo o país, repúdio ao arbítrio
Se o objetivo era tornar mais viva a lembrança das atrocidades, conseguiu
“A verdadeira bravura do soldado é nobre, generosa
e respeitadora dos princípios de humanidade.”
(Caxias, 1851)
Até quando Bolsonaro se esconderá atrás dos militares?
No último dia 25 de março, o porta-voz do Planalto, Otávio Rêgo Barros, anunciou que Bolsonaro determinara, ao Ministério da Defesa, organizar comemorações pela implantação da ditadura no Brasil, a 1º de abril de 1964.
No dia 31 de março, dia das supostas comemorações, Bolsonaro viajou para Israel.
Não há notícias de que tenham havido comemorações do golpe de 64 em Israel.
Então, se Bolsonaro achava a data tão pouco importante – a ponto de viajar para fora do país, ao invés de comparecer às comemorações que ele mesmo determinou – por que deu essa ordem?
A única “comemoração”, além da rotina, foi um vídeo de 1min50s, publicado pelo Planalto, com um cidadão (depois se soube que era um ator, que se apressou a dizer que nada tinha a ver com o texto que interpretou) que, depois de falar que, antes de 1964, “comunistas prendiam e matavam seus compatriotas” (sic), declamou: “O Exército nos salvou. O Exército nos salvou”.
A segunda declaração é tão mentirosa quanto a primeira.
Um dos principais participantes de 1964, o general de Exército Antonio Carlos de Andrada Serpa, depois de romper com a ditadura, definiu o conteúdo daqueles acontecimentos:
“Em 1964, nós seguramos a vaca para os americanos mamarem”.
Depois do golpe, 6.592 militares foram punidos e excluídos das Forças Armadas.
Para quê?
Para que se instalasse no país uma ditadura.
Para que uma ditadura?
Certamente não foi para garantir a liberdade do povo, o aumento dos salários e o desenvolvimento nacional – isto é, o crescimento econômico independente e socialmente justo.
É verdade que, durante um breve período da ditadura – o governo Geisel, que instaurou o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) –, houve, realmente, desenvolvimento da indústria e da economia nacional.
Mas esse período durou apenas quatro anos (1975-1979).
Esse é exatamente o período e o aspecto que Bolsonaro & cia. detestam na ditadura.
Fora isso, durante 10 anos – dos 21 anos de ditadura – não houve lei no país, pois o Ato Institucional nº 5 (AI-5) concedia poderes absolutos (antes de tudo, o poder de passar por cima das leis, inclusive da Constituição) ao representante da ditadura que estivesse na Presidência.
Esse é o aspecto da ditadura que Bolsonaro adora, aquele em que brasileiros eram cassados, presos, torturados e assassinados – e não eram os comunistas que faziam isso.
Quanto ao vídeo, agora que o besteirol está no ar, descobriu-se que… ninguém fez o vídeo.
Como?
Se o Planalto publicou o vídeo, ninguém fez o vídeo?
Pois a assessoria de imprensa do Planalto declarou que não era responsável pelo vídeo.
O vice-presidente, Hamilton Mourão, também disse que nada tinha a ver com isso: “Se foi divulgado pelo Planalto, é decisão dele [de Bolsonaro] . Ele também não sabe? Então… Eu nem vi esse vídeo”.
Em suma, Bolsonaro foi para Israel e deixou a bomba (trata-se de uma imagem, leitores bolsonaristas) na mão dos militares – que não são responsáveis, é justo dizer, pelas sandices de um desequilibrado.
Mas, se Bolsonaro queria, como disse, que o país “rememorasse” o golpe de 64 – e a ditadura que seguiu – ele alcançou seu objetivo.
Só que ao contrário do que pretendia.
Foi a maior rememoração da ditadura em 34 anos – ou seja, desde que a ditadura foi derrubada.
Foi o maior repúdio à ditadura, desde que ela caiu, ressoando as palavras do grande Ulysses Guimarães, em 1988, na Constituinte:
“Traidor da Constituição é traidor da Pátria.
“Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.
“A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.
“Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”
Jamais se viu tanta gente lembrando do que aconteceu no golpe e depois do golpe.
Desde o escritor – e membro da Academia Brasileira de Letras -, Paulo Coelho (cf. seu texto, publicado no The Washington Post: “Paulo Coelho relembra as sessões de tortura que sofreu na ditadura”) até o irmão mais velho (um deles) do jogador Zico, do Flamengo e da Seleção Brasileira (cf. “Meu crime foi ser professor”, diz irmão de Zico torturado na ditadura).
Todos rememoraram a ditadura.
Alguns lembraram da censura, tão estúpida que proibia até propaganda de peru da Sadia, porque, diziam os censores, a palavra “peru” possuía “dupla conotação”.
No domingo, dia 31, a torcida do Flamengo, durante a partida contra o Vasco, homenageou Stuart Angel Jones, torturado, assassinado e desaparecido aos 25 anos.
