(HP 16/05/2000)
CARLOS LOPES
Para Eduardo de Oliveira, herói sereno do nosso povo
O 13 de maio foi sempre uma das datas mais estimadas pelo povo brasileiro, somente comparável em popularidade à da própria Independência. Certamente, nós, brasileiros, temos toda razão em ter em tão alta conta a Abolição. O Brasil é, antes de tudo, um país e uma Nação construída pelos negros. Esta foi a base de toda a luta abolicionista, tal como observou, cinco anos antes do 13 de maio de 1888, Joaquim Nabuco:
“… a raça negra nos deu um povo. O que existe até hoje sobre o vasto território que se chama Brasil foi levantado ou cultivado por aquela raça; ela construiu o nosso país. Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar… a raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua”.
O 13 de maio foi a vitória da luta da qual Zumbi dos Palmares – assim como Tiradentes em relação à Independência – foi o proto-mártir. Nenhuma parte, nenhum setor da sociedade ficou fora dela – a cultura brasileira teve em Castro Alves o seu expoente máximo; os militares afirmaram a consciência nacional ao recusar-se a perseguir os escravos, declarando: “não somos capitães do mato”; a Abolição superou todas as divisões partidárias e, até mesmo, étnicas, de Luiz Gama e José do Patrocínio, negros e republicanos, a André Rebouças, negro e monarquista, Silva Jardim, branco e republicano, até Joaquim Nabuco, branco, monarquista e filho de um senhor de engenho.
Em suma, a revolução abolicionista-republicana foi o movimento que constituiu, definitivamente, o povo brasileiro. Nenhum outro foi tão importante para definir a fisionomia da nacionalidade. Neste sentido, a Revolução de 30 é um desenvolvimento de 1888 e 1889, de certa forma a retomada da revolução abolicionista após a derrubada da república oligárquica, aspecto presente até mesmo na formação de seu líder, Getúlio, filho direto do abolicionismo republicano.
Mas é certo que Abolição e República não foram bandeiras que caminharam sempre juntas, apesar de, já no século XVIII, Tiradentes as ter vinculado. Somente em 1887 o Partido Republicano iria assumir oficialmente a Abolição, com a adesão da última seção que ainda resistia, o Partido Republicano Paulista, que futuramente iria dominar a República Velha. Mas os principais propagandistas republicanos – como Silva Jardim – cresceram junto ao povo por serem os mais firmes agitadores da Abolição. Foi o abolicionismo que forjou a unidade nacional. Abolição e República tornaram-se, cada vez mais, convergentes. O primeiro a novamente vinculá-las foi um negro, Luiz Gama, na Convenção republicana de Itu.
Luiz Gama sabia, por experiência própria, do que falava quando denunciou:
“Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade“.
Nascido livre há exatos 170 anos, Luiz Gama foi separado aos sete anos da mãe, Luiza Mahin, líder da revolta dos malês, deportada para a África. Aos 10 anos foi vendido como escravo pelo próprio pai, um fidalgo português arruinado por dívidas de jogo. Revendido a um contrabandista, percorreu a pé, num grupo de cem outros negros, o caminho da Serra do Mar entre Santos e Campinas, para ser entregue ao novo “senhor”. Segundo seu próprio relato, enfrentou em São Paulo outro preconceito, por ser baiano – os escravos nascidos na Bahia eram então considerados os mais rebeldes, a ponto da palavra “baiano” ter-se tornado pejorativa para os escravocratas.
Aos 18 anos, Luiz Gama fugiu de seu último “senhor” e entrou no Exército. Advogado, foi defendendo um escravo diante do Tribunal do Júri que pronunciou a sentença de morte da escravidão:
“… aquele negro que mata alguém que deseja mantê-lo escravo, seja em qualquer circunstância for, mata em legítima defesa“.
Não dizia isso por ódio, mas porque era verdade. Amigo – e colega na redação de um jornal – de Rui Barbosa, de Joaquim Nabuco e outras grandes personalidades da época, Luiz Gama foi a figura mais avançada da luta abolicionista.
