As manifestações barraram a candidatura de Bouteflika pela quinta vez e agora enterram uma “transição” sob controle da chamada “gangue”, uma referência às tenebrosas transações entre o clã palaciano e empreiteiras.
Após seis semanas dos maiores protestos em décadas e greves, o presidente argelino renunciou nesta terça-feira (2), anunciou a agência estatal de notícias APS. “O Presidente da República, Abdelaziz Bouteflika, notificou oficialmente ao Presidente do Conselho Constitucional [Senado], a sua decisão de encerrar o seu mandato como Presidente da República”.
Centenas de pessoas tomaram as ruas tarde da noite para celebrar a queda de Bouteflika, agitando bandeiras argelinas e percorrendo a cidade em carreatas e buzinando. Quarta-feira será um dia quente na Argélia.
A renúncia ocorreu horas após as redes sociais e partidos de oposição rechaçarem o comunicado do dia anterior do octogenário e doente presidente, de que deixaria o poder “até 28 de abril”: “não muda nada” e os protestos “vão prosseguir”.
As manifestações já haviam barrado a candidatura de Bouteflika a um quinto mandato e agora estão enterrando uma “transição” sob controle daquilo que a multidão chama de “el issaba” (a gangue), em referência às tenebrosas transações envolvendo o clã palaciano e empreiteiras.
Bouteflika sofreu um derrame pouco meses antes da eleição anterior, há sete anos não fala em público e sempre é visto em cadeira de rodas. Manifestantes e opositores denunciam que, de fato, o governo está nas mãos do caçula Said.
A transição que gorou envolvia uma constituinte com nomes escolhidos a dedo e não eleita (“Conferência Nacional”), a ser seguida por referendo, um governo interino e eleições sob nova comissão eleitoral. Depois de desistir da candidatura, Bouteflika, ou seus ventríloquos, haviam proposto “prestar seu último dever” ao povo argelino, controlando a transição para a “Segunda República”.
Na sexta-feira passada, a pretensão ruiu nas ruas da Argélia, tomadas no país inteiro, e sob a nova palavra de ordem “renuncia Bouteflika e leva Gaid Salah com você”. Salah é o vice-ministro da Defesa e chefe do Estado Maior.
A derradeira tentativa de Bouteflika, na noite passada, criava o novo governo interino, entre os quais era mantido Gaid.
A gentileza não entusiasmou o general, que repeliu o que chamou de “astúcia” de certa gente, e em declaração à noite em Argel afirmou que a Argélia não tinha como esperar, convocando a “implementação imediata dos artigos 7,8 e 102 da Constituição”, que regem a renúncia/afastamento do presidente.
A declaração atribuía, ainda, o anúncio da permanência de Bouteflika até o dia 28 – data oficial de fim de mandato – a “forças não-constitucionais” (o irmão caçula?) e prometia o apoio ao povo argelino “até que suas exigências sejam completamente satisfeitas”.
Pouco depois que a declaração tornou-se pública, o isolado Bouteflika anunciou a renúncia ao presidente da Comissão Constitucional (Senado), que deverá assumir interinamente e convocar eleições em 90 dias.
A ruína da “el issaba” já podia ser percebida desde domingo, quando na madrugada, o ex-presidente da federação de empresários, o bilionário Ali Haddad, foi preso na fronteira quando buscava fugir para a Tunísia. Na segunda-feira, o tribunal de El Kala ordenou que ele fosse transferido para detenção em Argel.
A promotoria de Argel anunciou ainda acusações contra outros empresários bilionários próximos ao clã Bouteflika: dois irmãos de Haddad, os irmãos Kouninef, e Maihieddine Takhout e parentes. “Investigações preliminares estão em andamento sob a acusação de corrupção e transferências de capital ilícitas no exterior”, anunciou o escritório do promotor.
O Estado argelino também proibiu até 30 de abril todos os voos de jatinhos particulares para evitar que os empresários fugissem do solo argelino. “Todas as aeronaves particulares que são propriedade de argelinos e estão registradas na Argélia ou no exterior estão proibidas de decolar ou aterrissar no espaço aéreo da Argélia”.
Segundo o Echourouk News, a divisão sobre o futuro da Argélia também atingiu as forças armadas. O general Salah teria denunciado “forças mal intencionadas” que visam “minar a credibilidade do exército e escapar das demandas legítimas do povo”.
Várias fontes sustentam que houve uma reunião entre o caçula Bouteflika, Said, o atual chefe da inteligência, general Athmane Tartag, e o ex-chefe do órgão, general Mohamed Mediène (mais conhecido como Toufik), com a presença de autoridades francesas.
Conforme Salah, nessa reunião teria sido decidido criar uma “certa anarquia” no país, agir para rejeitar o artigo 102 e insuflar os “regionalismos” – o que provavelmente quer dizer fazer provocações entre os berberes argelinos.
Em outro órgão de mídia, Tout sur l’Algerie, Toufik se defendeu da acusação de que conspirou com agentes estrangeiros, chamando-a de “tentativa deliberada de prejudicar minha reputação”, e asseverou que jamais se desviou “do princípio da defesa da soberania nacional”.
Maior produtor de petróleo e gás da África, a Argélia é um grande fornecedor de gás para a França, Espanha e Itália. Desde o colapso do preço do petróleo em 2014, a Argélia, cuja industrialização não vingou, e depende inteiramente das receitas do petróleo, viu sua situação interna se agravar, com quase 30% de desemprego entre os jovens, num país em que mais de metade da população tem menos de 30 anos.
Sob orientação do FMI, o governo argelino tomou medidas para “equilibrar as contas” – isto é, arrocho, corte de programas sociais e mais concessões ao capital externo.
Boutleflika chegou a ter prestígio na Argélia, pelo papel na superação das feridas da ‘década negra’ – o conflito contra o levante integrista islâmico nos anos 1990, que tentou tornar o país numa teocracia medieval, com o apoio de Washington, Londres e dos feudais do Golfo. A Frente de Libertação Nacional, que liderou a luta de libertação contra o colonialismo francês, em que foram mortos mais de 1,5 milhão de civis, governa desde a independência o país, em coalizão com outros partidos.
A.P.