Stuart foi bicampeão carioca de remo, pelo Flamengo, em 1964 e 1965.
Em São Paulo, os estudantes homenagearam Alexandre Vannucchi Leme, morto aos 22 anos, sob tortura.
No Rio, homenagearam Mário Prata e Marilena Vilas Boas, assassinados em 1971.
Em Brasília, homenagearam Honestino Guimarães, desaparecido em 1973.
Jamais se viu tanta rememoração da ditadura.
PORÕES
Há muito, os brasileiros deixaram de considerar que o caráter fundamental da ditadura de 64 era o de ser militar.
Há quase 40 anos, ainda sob o regime autoritário, se disse:
“Nós não temos dúvida de que a luta vai continuar crescendo até uma muito próxima decisão perante a ditadura e os interesses de classe que ela representa: de forma predominante, os interesses do capital financeiro internacional” (cf. Cláudio Campos, Unir a Nação e Romper com a Dependência – Informe do Comitê Central ao III Congresso do MR8, agosto/1982, pp. 28-29, grifo nosso).
Foi o que ocorreu: três anos depois, com a eleição de Tancredo, e com a posse de Sarney, a ditadura chegou ao fim.
Que os interesses que mencionamos tenham usado os militares ou uma parcela dos militares – como percebeu o general Antonio Carlos de Andrada Serpa – é fato histórico.
Mas também é fato que os militares aceitaram a transição para a democracia como a melhor alternativa para todos – isto é, para o Brasil.
É verdade que houve uma insignificante parte deles – aquela representada por indisciplinados como Bolsonaro – que não se conformaram com a passagem do país para a democracia (v. Terrorismo de baixa potência).
Bolsonaro sempre foi ostensivo, a favor da tortura e da ditadura.
Outros, encolheram-se durante anos.
O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, declarou que, em 1964 “vibrei com a queda de João Goulart, um cancro na política brasileira”.
Heleno levou 34 anos para dizer isso publicamente.
Por que levou tanto tempo?
Goulart era presidente eleito e constitucional do país. Todo o seu governo, como estamos mostrando na série “100 anos de Jango”, era voltado para o povo brasileiro, isto é, para a Nação.
Quanto a Heleno, ajudante de ordens de Sylvio Frota em 1977, foi um dos oficiais exonerados pelo presidente Geisel, com seu chefe, e afastado de Brasília em outubro daquele ano (v. Diário Oficial da União, 18/10/1977).
Frota, como disse alguém, era então o paladino dos porões da ditadura – o paladino, portanto, dos torturadores, das câmaras de tortura e das casas de assassinato. Segundo suas próprias palavras, até mesmo os juízes das auditorias militares, que julgavam e condenavam democratas e patriotas, eram “encapuzados dos direitos humanos”, isto é, demasiado lenientes.
Não é um acidente que ele haja utilizado a palavra “encapuzados”. Na época, todos sabiam o que ela significava, com milhares de pessoas sendo torturadas com um capuz na cabeça.
Heleno era um membro do grupo de Frota, seu ajudante de ordens – e, por isso, foi exonerado por Geisel, quando, após a demissão de Frota do Ministério do Exército, foi tentado um golpe de mão, também fracassado (o melhor relato é o do próprio general Geisel, em sua entrevista ao CPDOC/FGV).
Não pretendíamos lembrar esse episódio da carreira de Heleno. Mas já que ele falou em “cancro”, é forçoso considerar que nem a ditadura suportou o esquema de que fazia parte.
E não falamos mais sobre a sua trajetória, porque achamos isso suficiente (mas não podemos tirar do leitor o direito de conhecer mais alguma coisa: v. Candidato de Bolsonaro para Defesa recebeu R$ 59 mil mensais de Nuzman por seis anos).
O escritor Paulo Coelho descreveu sua saída das câmaras de tortura, em 1974:
“Vou para a casa de meus pais. Minha mãe envelheceu, meu pai diz que não devo mais sair na rua. Procuro os amigos, procuro o cantor, e ninguém responde meus telefonemas. Estou só: se fui preso devo ter alguma culpa, devem pensar. É arriscado ser visto ao lado de um preso. Saí da prisão mas ela me acompanha. A redenção vem quando duas pessoas que nem sequer eram próximas de mim me oferecem emprego. Meus pais nunca se recuperaram.
“Décadas depois, os arquivos da ditadura são abertos e meu biógrafo consegue todo o material. Pergunto por que fui preso: uma denúncia, ele diz. Quer saber quem o denunciou? Não quero. Não vai mudar o passado.
“E são essas décadas de chumbo que o presidente Jair Bolsonaro – depois de mencionar no Congresso um dos piores torturadores como seu ídolo – quer festejar nesse dia 31 de março”.
Deve ser por isso que ele foi para Israel, colhido pela vaga do repúdio – como sempre, com rara covardia.
C.L.