No entanto, desde Tiradentes a Abolição já era a questão fundamental da luta pelo desenvolvimento, industrialização e emancipação do Brasil. A Independência, que se consolidou tendo como classe dominante os senhores de escravos e o Estado que os representava – a monarquia – a tinha colocado em questão na palavra de seu próprio Patriarca, José Bonifácio, dirigindo-se à Assembleia Constituinte, em 1823, na apresentação de seu maior projeto.
Como afirmou José Bonifácio, a escravidão era uma herança insuportável da colonização, a comprometer a unidade e a própria existência da nova Nação:
“Se o antigo despotismo foi insensível a tudo, assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que fôssemos um povo mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade, e sem irmandade, para melhor nos escravizar“.
Assim, para o Patriarca, a Abolição era absolutamente imprescindível para que o novo país, então com apenas um ano de idade, se consolidasse e o povo brasileiro completasse a sua formação:
“… é tempo que vamos acabando até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes… cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto“.
Respondendo ao cretino “argumento” dos escravagistas, segundo o qual a Abolição seria um atentado ao seu “direito de propriedade”, José Bonifácio fez, então, a maior denúncia da escravidão em sua época, colocando a propriedade no devido lugar, subordinada aos interesses sociais e nacionais:
“Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade. Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém sem atacar os direitos da providência, que fez os homens livres, e não escravos… Este comércio de carne humana é pois um cancro que rói as entranhas do Brasil“.
Antes de tudo, a Abolição correspondia aos interesses nacionais – a rigor, ela era o interesse nacional, não só o interesse da justiça, mas o interesse do país pelo progresso econômico e pelo avanço da industrialização, impossível com a escravidão que “só serve“, ressalta José Bonifácio, “para obstar a nossa indústria… basta lembrar que os senhores que possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia… as máquinas que poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas“.
O abolicionismo era, portanto, a luta contra o atraso, a estagnação e a ignorância. O combate foi extremamente árduo. Não teve, nem de perto, um único traço de concessão, até porque é uma ideia ridícula a de conceber uma classe inteira de senhores de escravos dando a estes, como concessão, a liberdade.
As leis antiescravagistas foram sistematicamente desrespeitadas – como denunciaram os abolicionistas, a maior parte delas era pura encenação: proibiu-se o tráfico de escravos, mas não a propriedade de escravos contrabandeados; a lei dos sexagenários concedia liberdade aos escravos que completassem 65 anos, isto é, os mortos; a lei do ventre livre concedia liberdade à criança, mas não à mãe nem ao pai: onde iria viver essa criança “livre” senão na senzala, como escrava?
Os negros, os continuadores de Zumbi, estiveram todo o tempo, a exemplo de Luiz Gama, à frente desse movimento. Mais do que isso, manifestaram-se em massa. A própria declaração dos militares, recusando-se a persegui-los, foi uma resposta à tentativa do governo de usar o Exército para reprimir os quilombos formados pelos negros que saiam das fazendas. A tal ponto foram isolados os escravagistas que o próprio Estado que os representara desde a Independência foi obrigado a decretar a Abolição – e, com isso, como disse o inconformado Barão de Cotegipe, escravagista renitente, decretou também seu próprio fim.
É verdade que os vencedores do 13 de maio foram marginalizados durante a República Velha – mas exatamente porque a oligarquia, com seu servilismo aos banqueiros e especuladores ingleses, bloqueou o desenvolvimento e a industrialização do país, continuação natural da Abolição.
Foi necessária a Revolução de 30 para que os negros e todo o povo brasileiro conquistassem outra vez o lugar que lhes cabe. Quando Getúlio decretou, entre outras inúmeras medidas, a lei estipulando que pelo menos dois terços dos trabalhadores das empresas teriam que ser brasileiros, começou a ser quebrada essa marginalização.
Durante o período de Getúlio, o 13 de maio tornou-se festa nacional; o samba tornou-se a mais universal expressão cultural brasileira; as escolas de samba e seus enredos nacionais tornaram-se o ponto culminante do carnaval; e foram proscritas uma série de perseguições e discriminações contra os negros – entre elas, a que proibia a capoeira: a licença que Getúlio assinou para que o famoso mestre Bimba abrisse a primeira academia de capoeira do país é um símbolo imperecível dos ideais e da luta que o 13 de maio representa na consciência nacional.
Hoje, esse é o caminho que retomaremos – e já retomamos – para construir um Brasil livre e justo.